Ichiro Guerra/PTRui Falcão e José Dirceu na festa de 43 anos do PT

Uma situação pré-revolucionária sem revolução

A conjuntura mudou, mas as nossas pollyannas da análise política ainda não viram
17.02.23

Mais de quarenta anos depois, o jornalismo e o colunismo políticos não entenderam quase nada do que é o PT. São influenciados por intelectuais de academia, que escreveram teses especulativas sobre o PT (como a de que o partido é social-democrata, de centro-esquerda e outras tolices). Esse é, obviamente, um partido imaginário, fruto do desejo. Para começar a entender o partido real é preciso perceber que existem:

1 – O partido formal com suas lideranças e representantes eleitos e seus filiados.

2 – Um Partido Interno (cf. George Orwell, em 1984) composto por alguns de seus dirigentes.

3 – Um “Partido Externo” composto por simpatizantes e intelectuais.

Formou-se uma coalizão informal, em torno do partido ideológico que envolve o PT (o “Partido Externo”), composta por intelectuais, jornalistas, corporações sindicais, ongs e movimentos sociais, que avalia que a chance é agora ou nunca de avançar rumo à soberania popular — o que, para todos os efeitos práticos, quer dizer: soberania da esquerda.

Claro que os mais espertos chamam esse projeto de soberania da esquerda de redução das desigualdades, fim das discriminações, pagamento da dívida com os pobres e até de social-democracia. Mas, no fundo, o horizonte é o socialismo, na versão latino-americana do neopopulismo.

Portanto, da parte desses atores, que avaliam que se reuniram as condições subjetivas para a mudança (embora não haja condições objetivas), não se deve esperar qualquer adesão à democracia liberal. Para eles, democracia agora é sinônimo de apoio à Lula, o demiurgo da mudança.

Evidentemente, os petistas não estão pensando numa ruptura revolucionária pela força (insurreição, guerra popular, foco revolucionário). Essa não é a via do neopopulismo. A via neopopulista é vencer eleições seguidamente, se delongando no poder. Para tanto, travar uma guerra de posição, ocupar todos os espaços, hegemonizar as instituições (inclusive a imprensa) e usar o Estado (e o orçamento público) para alterar a correlação de forças a seu favor na disputa política.

Na falta das condições objetivas para caracterizar uma situação pré-revolucionária em termos clássicos, o PT aposta num símile adaptado à sua nova estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para ficar indefinidamente no governo, ganhando tempo para operar uma mudança no “genoma” do regime democrático. O objetivo é manter a democracia como democracia eleitoral (ou seja, chamar de democracia o sistema representativo dominado e instrumentalizado como guerra eleitoral), impedindo, porém, que ela alcance à condição de democracia liberal.

Feita essa mudança, teremos um regime contraliberal, que não consegue mais preferir Costa Rica a Cuba, EUA à Rússia, Alemanha à China, Reino Unido à Índia. Tudo isso é justificado, para fora, em nome de relações comerciais, que obrigariam o país a não distinguir ditaduras de democracias. Isso, evidentemente, é falso. Quando a democracia está ameaçada, os interesses econômicos devem ser sacrificados. A coalizão de democracias liberais contra a agressão de Putin, por exemplo, prejudicou as suas economias – mas essas democracias liberais, mesmo tendo prejuízos econômicos, inflação, desequilíbrios cambiais e até escassez de alguns produtos e insumos, não hesitaram em apoiar a resistência ucraniana (ao contrário do Brasil sob os governos populistas de Bolsonaro e de Lula).

Mas o fato é que a frente populista da esquerda que nos governa acha que estamos naquela que seria, mutatis mutandis, uma situação pré-revolucionária (sem revolução em termos clássicos).

Se não fosse por isso, militantes e parlamentares petistas e de partidos satelizados pelo PT não estariam replicando as falas estatizantes de Lula sobre a economia e até marcando manifestações públicas com a palavra de ordem “Fora Campos Neto“.

Se não fosse por isso, o PT não estaria renegando manter um compromisso formal com o superávit primário, não estaria cogitando retroceder nas reformas previdenciária e trabalhista e nem estaria criando dificuldades imaginárias para entrar na OCDE.

Se não fosse por isso, os fiéis governistas não estariam concordando com a avaliação de Lula de que Zelensky é tão culpado pela guerra da Ucrânia quanto Putin, nem endossando sua proposta de juntar as grandes autocracias do mundo para impor uma “paz” pela força.

Se não fosse por isso, um ministro do STF (Lewandowski) não teria o despudor de ir a uma escola de marxismo-leninismo do MST dizer que a “democracia liberal, burguesa”, não é um regime adequado.

Se não fosse por isso, o condenado Zé Dirceu não teria sido um dos destaques da festa de 43 anos do PT, realizada em Brasília.

Ironia. Aliás, está chegando a hora de o PT reabilitar todos os seus dirigentes que foram condenados ou presos e pedir indenização à União. Afinal, tudo não passou de um golpe das elites, apoiadas pela CIA e pelo FBI, para destruir a Petrobrás e as empreiteiras, tomar o pré-sal e prender o Lula? Então, se Lula foi inocentado, o mesmo deve valer para Dirceu, Genoíno, Delúbio, Vaccari, Ferreira, Palocci, João Paulo, Bernardo, Lacerda, Vaccarezza, Delcídio, Vargas e Silvinho Land Rover — entre tantos outros. O Brasil deve um pedido formal de desculpa a esses injustiçados. É pouco, porém. Além do pedido de desculpas e de volumosa indenização em dinheiro, seus acusadores e julgadores devem ser processados. Afinal, eles deram um golpe contra o PT com a ajuda de país estrangeiro e, portanto, são traidores da pátria.

Pode-se dizer que nada disso faz sentido para qualquer pessoa razoável que acompanha a política no Brasil. Mas uma das consequências da hegemonia é construir novos sentidos que passam a ser replicados por contingentes cada vez maiores de pessoas na sociedade. Esses novos sentidos são construídos a partir de um núcleo mais coeso de militantes.

Essa militância (não se fala aqui dos simples filiados) é a do PT, do PSOL, do PCdoB, em parte do PSB, do PDT, da Rede, do PV, para não falar do PCO, do PSTU, do PCB, da UP, da CUT, da UNE, do MST, do MTST, dos meios de comunicação da rede petista ou parapetista (como Brasil 247, DCM, Revista Fórum, Opera Mundi etc.) e da maioria dos movimentos sociais classistas ou identitaristas. A partir daí, os novos sentidos são transfundidos e, depois, difundidos pelos meios, digamos, culturais: artísticos, intelectuais (sobretudo das áreas de humanas das universidades federais) e jornalísticos —  com um diferencial importante nos dias que correm, quando grandes grupos empresariais de comunicação começam a atuar como departamentos ad hoc de propaganda governista.

Como se dizia, “a conjuntura mudou”. Mas as nossas pollyannas da análise política ainda não viram.

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500
  1. Viram, mas ignoram pois fazem parte da patota e juntam-se alegremente a cavar a cova que os vai engolir.

  2. Perfeito! Não tenho uma vírgula à acrescentar. Obrigada por escrever tudo que está entalado em minha garganta. Artistas, intelectuais, mídias, ladrõ.es soltos e ganhando $ e prestígio das massas mais vulneráveis. Parabéns!!!!!

  3. Perfeito. Não poderia ser dito de forma melhor. Apenas “une remarque” (para parecer mais intelectual): em meio a toda essa alegoria, o mundo não está nem aí para o Brasil.

    1. Ufa ! Até que enfim um artigo lúcido real fundamentado do que realmente o PT é capaz.Esse partido arrebenta com o Pais desde sua fundação. Me espanta que ninguem vê ninguem fala ninguem sente, é um cancer que conroi a nossa democracia e nos condena ao subdesenvolvimento, Tenho Medo. Obrigada grande Augusto de Franco,,,,,

  4. Não há liberdade fora da democracia liberal. O PT e seus asseclas querem escravizar a população e construir sobre seus ossos o “Paraiso socialista”, que existe apenas para a Nomenklatura.

  5. Por tudo o que foi falado pelo Augusto, e também por outros motivos, digo: o lulopetismo é ainda pior que o bolsonarismo.

  6. Como se essa linguagem do Liberalismo sobre a guerra, p.ex., também não fosse falsa; eles querem mais é que haja sempre uma guerrinha, aqui e ali, afinal, guerra=$$$$; o Liberalismo tá pouco se lixando pra pobreza, aliás, melhor que continue, já que, enquanto houver desempregados, sempre há argumentos contra melhoria de salários e condições de trabalho; explorar mão de obra é a regra, nunca permitir um progresso da situação em direção a um "equilíbrio", melhorar condição de trabalhador,etc

    1. Sobre liberalismo não sabe nada.. Dizer que quanto mais guerras melhor. Então é melhor fazer logo uma 3a guerra mundial para se ganhar muito dinheiro. É cada cidadão com cada raciocínio que aparece aqui..

    2. Você obviamente não sabe o que é o liberalismo.

  7. Muito bom!! Disse tudo que eu gostaria de dizer. Dá nojo ver esse pessoal de imprensa babando o molusco! Ele é ladrão, se esqueceram?! …

  8. O brasiu, como democracia liberal, de cidadãos livres, ACABOU. Luladrão e seus cupinchas já se instalaram no poder executivo, no judiciário e, infelizmente já comprou o congresso. Não vê apenas que não quer porque tem alguma vantagem.

  9. Espero que você esteja enganado… talvez existam forças no país capaz de resistir, manter a lucidez, perceber que as perdas seriam dolorosas…

    1. Mito bom, mas irretocável é exagero, afinal, ele escreveu "apoio à Lula", ou não sabe usar a crase, ou está sugerindo apoio ao molusco (o de 8 braços, não o de nove dedos) ... Eu declaro meu apoio à lula, nas churrascarias de rodízio faz muito sucesso ...

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