Adriano Machado/CrusoéPágina sobre os ataques aos Três Poderes já tem 250 fontes externas e 11 fotos

A disputa pela verdade na Wikipédia

A descrição de eventos como o 8 de janeiro leva a grandes embates entre os editores da Wikipedia, um dos dez sites mais visitados da internet
24.02.23

Em 2020, a revista norte-americana Wired definiu a Wikipédia como “O Último Lugar Legal da Internet” — uma afirmação que não é, de todo, exagerada: criada em 2001, ela é o sétimo site mais visitado do planeta e o único site do Top 10 que não tem fins lucrativos. Movida por conteúdo criado pelos próprios leitores, livre de direitos autorais, a plataforma serve de contraponto aos grandes negócios criados no Vale do Silício.

As 6,6 bilhões de visitas mensais (o dobro da Amazon, indica o site Statista) colocam a Wikipedia no topo dos resultados de busca do Google em diversos assuntos. Do primeiro disco de Tim Maia à lista de papas que tiveram vida sexual documentada, a lista de respostas que ela oferece é vastíssima. Para quem deseja informação rápida, a procura com frequência começa e termina na Wikipédia. Mas por trás de uma página da enciclopédia digital pode haver guerras sendo travadas.

A página brasileira sobre a invasão bolsonarista aos prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro ilustra bem a situação: discussões sobre democracia, extrema-direita  e o uso do termo “terrorismo” para os atos de vandalismo mobilizam, há mais de um mês, exércitos de colaboradores da plataforma.

Edições em série — A página sobre o tema tem o nome de Ataques às sedes dos Três Poderes do Brasil em 2023 e nesta quinta-feria, 23, assim começava:

Os ataques às sedes dos Três Poderes foram uma série de crimes ocorridos na tarde de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas extremistas invadiram as sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Governo federal do Brasil, localizadas na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

A página apontava para 250 fontes externas, 11 fotos e seis tweets, além de centenas de links internos. Mas ela começou pequena e com outra entonação: uma primeira versão, no ar a partir das 19 horas daquele mesmo 8 de janeiro, falava em “vândalos bolsonaristas”. Ao final da noite, a expressão utilizada era “terroristas bolsonaristas”. No dia 10, a Wikipédia falava de “terroristas e criminosos bolsonaristas”.

Apesar do caráter livre, a enciclopédia só pode ter seus verbetes alterados por “editores autoconfirmados estendidos” – voluntários mais experientes, que estão na plataforma há pelo menos 30 dias e com mais de 500 revisões confirmadas. A discussão sobre a invasão dos Três Poderes ocorre em um endereço separado, onde afloraram os ataques e contra-ataques.

“Por que TANTO medo da palavra ‘terrorista’? Usa-se em artigos da Wikipédia todo o tempo”, escreveu um editor no painel, às 23h daquele domingo turbulento. “Se aplicada a própria definição da Wikipédia, os invasores são TERRORISTAS.” Com maiúsculas e tudo.

“Por mais que eu concorde com vocês, tenho medo de que a ideia de apresentar manifestantes (mesmo que violentos) como uma organização terrorista (quando são apenas manifestantes violentos e que não têm respeito pelo próprio país), possa ser considerado parcial (mesmo que não intencionalmente)”, escreve outro colaborador. “Creio que imparcialidade política é essencial nessas horas e evitar uso de adjetivos para descrever um partido como ‘bom’ ou ‘mal’ seria recomendado.”

Outro atrito envolveu o nome da página: “O termo ‘invasão’”, diz um, se referindo ao primeiro termo usado na página, “não é representativo do ocorrido, eis que não ocorreram meras invasões, mas também destruição, saques e vandalismo. Portanto, sugiro a mudança para algo mais adequado aos eventos.” Quando esse editor lembra da página sobre o acontecimento semelhante ocorrido nos Estados Unidos em 2021, outro discorda: “O que aconteceu no Capitólio foi em menor número em comparação com a Sede dos Três Poderes.”

Nem sempre a coisa é amistosa e, em alguns momentos, o tom aumenta: “Acho melhor você controlar seu linguajar caso não queira que eu leve essa para a administração”, ameaça um administrador que atua na plataforma desde 2007. Outro wikipedista com 13 anos de casa perde a paciência: “A Wikipédia não é o Twitter. Não é uma democracia.”

Histórico — Nos últimos 30 dias, 9.416 editores mexeram em algum dos 1,1 milhão de artigos da Wikipédia lusófona. Alguns são mais experientes que outros e, na hierarquia, têm certas vantagens: 716 são autorrevisores e podem editar artigos sem supervisão; e 50 são administradores do site (apenas duas mulheres). São professores, historiadores, militares, jornalistas, tradutores, engenheiros, advogados e estudantes — todos voluntários.

Há uma espécie de regimento interno. Cinco pilares devem seguidos incondicionalmente (entre eles o de manter a imparcialidade e entender que regras e condutas podem ser revistas). Há políticas de conteúdo (onde novamente prevalece a imparcialidade), além de regras de estilo. O autor na Wikipédia não deve forçar a barra para comprovar seu ponto de vista, e deve buscar sempre fontes confiáveis, que sejam verificáveis e não sejam inéditas.

Não que editar o que é a verdade factual para uma enciclopédia tão ampla e tão acessada  seja simples, mas o caso do 8 de janeiro não é novidade para a comunidade lusófona: em 2015 o artigo “Impeachment de Dilma Rousseff” já era um ponto de atrito entre os editores.

“Esse verbete está sendo escrito de forma parcial” é o primeiro comentário escrito, ainda em dezembro de 2015. A discussão sobre o artigo se estende até 2021 — cinco anos após o fim do processo no Congresso. Há debates sobre o uso de palavras como “petista” (os editores não consideraram pejorativo), “golpe” — utilizada 61 vezes no artigo, em diferentes contextos — e mesmo “presidenta”. A uma dessas réplicas, um editor mais antigo novamente ponderou: “A Wikipédia não cria e nem interpreta fatos. A Wikipédia apenas reproduz o que está nas fontes confiáveis.”

Um dos que reclamaram da “falta de neutralidade” na página sobre o impeachment acabou banido no ano passado de maneira definitiva, após 26 advertências. O processo que culminou na sua saída foi definido por consenso —  outra característica central da Wikipédia. “Por exemplo, não havendo consenso sobre uma determinada alteração a um artigo, ou chama-se mais gente a participar ou então mantém-se o status quo, isto é, mantém-se a última versão da página antes do conflito”, explica o português Luis Almeida, um dos administradores da Wiki lusófona.

Em artigos ainda mais controvertidos, como a página em inglês da invasão ao Capitólio em Washington, a conversa toma 21 páginas. O tema, ainda sensível no universo político americano, levou a Wikipédia em inglês a também fechar a página para novos editores, após vários ataques de vandalismo em seu conteúdo.

Lições aprendidas — Um dos administradores da Wikipédia lusófona, o brasileiro Rodrigo Padula argumenta que a comunidade está acostumada a lidar com grandes eventos e tragédias quase em tempo real. “Fazemos desde sempre nosso dever de casa, criando e melhorando nossas regras, filtrando e classificando fontes para que em acontecimentos importantes como esses, naturalmente tenhamos mecanismos de controle e acompanhamento”, pondera.

Mesmo ele — que atua editando artigos desde 2006 —  já viu as coisas saírem de controle no ano passado, ao trabalhar na edição de outra página sensível, a das eleições de 2022. Em abril, ele foi acusado pelo portal Brasil247 de ferir o princípio da neutralidade ao retirar o blog da lista de “fontes confiáveis” a serem utilizadas em artigos da Wikipedia. O ataque, que durou meses, gerou uma rara nota de repúdio por parte da Wikipédia.

Diz Padula: “Por falta de compreensão das regras da Wikipédia e também por viés político, alguns blogs, jornalistas e até associações profissionais de imprensa se embrenharam em campanhas difamatórias contra os editores envolvidos na classificação desses veículos como não confiáveis para uso na Wikipédia.” 

Quanto à página dos atos de 8 de janeiro, ela continua aberta e livre para contribuição em 30 idiomas, entre eles galês, basco, curdo, indonésio e quéchua.

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  1. Wikipédia não é confiável. Serve no máximo de ponto de partida. Textos ruins, mal escritos, confusos, cheios de erros de português que por vezes até comprometem a própria compreensão. Antes bons livros.

  2. Meu respeito pela atitude da Wikipédia. Mas, penso que, não resistirá por muito tempo. Nada resiste aos censores da "verdade". Em breve serão cancelados.

  3. A wiki, sendo uma iniciativa gratuita e voluntária, não só tem um conteúdo de qualidade, como uma neutralidade muito mais jornalística que veículos de imprensa muito mais renomados.

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