Daniel EstevãoJorge Messias, da AGU, que criou a Procuradoria de Defesa da Democracia

Balanço de um governo que acabou

A face amorosa desta gestão se mostrou caricata, e suas intenções autoritárias se evidenciaram
31.03.23

O novo governo federal passou praticamente três meses comemorando a conquista do voto popular. Segundo eles mesmos, tratava-se, afinal, da vitória do bem contra o mal, do amor contra o fascismo, das cores do Brasil contra as do obscurantismo. Não só. Era também, segundo os advogados da corte governista, a vitória do humanismo, do garantismo, da igualdade, da justiça.

Nos discursos de todes do governo, muito amor, muita paz, harmonia e beleza. Nos eventos, ministros sambando, conversas animadas. Quem ficará com este cargo? E aquela vaguinha no STF? Hum… A animação com que os ministros do Planalto foram anunciados me fez até lembrar Silvio Santos nos anos 80 chamando um a um os jurados para seu Show de Calouros: “e o Flávio Dino lá, lá lá lá ia lá ia… e o auditório lá, lá…

No que toca às liberdades de expressão, nestes três meses, houve a criação da famigerada procuradoria da verdade pela Advocacia-Geral da União, pretendendo instituir um órgão anti-fake news que, na prática, serviu mesmo para confundir e perseguir opositores do governo. Houve nesses meses também uma óbvia intenção de colocar sob o mesmo balaio do debate sobre regulação das mídias pontos que deixavam campo aberto para regular conteúdos jornalísticos de veículos de comunicação.

Tudo isso me pareceu sempre muito pouco amoroso, harmônico e saudável. Passei a denunciar a intenção do governo cercear a liberdade de expressão nos artigos que escrevo e no meu Twitter. Fui convidado a programas de TV, rádio, apontei tecnicamente os riscos e acreditei que ajudava. Que nada, caro leitor, as pessoas não estão nem aí. Como me disse uma amiga: “você prega no deserto”.

Eu entendo. Tudo em que acredito, talvez, tenha morrido ou esteja em avançado estado de decomposição. A fala e escrita de boa parte dos formadores de opinião não possui um mínimo de qualidade, e a da imensa parte de nossos congressistas flerta com o sensacionalismo barato. Difícil defender no Brasil a plena liberdade de um debate que é uma porcaria inútil. As pessoas até agradecem hoje em dia quando governantes e juízes promovem censura. Alguns jornalistas chegam a aplaudir restrições judiciais impostas a colegas. “Melhor assim”, “melhor calados”, é o que dizem.

Nessa toada, embora eu venha achando o governo agressivo contra as liberdades e pouco amoroso com os cidadãos, as pessoas frequentemente me corrigem: “deixa de ser chato, a democracia voltou. Seja otimista”. Caro leitor, é um tremendo paradoxo ter nascido no Brasil e ser otimista. Deste constrangimento eu não morro.

Portanto, feito este balanço de três meses, concluo que o governo acabou: sua face amorosa se mostrou caricata, suas intenções autoritárias se evidenciaram. Não vê quem não quer ou não pode. Nesta última semana, até o escritor Paulo Coelho se enfileirou ao lado dos críticos. Disse ter se arrependido do voto e que o governo está “patético”. Se a irresignação de um escritor de meia pataca como eu não vale nada, confiem na do Paulo.

 

André Marsiglia é advogado e escreve sobre direito e política

@marsiglia_andre

andremarsiglia.com.br

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  1. Talvez o Brasil sofra do mesmo mal que o mundo tem sofrido, só que claro em um nivel maior: nos esquecemos rápido das lições que a história nos dá. Nos esquecemos das tragédias provocadas por governos autoritários, nos esquecemos do perigo de se construir laços de dependências com ditaduras, nos esqueçemos dos perigos que é concentrar poder nas mãos de poucos, nos esquecemos dos perigos da censura... Acho que é como dizem, a sociedade moderna está infantilizada, vai ter de reaprender tudo

  2. Parabéns a você (e a Crusoé) pela denúncia constante do autoritarismo desse governo. Quando desaparecer completamente o bom senso e o sentido de dever jornalístico da imprensa, ante seu próprio pendor ideológico, será o fim definitivo desse país.

  3. Andre, enquanto ouvia a matéria, até ri! Lembrei dos jurados do SS… Mas logo voltei a realidade… Tambem não morro com este constrangimento… Ser otimista com o Brasil não dá! Desisti….

  4. Por favor, continue sim pregando com o brilho e sensibilidade com que nos brinda… sim, somos muitos que bebem da mesma fonte e compartilham suas ideias, André! Sinto-me em tanta sintonia com seu sentir e ver este nosso Brasil, sil, sil que abuso dessa partilha e, sem cerimônia, chamo você pelo nome de batismo… Muito obrigada!

  5. André Marsiglia, melhor pregar no deserto do que morrer nele. Você tem o dom da escrita e da palavra. Use-a. Um dia tudo isso que está aí, acaba.

  6. Sempre elogio a sua sanidade perante ao que vivemos. Mais uma excelente reflexão sobre o nosso caos. Parabéns! Nem à esquerda, nem à direita. Precisamos manter a direção firme e seguir em frente, esperando chegar a alguma realidade diferente dessa que vivemos.

  7. A única chance de salvar parcialmente os próximos quatro anos seria o Alckmin assumir o governo. Dos males, o menor …

    1. Concordo: sem picanha nem abóbora, vamos finalmente curtir chuchu. Vai ser bom e saudável!

  8. Se o chefe tá andando aos trancos e barrancos, com uma cuidadora 24 horas à postos, lhe dando água e remédios na boca, o jornalista queria o que? O governo é a imagem e semelhança do chefe! Ou não?

  9. Oxente! Como pode ter terminado esse governo se, a rigor, só começou com Dino dando e levando porrada? Se já terminou ainda não temos certeza porque Paulo Coelho é um somente um místico e não um cientista político e o Lula e a presidente do PT vão continuar atirando no BC, enquanto o Congresso trava a boiada. Quem sabe o Jair volte a animar os patriotas e comece aquele show de zumbis para fazer o PT governar.

    1. ótima coluna. compartilho em grande parte da frustração de ter q rever o desastre Petista . Só espero q a direita tenha aprendido lição de q o Bolsonaro nunca será a saída, ele é a base da narrativa Petista. Qdo vamos parar de ter governos q usam de forma covarde e manipuladora o medo da sociedade? "Aceita pois o outro é pior" , até qdo?...a maioria continua apática a situação...muitos de fato sem QQ reação...

  10. Dr. André, parabéns pelo texto. Absolutamente lúcido. O senhor não está pregando no deserto. Há pessoas que ainda se indignam, ficam ruborizadas e sofrem com o patético da nossa realidade. Estou na casa dos 70 e poucos anos, sou advogado, como o senhor, e confesso, não me lembro de dias piores do que estes por que passamos. O Lula já é um pato manco. Poderá se sustentar até o final de seu mandato ( e de nosa desgraça)?

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