Lula Marques/Agência BrasilVotação de urgência do PL das Fake News na Câmara dos Deputados

A regulamentação fake das mídias sociais

Se as plataformas prestam serviços públicos, isso significa que a regulação precisa ser pública. Mas isso não é sinônimo de estatal e, muito menos, de governamental
04.05.23

Quais os problemas de uma regulamentação das mídias sociais para evitar fake news? Seria preciso saber três coisas básicas para entrar nesse debate. Sem elas, corremos o risco de ter uma regulamentação fake.

A primeira coisa a saber é que mídias sociais não são redes sociais, como se diz no Brasil. Redes sociais não são sites, aplicativos, tecnologias. E sim pessoas interagindo por qualquer meio. Redes são padrões de organização (convencionalmente com topologia mais distribuída do que centralizada), não ferramentas. A mídia utilizada pelo network da Filadélfia, que redigiu a várias mãos a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), foi a carta escrita em papel e entregue pelo correio americano (a cavalo). Foi uma verdadeira rede social, sem Facebook, Instagram ou Twitter.

O problema das mídias sociais com algoritmos caixa preta é que elas não são boas tecnologias de netweaving e não são vulneráveis à autorregulação que é própria das redes sociais. Ou seja, podem falsificar a dinâmica emergente da rede ou impedir a manifestação da fenomenologia da interação que promove essa autorregulação. Assim, os proprietários privados das mídias sociais podem, centralizadamente, decidir o que um interagente vai ver, qual será o alcance do que for emitido por ele etc. Com isso não há aglomeramento (clustering) emergente, ideias não podem enxamear (swarming) e ser imitadas (cloning) de modo mais distribuído do que centralizado e os graus de separação não podem ser contraídos ou amassados (crunching) diminuindo o tamanho social do mundo e aumentando a sua capacidade de encorajamento (empowerment) dos agentes do sistema. Além disso, não se formam mais, espontaneamente, múltiplos laços de retroalimentação de reforço (e de looping de recursão), que permitem que uma pequena perturbação, mesmo que parta da periferia do sistema, mude o comportamento dos agentes do sistema como um todo.

Por enquanto, não há solução para isso. Mídias sociais vulneráveis às dinâmicas próprias de redes sociais ainda não apareceram; ou, se apareceram, não conseguiram conectar um número significativo de interagentes.

A segunda coisa a saber é que não são os conteúdos que desorganizam o debate público e sim a dinâmica instalada de – como dizia Steve Bannon –  “flood the zone with shit” (inundar a área com merda). Foi assim que a desinformação ou a informação fraudulenta (fake news) perturbou o debate público como modo de inviabilizar o processo de formação da opinião pública. E a democracia não tem proteção eficaz contra isso, quer dizer, contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões. Essa é a quarta falha genética da democracia. As outras três, contra as quais a democracia também não tem proteção eficaz, são o discurso inverídico (do velho demagogo, que já pontificava na Atenas do século 5 e na república romana), o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia (como fazem os populismos contemporâneos) e a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam (que é hoje a principal via de erosão democrática, muitas vezes sem violar abertamente as leis).

Não adianta tirar um conteúdo falso do ar. Em seguida aparecerá outro e depois outro e mais outro, não dando tempo para qualquer curadoria feita pela imprensa profissional ou pelas agências de checagem.

Ademais, ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje esse é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo prevalente de regulação de conflitos.

Há um relativo consenso de que a formação democrática da vontade política tem como fonte originária: (a) a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão clássica do liberalismo moderno); (b) o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político de Arendt e do procedimentalismo democrático de Habermas). Todavia, uma terceira fonte, embora já aventada no final da primeira metade do século passado, mas nunca suficientemente explorada, também merece ser considerada: (c) a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto (segundo a visão de democracia cooperativa do filósofo americano John Dewey).

Com a manipulação das mídias sociais para falsificar o processo de formação da opinião pública – que literalmente estilhaçou o espaço público em miríades de esferas privadas, opacas à interação horizontal –, com as fake news (expressão que – nunca é demais lembrar – deve ser traduzida por “notícias fraudulentas”) e a chamada pós-verdade (desabilitando o papel formador da opinião pública da interação de opiniões sobre os mesmos fatos, na medida em que inventa novos fatos), a democracia dependerá, cada vez mais, de uma transição de (a) e (b) para (c). Mas ainda estamos longe de poder adotar amplamente tal solução, que exige nada menos que uma nova reinvenção da democracia. E talvez ela nunca possa ser adotada a não ser glocalmente.

Não há mais liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado. Pelo contrário, o Estado (democrático de direito) está sendo chamado a interferir mais, pois a liberdade individual de opinar virou, em grande medida, atentado à democracia, com a deslegitimação das instituições, a pregação da intolerância, a difusão do ódio e a disseminação calculada de mentiras e a defesa aberta de regimes autocráticos e comportamentos autoritários e, não raro, ilegais. Isso é contraditório pois a liberdade vem sendo tomada – sobretudo pelo populismo-autoritário – como a liberdade de acabar com a liberdade.

Ademais, o reino público ficou muito reduzido e vem sendo substituído pelo surgimento caótico de miríades de reinos privados tribais (na medida em que o broadcasting privado se tornou viável com o abuso das mídias sociais). Estamos correndo o sério risco de que quase ninguém mais preste atenção à argumentação discursiva; ou seja, de que não seja mais o debate, a interação e a polinização mútua de opiniões, que forme uma opinião pública e sim a replicação de versões urdidas para impedir que as opiniões sejam modificadas pela interação.

A terceira coisa a saber é que a opinião que vira incitação concreta ao crime não é feita principalmente nas mídias sociais e sim em outros tipos de programas privados de mensagens e em foruns fechados de debates (como os subforuns de 8chan, subreddits etc). Além disso, trocas de mensagens privadas entre cidadãos terão sempre sigilo garantido constitucionalmente (a menos que não se queira mais viver numa democracia). E a turma que trama ações criminosas na deep web não usa nem os nossos navegadores usuais.

Deve haver regulação das mídias sociais. Se elas prestam serviços públicos, isso significa que a regulação precisa ser pública. Mas público não é sinônimo de estatal e, muito menos, de governamental. Devemos encontrar soluções democráticas para o problema, que exigem conversação democrática ampla. Aprovar uma regulamentação fake, a toque de caixa, passando o rolo compressor, não trará bons resultados. No final do dia teremos menos-democracia e não mais-democracia.

No caso do PL das Fake News, em discussão no Congresso Nacional, há várias inconsistências que podem ser evidenciadas por meio de quatro perguntas simples:

1 – Representantes eleitos podem cometer fake news à vontade? E, por exemplo – como sugeriu Mario Vitor Rodrigues no Twitter – se Bolsonaro, estando no governo, ao sugerir que vacinas contra Covid desenvolvem Aids no paciente, comete uma fake news, por que Lula dizer que Dilma sofreu um golpe de Estado, também não comete?

2 – Quem será o órgão regulador? A Anatel? Mas o Conselho Diretor da Anatel é nomeado pelo presidente da República. Se for outro coletivo, como ele será composto (por nomeação governamental, eleição, sorteio)? E quais serão suas prerrogativas e atribuições (será um órgão autônomo, com mandato definido, poderá tomar decisões punitivas bypassando o poder judiciário)?

3 – E se algum conjunto organizado de militantes resolver denunciar postagens de seus inimigos políticos, isso será encarado como vigilância cidadã válida?

4 – A arregimentação para ações antidemocráticas não é feita principalmente nas mídias sociais e sim nos programas de mensagens e outros fóruns, usando outras mídias e tecnologias às quais o público não tem acesso. Como vigiar e punir isso sem atropelar direitos políticos e liberdades civis?

Quase nenhuma dessas perguntas, entretanto, entra nos problemas de fundo de qualquer regulamentação. Do ponto de vista do que se expõe neste artigo é uma regulamentação fake, porque diz que vai regulamentar, mas na verdade não vai. Não, a União Europeia não resolveu o problema: embora tenha dado um primeiro passo, não entrou ainda no cerne da questão (o que pode acontecer – torçamos – nas próximas décadas).

Se quisermos uma solução simples e errada do ponto de vista da democracia, talvez o caminho seja criar uma nova estatal para prover mídias sociais e programas de mensagem (tipo os Correios substituindo o Uber). Assim, imitando a China – como muitos governistas sonham –, teremos todo o controle sobre conteúdos que nos desagradam.

 

Augusto de Franco é escritor

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  1. O melhor artigo que li por toda a imprensa acerca da utilização da mentira para desestabilizar a democracia e vencer eleições e regulamentação das redes. Poderiam considerar abrir o artigo para não assinantes, trata-se de serviço público

  2. Talvez o problema seja querer fazer uma Lei completa e perfeita de uma vez só e açodadamente. Há mídias sendo usadas por adolescentes com exposição livre de fotos e vídeos inadequados e até proibitivos para suas idades. Há os tais "influenciadores" se apresentando como referência de vida com total falta de substância e conteúdo. Delegar aos pais apenas esse controle é impossível, sabemos. Poderíamos adotar um planejamento para resolver por parte o que há de mais grave.

  3. Ô Augusto.. essa tua baboseira escrita aí acima, “tá” meio que enviezada.. traduz, de fato, até onde tu queres chegar.. regulação ou regulamentação são coisas bem distintas.. ou será que meu descortino tá na zona cinzenta?

    1. Oi Josias.. é assim: Regulação é a forma autoritária e deslavadamente irregular de se delinear o que interessa apenas a quem a determina. Regular é criar, inventar e fazer regras a critério de quem tem poderes pra isso. Já a Regulamentação é o conjunto de regras adotadas e aprovadas por um plenária, regulamentando procedimentos legítimos. Simples assim..

    2. Regulação e regulamentação são coisas distintas? Explique isso aí meu amigo Alvaro.

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