Reprodução/TV CulturaO ex-ministro Pedro Malan, que pode ou não ter dito que o passado é imprevisível no Brasil; se não disse, pensou

Tudo que é sólido desmancha no ar

17.02.23

“No Brasil, até o passado é imprevisível.” Essa frase geralmente é atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, inclusive pela revista britânica The Economist; num artigo, a colunista Miriam Leitão diz tê-la ouvido de Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, e de outras figuras em Brasília. Seja como for, acho que já dá para creditá-la ao inconsciente coletivo brasileiro: se Malan nunca disse isso, com certeza pensou. É um pouco como aquele “o Brasil não é um país sério” que algum espírito zombeteiro atribuiu a Charles de Gaulle, talvez porque dito em francês ce pays n’est pas sérieux soe mais chique.

As últimas semanas provaram que a imprevisibilidade do passado é mais brasileira do que Carnaval e samba, mais que o “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha” de O Bandido da Luz Vermelha, mais até que o meme “crime ocorre nada acontece feijoada”. Estou falando, é claro, da coisa julgada, que não é aquele integrante do Quarteto Fantástico no banco dos réus: seria mais divertido se fosse a Mulher Invisível julgada, o Tocha Humana julgado etc.

Todos vocês — fiéis espectadores da TV Justiça e apreciadores das fortes emoções que o Judiciário do Bananão nos proprociona — acreditavam que, quando uma decisão “transita em julgado”, não existe mais recurso possível contra ela, certo? Acabou, já era, não tem volta, c’est fini. Como diria a turma do Choque de Cultura, achou errado, otário: na semana passada, o Supremo Tribunal da Farofa autorizou sentenças tributárias já transitadas em julgado a, como direi?, transitarem em sentido contrário. Agora, empresas que deixaram de recolher a CSLL (imposto federal) apoiadas em “decisões definitivas” da Justiça vão ter que recolher, sim — e, ao que parece, fazer isso retroativamente até 2007, que foi quando nosso ilustre STF declarou a constitucionalidade do tributo.

E ainda ouvimos Luís Roberto Barroso dizer que quem não pagou esse imposto desde 2007 “fez uma aposta”, numa espécie de “perdeu, mané” reloaded. Como não concordar? Foi trouxa quem apostou que, neste país em que prevalece a jurisprudência do jeitinho, nenhum recurso seria jamais capaz de mudar uma decisão transitada em julgado. Temos, afinal, um descondenado na Presidência porque o Supremo subitamente (ou seja, depois de uns cinco ou seis anos do caso rolando) se deu conta de que a 13ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência para julgá-lo. Ficou claro que “sentença definitiva” na Justiça do Bananão tem o mesmo sentido de “permanente” nos cabelos e que, como dizia o velho Karl Marx, tudo que é sólido desmancha no ar — sobretudo se aquilo que é sólido dificulta que o Estado meta ainda mais a mão no seu, digamos, bolso.

(Não estou falando, é óbvio, de coisas como a revisão da sentença de um condenado à morte. Muito menos defendo que leis sejam “eternas”; fosse assim, teríamos escravidão e expressões como “mulher honesta” no Código Penal até hoje. Mas, em lugares como os EUA, a Suprema Corte leva cinco décadas para revogar decisões como Roe x Wade, sobre o direito ao aborto no país; aqui, como diria um Lévi-Strauss, o que é canteiro de obras num instante vira ruína.)

Já que Lula, apesar dos meus constantes apelos, não cria o Ministério do Vai Dar Merda, sugiro aqui um Ministério da Insegurança Jurídica, para que o Executivo dê sua colaboração a esse trabalho essencial do Judiciário. A pasta poderia, por exemplo, promover sorteios para definir que artigos do Código Penal deixam de valer (“atenção, Brasil, hoje o 171 tá liberado!”) e quais outros, de quaisquer outras leis, estarão vigorando (“nesta segunda, vamos matar a saudade do Código de Hamurabi”). Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha.

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A GOIABICE DA SEMANA

Reportagem de O Globo conta que, após a reforma do ensino médio, alunos de escolas públicas no Brasil estão cursando matérias dos “chamados itinerários formativos, voltados para áreas de conhecimento de formação técnica do interesse dos jovens”. Na prática, isso significa que eles estão fazendo aula de RPG (o jogo, não a fisioterapia), brigadeiro caseiro e “mundo pets”, enquanto disciplinas caretas como história e geografia perdem carga horária. Estamos nos encaminhando para um mundo em que aqueles cursos do Instituto Galático Brasileiro de Hermes & Renato — curso de bateção de portas, de bebeção de água, de colocamento de comida no prato etc.— vão deixar de ser paródia.

Bruno Sutter, de Hermes & Renato, apresenta cursos do Instituto Galático Brasileiro

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  1. "nesta segunda, vamos matar a saudade do código de Hamurabi" ahahahahahaha Goyaba é sensacional sempre!

  2. Excelente matéria. Infelizmente temos uma suprema corte que é a maior responsável pela atual insegurança jurídica.

  3. Os ptralhas vão venezuelizar o país com consistentes contribuições desse stf que nos envergonha. Insegurança jurídica é uma realidade presente e futura. E a aniquilação do senso crítico nas escolas faz parte do processo.

  4. Lula/PT d volta na presidência do país é, antes d tudo, uma tragédia. E tbém é vergonha, piada, ironia, ridículo. Tragédia pois se durante 4 mandatos do PT constatamos os fatos que todo mundo já conhece e Lula não mudou, a tragédia se repete. Vergonha por ter um STF+sistema q permite um condenado em 3 instâncias c provas irrefutáveis, seja solto adquire direito a se candidatar à presidência. Piada pois é hilário, Ironia: Lula derrotou quem + contribuiu p soltá-lo, instituições ridículas SOSMoro!

  5. Até hoje não consigo aceitar essa desculpa sobre a incompetência da 13º Vara Federal de Curitiba de julgar o descondenado após 6 anos. É óbvio que só acredita nisso os luloafetivos. O demais envolvidos direta ou indiretamente, os outros réus, presos, multados etc. , sabem que foi uma jogada.

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