Divulgação

365 dias de guerra, um relato pessoal

Não podemos mensurar o sofrimento dos civis, mas podemos ficar firmes ao lado deles
24.02.23

Nas primeiras horas de 24 de fevereiro de 2022, quando os tanques russos invadiram a Ucrânia, medo e apreensão se instalaram em todo continente — a guerra voltara à Europa. Alguns até previram que a Ucrânia cairia em questão de dias. Mas, em vez disso, a bravura do povo ucraniano surpreendeu o mundo. Não podemos mensurar o sofrimento dos civis, mas podemos ficar firmes ao lado deles. Diferente de muitos contextos de conflitos armados e crises humanitárias que atuei ao longo dos anos, presenciei uma crise de deslocamento forçado sem precedentes onde um continente inteiro se uniu e o mundo abriu de fato as suas portas.

Enquanto os repetidos ataques da Rússia à infraestrutura de energia da Ucrânia fazem com que milhões vivam em temperaturas abaixo de zero, sem eletricidade, água e aquecimento. Muitos também carecem de acesso a necessidades e serviços básicos, como alimentação, assistência médica e educação. O conflito matou milhares de civis e deixou 18 milhões de pessoas –de uma população de cerca de 43 milhões — necessitando de assistência humanitária. Cerca de 14 milhões de civis fugiram de suas casas, como deslocados internos ou como refugiados para outros países, como a Polônia, onde atuo desde o início do conflito em campo com a VVolunteer, primeira plataforma brasileira de ação social e humanitária.

Estima-se que entre 1,5 milhão e 2 milhões de ucranianos que fogem do conflito permaneçam na Polônia. Isso é mais do que o dobro de qualquer outro país da União Europeia (UE), onde refugiados da Ucrânia se registraram sob uma Diretiva de Proteção Temporária (DPT). A Diretiva ativada em março do ano passado fornece aos refugiados ucranianos e residentes da Ucrânia o direito de viver, trabalhar, estudar e acessar serviços essenciais nos países da UE e tem ajudado a administrar com sucesso a chegada de milhões de pessoas deslocadas.

No entanto, mesmo nas melhores circunstâncias, integrar-se a uma nova sociedade depois de ter sido deslocado à força é pleno de desafios. Cerca de 90% dos refugiados ucranianos são mulheres e crianças, que correm maior risco de tráfico humano e exploração. Diferente de outros fluxos migratórios, o atual tem uma presença significante de idosos. Desde o começo da guerra que a VVolunteer firmou parcerias com abrigos de refugiados e escolas locais, para trazer ajuda estrutural, apoio educacional, logístico e legal. Como esses abrigos foram construídos recentemente em função da guerra, a missão da VV engloba ajudar em sua estruturação, organização e administração gerando uma logística que os permita receber, acolher e orientar refugiados da melhor forma. Além, é claro, de apoiar diretamente na parte do acolhimento, saúde mental, direitos e rotina dos refugiados que aqui se encontram.

Esta semana presenciei um fluxo crescente na fronteira, tanto de refugiados quanto de voluntários saindo da Polônia para apoiar o exército ucraniano, devido às novas ofensivas. Em um abrigo com a capacidade para 450 pessoas, deram entrada 54 pessoas em apenas um dia, as vésperas da data em que a guerra completa um ano. Como a guerra deixou de ser foco midiático, é nítida a diminuição da presença de organizações humanitárias na fronteira terrestre, o que antes eram numerosas, inclusive vindas de diversas partes do mundo, hoje continuam apenas UNICEF, ACNUR e OIM, que desempenham um papel crucial em resposta ao deslocamento forçado.

Nesta ação da VV, a nossa equipe médica tem tido uma demanda intensa, devido ao aumento da deterioração do sistema de saúde geral na Ucrânia. Hoje, conversando com uma jovem ucraniana, me foi relatado que a razão de sua saída do país neste momento se deu por medo de ataques por ocasião da efeméride. Ela morava na cidade de Luhansk antes da guerra e se mudou para Kiev em abril do ano passado, quando sua família se refugiou na Suíça. Apesar de relatar que já havia se acostumado ao caos da guerra, resolveu deixar a Ucrânia e o companheiro, que não pode sair do país, devido ao pânico dos mísseis.

É nítida a preocupação de profissionais humanitários e ativistas da sociedade civil local estão apreensivos com o fato de que mesmo os ucranianos que encontraram trabalho terão dificuldade para sobreviver e que as necessidades das pessoas que escapam do conflito – incluindo assistência financeira, apoio psicológico, assistência médica e muito mais – vão além do que sistema é projetado para atender. Há profissionais da área que dizem que não foi feito o suficiente para aumentar a capacidade do mercado imobiliário polonês, sistema educacional e outros serviços essenciais para acomodar mais de um milhão de refugiados. As demandas de financiamento são justificáveis, apesar de algumas críticas de recursos e atenção serem desviados de outras crises ao redor do mundo.

A guerra provocou deslocamentos em uma escala e velocidade não vistas desde a Segunda Guerra Mundial – com impacto de longo alcance global. Mesmo se o conflito terminasse imediatamente, a quantidade de devastação é incalculável. O número de vidas que ela destruiu é excruciante. E o nível de necessidade continua a crescer exponencialmente.

 

Roberta Abdanur é mestre em direito internacional humanitário pela Geneva Academy, profissional humanitária na VVolunteer e cofundadora e diretora do SHE Institute

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. c. Parabéns! Fugindo ao lugar comum, apresenta uma visão humanitária sobre a guerra que a Rússia promove contra a Ucrânia. TUDO PELA PAZ!

  2. Muito obrigada Roberta pelo seu depoimento. Seu trabalho no VV deve ser intenso. O mundo não será o mesmo depois dessa guerra.

  3. Obrigado pela sua perspectiva e serviço. Enfim uma digna representação brasileira internacional perante esta guerra.

  4. Covarde e sanguinária a neutralidade brasileira nesta guerra de Putin. O sofrimento infringido ao povo ucraniano e russo por este genocida rivaliza com os maiores criminosos da humanidade. Não haverá paz ou prosperidade enquanto ele e seus seguidores não forem julgados e punidos com pena capital.

  5. A neutralidade do Brasil, neste conflito, é covarde e vergonhosa. Putin é disparadamente o maior genocida de nossa época. Com sua maldade e poderio bélico moderno já rivaliza em sangue derramado com seus conterrâneos Lenin e Stalin. Não pode haver paz ou prosperidade no mundo enquanto este demônio e seus asseclas destilarem estas ideias de império russo.

Mais notícias
Assine agora
TOPO