Bruno Santos/FolhapressBombeiros, Exército e voluntários trabalham no resgate de vítimas dos deslizamentos de terra em São Sebastião

Até quando?

Tragédias como a do litoral paulista tendem se repetir com eventos climáticos extremos frequentes e a inação das autoridades com moradias irregulares em áreas de risco
24.02.23

Voluntários caminhavam entre os escombros das casas na Vila Sahy, na cidade paulista de São Sebastião, quando ouviram o grito de uma criança por socorro. Debaixo de um telhado, eles encontraram um menino assustado de 3 anos no colo de sua mãe. Ele não abria os olhos e sua boca parecia inchada. A mãe e o marido, ao seu lado, estavam sem sinais de vida. A família fora surpreendida por um deslizamento de terra, mas a criança resistiu até ser resgatada por um grupo de quinze pessoas. Outros dois filhos do casal eram dados como desaparecidos. Na mesma Vila Sahy — o ponto mais atingido pelas chuvas do Carnaval do litoral paulista — uma situação inversa foi registrada. Na terça, 21, o bebê de 9 meses Levy Santos de Oliveira foi a primeira vítima do desastre a ser enterrada. Sua mãe ficou ilhada e conseguiu ser resgatada na segunda. Uma irmã de 9 anos precisou ser internada em um hospital na cidade vizinha. No funeral, em que o pequeno caixão branco foi carregado por duas pessoas, os pais recebiam a ajuda de psicólogos e de assistentes sociais. Essa última calamidade traz à tona não apenas os estragos causados pelas mudanças climáticas, como aqueles gerados pela incompetência do Estado brasileiro em impedir que famílias vivam em áreas de risco.


Cinquenta mortos foram confirmados até a quinta, 23, mas o total ainda pode aumentar, pois mais de 30 continuavam desaparecidos. Quase todas as vítimas fatais eram de São Sebastião, no litoral norte paulista. A região foi a que recebeu a maior quantidade de chuvas em 24 horas na história do país. Entre a manhã do sábado, 18, e o domingo, 19, despencaram 680 mm de água em Bertioga e 626 mm em São Sebastião. O índice de Bertioga é o maior já documentado no país e corresponde a 680 litros de água por metro quadrado, em 24 horas. O volume daria para encher quatro banheiras individuais. A título de comparação, no temporal que deixou 240 mortos em Petrópolis, no Rio de Janeiro, há um ano, a quantidade de água acumulada foi de 534 mm nesse mesmo lapso de tempo. O índice anormal dos últimos dias foi o resultado do encontro de uma lenta frente fria vindo do sul, um centro de baixa pressão que estava no interior do país, a umidade que vem da Amazônia e o calor típico do verão no Sudeste. Resultado: a chuva que era esperada para todo o mês de fevereiro caiu em um único dia. “
Foi um evento atípico, que resultou de uma combinação de fatores meteorológicos. Mas, com o aquecimento global, podemos esperar uma frequência maior de temporais como esse”, diz Andrea Ramos, meteorologista do Instituto Nacional de Meteorologia, InMet, em entrevista ao programa Meio-Dia em Brasília.  

Com a catástrofe em andamento, as primeiras críticas foram aos serviços de meteorologia. Mas, com base neles, foram dados diversos alertas. Entre os dias 17 e 19, a Defesa Civil de São Paulo previu temporais de 250 milímetros, um valor bem abaixo do registrado, mas ainda assim preocupante. As mensagens anunciavam a possibilidade de alagamentos e deslizamentos. A empresa privada de meteorologia MetSul, do Rio Grande do Sul, foi mais precisa, e anunciou que o aguaceiro poderia ser de até 700 mm. Acontece que, em um país que estava ávido pelo primeiro Carnaval pós-pandemia, turistas não desistiram de descer de carro para o litoral. Eles então acabaram sendo pegos pela tempestade, junto aos moradores mais pobres que trabalham como piscineiros, seguranças, porteiros, cozinheiros e faxineiros. Mesmo que os alertas tivessem chegado a essas pessoas, elas naturalmente pensariam que o mais seguro seria ficar dentro de suas casas no feriado. E foi sob o telhado de suas casas que muitas sentiram o impacto das ondas de lama geradas pelo temporal. 

A culpa, portanto, não está na quantidade de chuva, algo que é incontrolável e será cada vez mais comum. Tampouco pode ser jogada nos serviços meteorológicos e de alerta. A falha está na inapetência das autoridades ao permitir que pessoas, ricas e pobres, morem em áreas de risco de deslizamento de terra e enxurradas. Segundo um levantamento da MapBiomas, o número de assentamentos precários na cidade de São Sebastião foi multiplicado por 15 desde 1985. 

Trata-se de um fenômeno nacional. Dos 210 milhões de brasileiros, há pelo menos 10 milhões nessas condições. Entre eles estão idosos e crianças, que têm menos condições de enfrentar uma catástrofe. São eles as potenciais vítimas da próxima tempestade. A questão que urge é explicar por que há tanta gente vivendo em áreas de risco, mesmo após sucessivas tragédias. “Não acho que as autoridades brasileiras busquem impedir as ocupações irregulares. Não há nada sendo feito para evitar que novas invasões aconteçam. Na verdade, o país até as estimula”, diz Victor Carvalho Pinto, coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades, do Insper. 

Há no país um movimento não declarado em favor dos invasores de áreas de risco, que ficou raízes profundas entre advogados, defensores públicos, promotores, juízes, jornalistas, políticos e na opinião pública. Sem essa penetração, seria impossível explicar a abrangência e a duração dessas ocupações. No Brasil, quando a primeira família se estabelece em uma zona de risco, servidores da prefeitura e policiais são enviados para notificar os infratores. É então que brotam as primeiras resistências. Como moradores pobres costumam ter uma única residência, as Defensorias Públicas se oferecem para atuar judicialmente em favor de alguns indivíduos, alegando questões humanitárias. Após a formação de pequenos bairros, o Ministério Público costuma entrar no terreno. Promotores analisam o risco envolvido e estudam se é possível que ele seja “eliminado, corrigido ou administrado”. Na hipótese de que o perigo não possa ser contornado, o Ministério Público ordena a remoção. Caso contrário, pode pedir que a prefeitura realize as obras necessárias e recorra à Justiça, se preciso. O problema, assim, é consolidado e empurrado para a frente. Em três anos, a prefeitura de São Sebastião acumulou 37 condenações judiciais solicitando obras para reduzir riscos em áreas ocupadas nas proximidades de encostas da Serra do Mar. 

Jorge Mesquita/Prefeitura de São SebastiãoJorge Mesquita/Prefeitura de São SebastiãoEncostas de São Sebastião: casas e famílias destruídas
As prefeituras, por sua vez, podem alegar falta de recursos para executar as obras necessárias, deixando as invasões no limbo. O perigo continua presente, e nada é feito. Nesse período, mesmo sem a regularização do terreno, costuma ocorrer uma aceitação da situação por diversas entidades. Nas pesquisas que fez sobre ocupações, Carvalho Pinto, do Insper, descobriu que, até 2021, as concessionárias de energia elétrica eram obrigadas a levar luz para áreas irregulares. A partir desse ano, a Agência Nacional de Energia Elétrica passou a exigir que as empresas consultem a prefeitura do município antes. “Não sei se isso foi implementado na prática. Mesmo assim, a chegada de infraestrutura tem sido um estímulo para muitas pessoas. É por isso que esse processo se dá em todo o Brasil, e continua acontecendo”, diz Carvalho Pinto.

As prefeituras, via de regra, criam inscrições imobiliárias de casas irregulares e clandestinas, e emitem os boletos de IPTU. A prática se dá tanto com ocupações de famílias pobres como em condomínios de luxo. “O correto seria que os municípios condicionassem a emissão dos carnês aos imóveis que foram regularizados”, diz Paulo Antônio Locatelli, procurador de Justiça e diretor da Escola do Ministério Público de Santa Catarina. O montante que as prefeituras perderiam se adotassem essa regra, porém, é significativo. No norte da ilha de Florianópolis, onde Locatelli trabalhava como promotor de Justiça, quase 80% das moradias são informais. Normalmente, a sanha tributária das prefeituras é acompanhada pela empolgação dos vereadores em batizar novas ruas, o que reforça uma falsa sensação de legalidade. Em 2021, Locatelli enviou uma recomendação para a Câmara de Vereadores de Florianópolis para que os vereadores só dessem nomes para ruas regulares, já devidamente incorporadas ao patrimônio público. A proposta foi aceita. “Isso é só uma amostra de algo pequeno que pode ser feito para mudar as mentalidades e evitar que novas desgraças aconteçam”, diz Locatelli.

Entre as soluções que estão sendo ventiladas, muito tem se falado sobre aumentar as ofertas de moradia para a população carente. Conjuntos habitacionais com vários andares poderiam acomodar essas famílias, mas normalmente esses prédios geram repulsa entre os turistas e os proprietários de imóveis de alto padrão. Para eles, esses conjuntos típicos da periferia das grandes cidades iriam poluir o visual das praias, que ficam a poucos quilômetros do sopé da Serra do Mar. “Uma verticalização das moradias reduziria a pressão para ocupar as encostas, mas hoje há inúmeras restrições para esse tipo de empreendimento”, diz o arquiteto e urbanista Anthony Ling, diretor do site Caos Planejado. 

Conjuntos habitacionais de vários andares para pessoas de renda baixa normalmente são construídos em locais seguros, mas distantes dos cenários paradisíacos. Em São Sebastião, essa solução já foi tentada, sem sucesso. Isso porque os novos prédios foram erguidos mais ao norte, longe das praias de Maresias, Juquehy, Baleia e Barra do Sahy, onde ficam os bairros e condomínios de luxo. “Nós mandamos as famílias para a costa norte. Na hora que elas perceberam que ficaria caro percorrer 60 quilômetros até Juquehy, todos os dias, o que elas fizeram? Alugaram ou venderam as propriedades que o governo tinha dado ou financiado e voltaram a ocupar lugares em Juquehy”, disse o vereador Wagner Teixeira, de São Sebastião, ao Antagonista Docs

Áreas de alto padrão e bairros de baixa renda são interdependentes, e em todos eles há moradias irregulares. Permitir que casas de luxo avancem em zonas de risco e ao mesmo tempo remover as casas das pessoas que trabalham neles para longe é um evidente contrassenso. “É muito importante a gente entender que há uma relação muito grande entre a ocupação das encostas e os condomínios à beira mar. Esses condomínios muitas vezes se instalaram ao arrepio da lei, também com problemas ambientais gravíssimos, e precisam de trabalhadores para funcionar”, disse ao Antagonista Docs a arquiteta e professora da USP Raquel Rolnik. 

Os ricos, portanto, não empurraram os pobres para as encostas, mas os atraíram para elas. Uma medida justa seria que todos, independentemente da condição financeira, fossem punidos por infringir as leis e retirados das regiões problemáticas, de forma a preservar vidas humanas e o meio ambiente. Os recursos e as energias, então, deveriam ser gastos em outras áreas, seguindo as determinações do plano diretor de cada município. No Brasil, todas as cidades com mais de 20 mil habitantes são obrigadas a elaborar um plano de crescimento, delineando as áreas que podem ser usadas para futuras moradias de forma segura. “Se as prefeituras respeitassem os planos diretores, não teriam de lidar com os custos altíssimos de lidar com esses outros problemas”, diz Carvalho Pinto, do Insper. “Em vez disso, o que temos são órgãos públicos levando infraestrutura para casas em áreas de risco.”

A consequência dessa deturpação é aquele passivo de mais de 10 milhões de pessoas em áreas de risco. Muitas delas pagam IPTU, têm acesso a luz, água e gostam do local onde vivem. Retirar esses brasileiros de seus lares — mesmo que com um discurso a favor da preservação de suas vidas — é uma empreitada a que poucos se atrevem. Na quarta, 22, o presidente Lula se reuniu com ministros e afirmou ter identificado 14 mil pontos de risco de deslizamento espalhados pelo país, onde viveriam 4 milhões de pessoas. O ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, afirmou que o governo estuda a “desapropriação necessária” de pessoas em áreas de risco. 

O histórico, porém, ensina que políticos têm pouca vontade de comprar essa briga. Em 2009, durante o governo de José Serra no estado de São Paulo, foram removidas mais de 5 mil pessoas em áreas de risco na cidade de Cubatão, cidade na Serra do Mar e próxima de São Sebastião. Apesar da resistência do PT, os moradores foram encaminhados para conjuntos habitacionais recém-construídos. A fiscalização da área de mata foi reforçada para impedir o retorno de moradores ou a entrada de material de construção. Contudo, o programa mais tarde foi abandonado pois implicaria na perda de votos. Hoje, qualquer um que se apresente para retirar pessoas de locais de risco precisa enfrentar um exército de prefeitos, defensores públicos, juízes, eleitores e jornalistas. E o intervalo até que o país seja novamente sacudido com histórias de famílias destruídas, como as da Vila Sahy, é cada vez mais curto. 

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  1. Infelizmente estamos em um país onde a ganância e a falta de cará ter dos administradores públicos prevalece sobre as funções para as quais foram escolhidos

  2. Como em outros casos, não existe uma vontade séria de resolver os problemas de habitação no País. Principalmente as de risco. Como também não temos políticas sérias para educação, saneamento, transporte urbano, entre outros. Só promessas e encenação. Brincam de governar.

  3. Parabéns a Revista Trata se de um problema que começa com os políticos sem vergonha, passa pela justiça mal intencionada, meio ambiente ineficaz e uma população que sofre e paga pelos seus erros e dos demais poderes

  4. Parabéns pela matéria! Nada superficial … os inúmeros problemas estão enraizados no poder público que pouco ajudam e mais atrapalham 😪 a começar pela justiça, que está cada vez mais longe da população …triste 🇧🇷

  5. Até quando? Enquanto famílias inteiras de políticos e de homens públicos não desaparecerem nessas tragédias programadas eles tomarão providências. Viram aquela ministrazinha não sei das quantas, tão importante que não sei o nome dela nem ministra do quê. Pois é, o governo mandou um helicóptero lá para tirar ela e a família de um condomínio pois estavam ilhados. Quando é pra eles próprios, providências são tomadas, o povo que paga tudo que se dane.

  6. Acho errado colocar a culpa no tal do “poder público”. Como o autor explicou, tem muito mais gente envolvida - a própria sociedade é contra as remoções. Tive a oportunidade de ir a Nápoles e ver Pompéia, que foi destruída pelo vulcão Vesúvio há 2000 anos. Ela fica há vários quilômetros do vulcão, mas hoje há cerca de 1 milhão de pessoas vivendo coladinho nele, inclusive uma rodovia e casas no próprio cone do vulcão. Sei não, acho que nós humanos morremos como formigas…

  7. Ótima reportagem. Enquanto a ganância, o poder e o descaso continuar na sociedade e no poder público, situações como essa se repetirão.

  8. Não emitir carnê de IPTU para construções irregulares aí sim é que vai incentivar. Afinal, quem é que gosta de pagar imposto?

  9. Alguém disse na última tragédia que uma nova tragédia ia sempre acontecer, só não se sabia aonde e a que horas! Isso resume tudo! Vergonhoso e lamentável!

  10. O Brasil é uma terra sem lei, sem normas e sem direção. Todo mundo constrói irregularmente, todo mundo faz o que quer. Aqui nos USA, as normas de construção são rigorosíssimas, com as metragens de frente, fundo e lados determinadas pelo município. E os passeios são feitos junto com o asfalto pelas prefeituras, o que impede que se use piso escorregadio e de cores diferentes pelos moradores. Por isso que aqui é tão bonito e bem construído e aí, essa marmota. MS

    1. Na cidade de Maringa/PR vc não levanta um muro sem a supervisão da Prefeitura. Obra irregular não existe lá

    2. Então não preciso nem contar como é aqui na Alemanha, né? Em matéria de leis e regras os americanos nem chegam perto, chegam a ser caóticos. Os alemães são conhecidos como o "povo caga-regra". Aqui não é perfeito, mas também é muito bonito. Já tentei entrar no Congresso com uma regra p/ que prefeituras construam e cuidem das calçadas através do e-cidadania, só obtive assinatura de amigos e parentes, fora isso, ninguém mais interessou-se. Brasileiro só se interessa por futebol, praia e carnaval.

  11. As soluções existem, mas as medidas para efetivá-las não são tomadas. As leis são boas, mas não são cumpridas. Os fiscais das prefeituras ganham para não fazer as leis serem cumpridas.

  12. O poder público não consegue manter asfalto, jardins, árvores, enfim, nada. É preciso ser muito singelo para achar que vai se preocipar com habitações irregulares nos morros. O país é podre do cerne à epiderme...

    1. A mídia é um camaleão indecente. Adora falar mal ou falar bem. depende de que lado a grana está É a cara de cardeais da história do jornalismo brasileiro chantagens e agrados. Dependo do "projeto e do plano".

  13. É um ciclo vicioso; Prefeitura deixa invadir pra gerar votos, MP e partidos de esquerda defendem a invasão pq a turma é um bando de coitados empurrados para esse local por culpa do capital, as desgraças acontecem, um orgão culpa o outro, nada é feito, novas invasões ocorrem. Talvez uma solução seria cancelar o titulo de eleitor da turma que invade.

  14. A mesma ladainha se repete. E a imprensa reza a mesma oração. Histórias, histórias e histórias. Só salivação e palanquismo. Antes defesas de invasões e prestígio político para os aproveitadores picaretas que as lideram e saem prestigiados e ricos financeiramente. Craro! é um grande negócio. Depois, o poder público ferrado, esculhambado (num faz de conta midiático indecente, como o luloptismo/bolsonarismo que domina a mídia há mais de 13 (brasil azarado, hem?)). anos.

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