ReproduçãoProtestos na França: a política, corrompida e desacreditada, torna-se uma “guerra continuada por outros meios”

Politicídio

Na nossa realidade atual, onde se intensificam os conflitos internos, a guerra torna-se o único meio de ação política
24.03.23

Manifestantes franceses ameaçaram guilhotinar o presidente Emmanuel Macron na Praça da Concórdia. Parece um exagero, um paradoxo. Mas o povo francês é exagerado e paradoxal. Dizem que o general Charles de Gaulle acreditava ser impossível governar um país que tem mais de 300 tipos de queijo. Mas o que realmente se tornou impossível foi tentar convencer os franceses a aceitarem a reforma da Previdência. Sem apoio político, Macron apelou a um dispositivo constitucional que lhe daria poder para aprovar a reforma ignorando o Parlamento. Parece inacreditável, o homem que fora eleito para evitar o autoritarismo do Reagrupamento Nacional (antiga Frente) de Marine Le Pen, agora é acusado de ser autoritário pela Assembleia Nacional – e pela própria Le Pen, que ainda acrescentou: “ele é mesquinho, não tem empatia!

Segundo o jornal Le Figaro, Macron se pronunciou dizendo que a multidão que protesta nas ruas de Paris não tem “legitimidade para pressionar os representantes eleitos”. Parece que Jean-Jacques Rousseau tinha razão: basta delegar o poder a um político para ele passar a cuidar dos próprios interesses e ignorar a vontade popular. E assim chegamos à era da democracia sem povo, onde a cidadania vale somente até o dia da eleição. Depois, os eleitores devem se tornar meros espectadores passivos do espetáculo estrelado pelo governante e seus gurus tecnocratas. É a versão moderna do “L’État c’est moi”.

Michael Oakeshott referia-se a essa atitude como “política da fé”, a crença de que a função do governo seria controlar e organizar a atividade humana, visando a sua perfeição. Como os políticos são alçados a salvadores da sociedade, o povo deve apenas obedecer e cumprir as regras estabelecidas sem o seu consentimento. E sem legitimidade para questionar as decisões e nem mesmo ter voz para fazer valer as suas demandas sociais, os opositores veem na intransigência do governo uma justificativa para o radicalismo. Afinal, se o próprio governo acredita que pode legitimar uma pedalada nas regras para atender a um determinado projeto político, qual argumento poderia ser usado para coibir atos extremistas que também ignoram as regras para um determinado projeto político?

No entanto, nesse clima de confusão e radicalismos extremos, é preciso lembrar que, como dizia George Bernanos, uma civilização não desmorona como um edifício condenado, mas vai se esvaziando pouco a pouco de sua substância até que não lhe reste muito mais do que uma casca. É o que parece estar acontecendo com a democracia: para salvá-la, alguns tentam nos convencer que precisamos aceitar algumas intransigências e autoritarismos; outros, que precisamos derrubar o sistema para implementar um novo regime. E quem se pretende moderado precisa conviver entre radicais que prometem guilhotinar um presidente ou depredarem prédios públicos, e autoritários que pretendem justificar toda sorte de arbitrariedades para combater essas ameaças extremistas. Nesse conflito contínuo e interminável, a política, corrompida e desacreditada, torna-se uma “guerra continuada por outros meios”, como dizia Michel Foucault, invertendo a máxima de Carl von Clausewitz, que via a guerra como o último recurso para se manter a autonomia de um Estado diante de uma ameaça externa. Já na nossa realidade atual, onde se intensificam os conflitos internos, a guerra torna-se o único meio de ação política.

Mas quando a política é feita com base em radicalismos, ela se torna estéril. Porque, de um lado teremos sempre os políticos querendo impor seus planos perfeitos e inquestionáveis, sem medir os custos sociais para a sua implementação; e de outro, os opositores reagindo ao que consideram imperfeito e até mesmo imoral. E esses heróis românticos se sentem com poderes ilimitados para defenderem o único bem que lhes parece certo. É claro que nessa dinâmica, onde todos se consideram anjos – e, obviamente, seus inimigos demônios –, as relações políticas vão se tornando inviáveis e destrutíveis. E não seria exagero dizer que, aos poucos e de forma constante, vamos cometendo um politicídio.

 

Diogo Chiuso é escritor e autor do livro “O que restou da Política”, publicado pela editora Noétika em 2022

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  1. Presidencialismo dá nisso. Até na França. Parlamentarismo puro, como na Inglaterra, é vacina contra autoritarismos e ditadores que se revezam no poder a cada eleição presidencial. Presidencialismo não é bom nem nos USA. Por aqui, tb, ninguém vê isso e ficamos com um bolsopetismo. Fatalistas, acreditamos que não exitem outras opções, Nos é roubado o direito de termos "candidaturas independentes de partidos" para todos os níveis e cargos. As máfias partidárias são absolutas por aqui...

  2. A história política da humanidade sempre foi se equilibrar entre ataques dos extremos. A resistência a esses ataques está na fibra moral e coragem dos líderes liberais da hora. Infelizmente, atualmente, eles são de baixíssimo nível e, como no caso do Macron, utilizando-se desse dispositivo legal esdrúxulo, podem chegar, em determinados momentos, a pular a cerca para o extremismo (afinal, empurrar uma lei goela abaixo e deslegitimizar os opositores não tem nada de liberal).

  3. Será que na França os funcionários públicos tb têm aposentadorias milionárias, como aqui na terrinha? Essa briga é só uma questão de matemática …

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