Foto: Hanay/Wikimedia CommonsProtesto contra a reforma judicial perto do prédio do Parlamento israelense, o Knesset, no último dia 20 de fevereiro

Um Supremo que leva multidões às ruas — a seu favor

Em contraste com as acusações feitas ao STF no Brasil, israelenses protestam para defender a Suprema Corte da interferência de Netanyahu
30.03.23

Desde janeiro deste ano, Israel vive uma situação inconcebível no Brasil das últimas décadas: multidões nas ruas para defender a sua Suprema Corte. Neste mês de março, os protestos se intensificaram depois que o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, demitiu o ministro da Defesa, o general Yoav Gallant, por se opor ao seu projeto de reforma judicial que visa aparelhar o Supremo israelense. Centenas de oficiais das Forças Armadas e do Mossad, o serviço de inteligência, entraram em greve. Na última segunda (27), numa tentativa de apaziguar os ânimos e conclamar ao “diálogo”, Netanyahu anunciou que a proposta — estopim da atual crise — terá sua tramitação pausada no Knesset, o Parlamento de Israel, até o retorno do recesso, no final de abril. Na quinta (30), apoiadores do premiê foram às ruas defender a reforma judicial.

Mesmo levando em conta as peculiaridades de cada Estado, a comparação entre as Supremas Cortes israelense e brasileira pode ilustrar a importância e a necessidade de um Judiciário independente numa democracia. As ações de Netanyahu também são um exemplo de como regimes autoritários, ou tendendo ao autoritarismo, procuram anular essa independência e transformar o Supremo em um braço dos seus governos.

Para entender a crise em Israel, é preciso lembrar que o país não tem uma Constituição em si. Devido a um impasse legislativo nos primeiros anos pós-independência, na virada da década de 1940 para 1950, Israel conta hoje com apenas 14 leis básicas. Apesar de terem caráter constitucional, essas leis podem ser emendadas por maioria simples de 61 dos 120 parlamentares do Knesset, que é unicameral — ou seja, não há no país a divisão entre Câmara e Senado.

“Uma coalizão de 61 membros do Knesset é poder absoluto em Israel”, diz a professora de direito constitucional israelense Suzie Navot, vice-presidente do centro de pesquisa Israel Democracy Institute. Segundo ela, o “único limite” é a Suprema Corte, que tem o poder de derrubar leis. “Por isso, a Suprema Corte e sua independência estão sob ataque”, acrescenta Navot.

O projeto de reforma de Netanhayu — alvo de processos por corrupção, fraude e abuso de poder — permite ao governo derrubar decisões da Suprema Corte por maioria simples no Parlamento. Também muda a composição do comitê responsável por nomear os ministros do Supremo, dando mais peso ao governo; hoje, esse colegiado é composto por três magistrados da própria Suprema Corte, dois representantes da ordem dos advogados, dois ministros governistas e dois membros do Knesset, sendo pelo menos um da oposição. A nova proposta, na prática, dará ao Executivo a possibilidade de escolher os ministros.

“Alguns falam que tem que se aproveitar a oportunidade para ter uma Constituição, discutir os limites claros dos Poderes”, diz Monique Sochaczewski, doutora em história pela FGV e professora do IDP em São Paulo. “Tentar organizar melhor esse sistema jurídico e político israelense, que ainda está mambembe, mesmo com 75 anos. Enfim, seria uma grande oportunidade pra discutir — mas não assim e não tão rápido.”

Karina Stange Calandrin, pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais da USP e colaboradora do Instituto Brasil-Israel, aponta para outro risco da reforma: ”A extrema direita [na qual Netanyahu hoje se apoia para governar] quer poder ditar as ações que envolvem segurança, apoiando políticas antiárabes e mais assentamentos nos territórios ocupados. Além disso, quer poder impor políticas anti-LGBT e contra os direitos das mulheres, de acordo com a visão que eles têm sobre o judaísmo”. A professora do IDP, que divide os grupos de apoio ao primeiro-ministro entre religiosos ultraortodoxos e colonos dos territórios ocupados, afirma que “todos têm uma pauta que assusta muitas pessoas sobre qual seria o papel das mulheres. E também bastante homofóbica”.

Devido à estrutura dos Poderes em Israel, se a reforma passar pelo Knesset, não haverá o que fazer institucionalmente. “Por isso esse desespero, essa dramaticidade de tantos israelenses nas ruas gritando, tentando pedir que os EUA e outros aliados se coloquem: a janela de oportunidade seria agora. O que muitos gritam nas manifestações é ‘eu não tenho outro país’”, diz Monique.

E NO BRASIL?

O sistema político-jurídico brasileiro tem diferenças fundamentais em relação ao de Israel. O Brasil tem Câmara e Senado, e as indicações para o Supremo Tribunal Federal são feitas pelo presidente e aprovadas pela segunda Casa. Rejeições são raríssimas: desde a fundação do Supremo, em 1890, apenas cinco indicações presidenciais foram barradas pelos senadores, todas durante o governo autocrático do marechal Floriano Peixoto (1891-1894). Com isso, o risco de ligação política entre o magistrado e o chefe do Executivo que o nomeou torna-se maior do que no atual sistema israelense.

Outro diferencial, mais positivo, é que, apesar de todas as críticas, a Carta Magna de 1988 é uma “Constituição rígida”, segundo Vidal Serrano, professor de direito constitucional da PUC. Isso significa que uma mudança nela é mais difícil do que em uma lei ordinária — é necessária maioria qualificada de três quintos dos votos em dois turnos, tanto na Câmara como no Senado, para que a Constituição brasileira seja emendada. E há ainda as cláusulas pétreas, como o direito ao voto e a garantias individuais, que não podem ser alteradas por nenhuma legislação. “Isso é fundamental para uma Constituição adequada de um Estado democrático”, afirma Serrano.

De acordo com o professor da PUC, foi nesse contexto que o STF agiu diante das invasões do 8 de janeiro, durante as quais houve, nas palavras de Serrano, “atos claros de tentativa de supressão do Estado de Direito”, já que a depredação das sedes dos Poderes visava à reversão do resultado legítimo das urnas. Desde que seja respeitado o direito à ampla defesa e ao devido processo legal, as subsequentes prisões e ações penais garantirão a existência da democracia.

A atuação do Supremo no Brasil, porém, é motivo de debate em casos complexos, como o inquérito das fake news — dentro do qual Crusoé foi censurada após publicar reportagem, baseada em documentos oficiais, sobre o ministro Dias Toffoli (a medida foi revertida depois). A investigação, na qual o STF aparece como vítima, investigador e julgador, é criticada inclusive por ex-ministros da corte. “O inquérito começou mal, instaurado pela vítima”, disse à Crusoé em junho de 2022 Marco Aurélio Mello, então recém-aposentado do Supremo. “O segredo e a duração criam medo e instabilidade. Além disso, está cabendo tudo nessa investigação. Medidas restritivas estão sendo decretadas inclusive contra quem não tem prerrogativa de ser julgado pelo STF. O que nasce errado não tem como acabar certo”, acrescentou.

UM PODER CONTRAMAJORITÁRIO

Críticos do Supremo, principalmente entre os apoiadores de Jair Bolsonaro, apontam esse inquérito e outros casos — por exemplo, a decisão de Edson Fachin de anular as condenações de Lula na Lava Jato, o que lhe permitiu voltar à Presidência, e as medidas de Alexandre de Moraes que resultaram em censura a veículos de imprensa, incluindo O Antagonista, na eleição de 2022 — como exemplos de que o STF é um tribunal enviesado, antidemocrático, que invade a competência do Legislativo e careceria de legitimidade por “não ter sido eleito”, diferentemente do presidente da República e dos parlamentares.

No entanto, a Suprema Corte não ser eleita é uma das características fundamentais para a manutenção de um Estado democrático. Como descreveu o jurista americano Alexander Bickel em “O Poder Menos Perigoso”, de 1962, o Judiciário serve a um papel contramajoritário: ele possibilita que os direitos fundamentais sejam garantidos também às minorias, enquanto a maioria já tem sua voz no poder pela sua representação no Executivo e no Legislativo. Em Israel, por exemplo, é no Judiciário que se amparam os direitos da população LGBT e dos árabes-israelenses; no Brasil, foi o STF que, em 2011, garantiu o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, medida que dificilmente teria sido aprovada pela maioria do Congresso.

Esse papel contramajoritário do Judiciário e sua importância para a democracia remetem à chamada doutrina da “democracia militante”, que se desenvolveu mais recentemente na “democracia defensiva”. A “democracia militante” foi formulada pelo cientista político alemão Karl Loewenstein em 1937, no contexto da ascensão dos nazistas ao poder em seu país. Para ele, a democracia precisa de ferramentas para impedir que os “inimigos de sua própria existência” cheguem ao poder e o usem para destruí-la.

No sistema de freios e contrapesos, as cortes constitucionais são uma das principais ferramentas para esse fim. Tanto é assim que regimes ditatoriais, como a Venezuela, ou autocráticos, como a Polônia, submetem seu Poder Judiciário à “tirania da maioria” governista. “É fundamental que o Judiciário não seja eleito. Se o fosse, ele ficaria à mercê da maioria”, argumenta Serrano.

Os especialistas concordam que, em qualquer circunstância, um Judiciário independente do poder político, do poder econômico e até dos humores da opinião pública é essencial para uma democracia saudável. Ninguém precisa amar o STF — só é necessário, e fundamental, que ele funcione a contento. “Não é pela Suprema Corte em si”, observa Karina Calandrin sobre os protestos em Israel, “mas porque a reforma significa a criação de um sistema autocrático de governo. A defesa não é da Suprema Corte, e sim da democracia.”

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Certamente não o nosso caso, que solta marginais julgados em instâncias inferiores. O nosso é símbolo da VERGONHA NACIONAL, "o Poder judiciário" mais caro do planeta, o com mais acusações de corrupção no mundo, e completamente alheio à realidade do Brasil

  2. Nossa suprema corte é um tribunal político haja visto as últimas decisões, poderíamos muito bem copiar o sistema de indicação de Israel

  3. Políticos odeiam barulho e contestação. O brasileiro aprendeu isso nos protestos que levaram a queda da Dilma, décadas após apenas suportarem quietos tudo que lhes era enfiado goela abaixo. Infelizmente a nossa indignação foi completamente capturada pelos populistas de plantão, que eliminaram a espontaneidade da nossa indignação e nos retornou ao nosso papel de subserviência. A ver quando despertaremos novamente.

  4. Nosso STF é uma vergonha. A indicação dos membros um escândalo. Os membros, exceção de (?), é uma tristeza só. Alguns, baixos ao extremo. Mas... Fazer o que?

  5. “ Ninguém precisa amar o STF”, só exigir dele que se cumpra a Constituição!! Na teoria a existência do STF brasileiro na forma como está parece muito bonita. Na prática, ela é desastrosa. A escolha do Ministro pelo presidente em exercício é desastrosa. A atual formação é uma das piores da República.

    1. Lucia, da licença? Pegando carona no seu ótimo comentário: …”STF…na forma como está parece muito bonita”. Dois contracantos: parece, mas não é ( um desastre, se considerar q deve produzir um fundamento da humanidade- a JUSTIÇA!); o outro é um devaneio, q me tomou para o passado, na saída de multidões chorosas d cinema, ouvindo uma voz- em prantos- “bonito e triste”. Como cidadão: escolhas de ação entre amigos e/ou compra e venda faz do STF um monstro anti República perigosíssimo. Horroroso.

  6. Vamos fazer no Brasil uma manifestação a favor e outra Contra o STF. Aí vamos ver quem o povo escolhe. Só não vale distribuir mortadela e tubaina

Mais notícias
Assine agora
TOPO