Flickr/Hernán PiñeraMáscaras para a festa: precisamos de ilusões

E tudo se acabar na quarta-feira

Festa popular brasileira rejeitada pelo novo patriotismo, o Carnaval guarda um fundo de melancolia que os melhores compositores e poetas trazem à tona
17.02.23

Tristeza não tem fim. Tudo teimando em ser tão ruim.

Então é Carnaval. E eu nunca pulei na rua, nunca entrei num bloco, nunca caí na folia. Ruim da cabeça e doente do pé, bom sujeito não sou. A ausência total de ginga e ritmo integra-se à inesgotável lista das minhas inabilidades físicas e insuficiências intelectuais, que também inclui a incapacidade de chutar a bola na direção do gol (ou, na verdade, em qualquer direção), a insensibilidade gustativa que me impede de distinguir a maciez dos taninos (?) em um bom vinho e a absoluta falta de talento para o verso, livre ou metrificado.

Vejo o Carnaval de longe, quando cruzo com os blocos que ocupam a minha vizinhança ou quando dou uma espiada nos grandes desfiles, pela TV. E o que mais me fascina no Carnaval é seu fundo inescapável de tristeza.
Sim, o Carnaval me parece uma festa triste.

Minha percepção talvez seja confirmada pelos versos de duas canções diferentes, que fiz rimar lá no início do texto (quem não sabe versificar brinca com o verso alheio). O primeiro deles vem de A Felicidade, parceria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Essa canção diz que a felicidade, ao contrário da tristeza, encontra seu fim na Quarta-Feira de Cinzas. O segundo é de Desde que o Samba É Samba, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A letra não menciona o Carnaval, mas nem precisa: o samba ainda é o ritmo por excelência da festa. “Cantando eu mando a tristeza embora”, diz o refrão. Os compositores baianos estariam contradizendo Tom e Vinícius? Não creio. Há ambiguidades demais na canção: “O samba é o pai do prazer / O samba é filho da dor”. E tudo teima em ser ruim.

Em compositores como Cartola e Lupicínio, encontram-se outras tantas canções tristes, de uma tristeza que não deriva apenas do amor que se acabou ou não foi correspondido – uma tristeza metafísica, existencial. Assim é também nessa afronta de Guilherme de Brito à alegria fútil: “Tire seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor”. Nesses casos, talvez fosse até mais apropriado falar em melancolia, se a palavra não bagunçasse a prosódia de canções como A Felicidade e Desde que o Samba é Samba.

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A melancolia não é incompatível com a alegria carnavalesca. Na verdade, os dois são parceiros inseparáveis: a alegria só se sabe alegria quando em oposição complementar à tristeza, que retorna depois do confete, da fantasia, do delírio, do desbunde, da pegação. Grosso modo, é esse o trajeto lírico de Manuel Bandeira em seu livro Carnaval. “Quero beber! Cantar asneiras / No estro brutal das bebedeiras”, lemos em Bacanal, o segundo poema da coletânea. O poeta venera Baco e pede vinho, muito vinho (nada se diz sobre a “maciez dos taninos”). Nos poemas que se seguem, a melancolia acaba ganhando o dia, ou a noite. O último verso do livro é “O meu Carnaval sem nenhuma alegria!”.

Poetas que não conheceram o Carnaval brasileiro também entendem a melancolia que atravessa as datas reservadas à felicidade. Em A Noite do Dia de Festa, o italiano Giacomo Leopardi escuta, tarde da noite, o “solitário canto” de um artesão que vem pela estrada, voltando a sua casa casa “depois da orgia”, e essa voz passageira desperta a consciência da transitoriedade da vida: “Vai-se o dia festivo e lhe sucede / Outro dia vulgar, e assim o tempo / Desfaz a humana lida” (tradução de Ivo Barroso). Em um poema belamente musicado pelo cantor e compositor Vitor Ramil, Fernando Pessoa – aliás, Alberto Caeiro, seu heterônimo bucólico – ouve a algazarra de uma noite de São João, mas a festa acontece para além do muro de seu quintal: “Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos. / E um grito casual de quem não sabe que eu existo”.

São três sujeitos líricos muito diferentes em sua relação com os dias de festa: Bandeira entra de cabeça no Carnaval; Leopardi chega a participar dos folguedos, mas se afasta logo; Caeiro não ultrapassa o muro de seu quintal. Em comum, todos sabem que a festa é uma ilusão: alegria fugaz, depois da qual sobra só um trabalhador embriagado que cantarola no caminho de volta para casa. Mas e daí? Precisamos de ilusões.

Há quem se engane achando que pode viver em uma festa permanente, como se alegria afinal não cobrasse seu preço em dissipação, tédio e ressaca. Mas o Carnaval é uma festa honesta, com o encerramento bem definido por esse dia de título tão lúgubre – a Quarta-Feira de Cinzas.

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A pandemia adiou e suspendeu tantas festas… No Brasil, calhou de os anos da peste coincidirem com um governo francamente hostil ao reinado de Momo, quando são permitidas as mais variadas inversões e subversões sociais, culturais e sexuais. Quebrou-se aquela que talvez fosse a única ilusão duradoura do Carnaval: a ideia de se tratava de uma festa da brasilidade, de que os trios elétricos, os blocos e as escolas de samba carregavam o que existia de mais espontâneo e autêntico na alma do país. Hoje sabemos que há um contingente enorme de brasileiros que associam “desfile” a motos e tanques fumacentos, não a carros alegóricos, tamborins e dançarinas seminuas. É direito deles, claro. O Carnaval perverso da Horda Canarinha, a orgia de destruição promovida em Brasília – isso já foi um crime.

Encerrou-se o ciclo anticarnavalesco, e por um tempo veiculou-se a noção mentirosa de que a festa já havia começado em janeiro. O clichê da cobertura televisiva do Carnaval foi conjugado ao lugar-comum da cobertura televisiva das eleições: a festa da democracia não tem hora para acabar. Pois acabou, e não por obra dos penetras que tentaram melar as celebrações, mas porque os promotores da festa gostam mesmo é de causar barracos sem sentido. Não há alegria, nem melancolia, onda se cultivam rancores antigos.

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Há a melancolia do Carnaval e há a melancolia da pobreza. São distintas, mas às vezes coincidem. Em Sr. Ferreira, conto de Um Pobre Homem, seu livro de estreia, Dyonelio Machado – mais conhecido pelo romance Os Ratos – apresenta as agruras de Domingos José Ferreira, pai de família, alcoólatra, ex-farmacêutico, que recorre à caridade alheia na tentativa vã de prover o lar com oito filhos.

O narrador do conto, dono de uma agência comercial, é um entre outros homens abonados que se dispõem a ajudar Ferreira. Tem, no entanto, certa aversão à “figura insignificante” do eterno pedinte. Em uma noite de Carnaval, ele vai a um baile na companhia de Santelmo, seu sócio, que no dia anterior dera dinheiro para mais uma vez socorrer Ferreira, cuja esposa passava por uma grave crise de saúde. Pois está Santelmo bebendo seu chope quando entra no salão um homem fantasiado com uma longa barba postiça. É o Ferreira! Santelmo perde a cabeça e interpela o miserável: como ele pode cair na farra quando a mulher está à beira da morte? Não tem vergonha de se divertir enquanto seus filhos passam fome?

A resposta de Ferreira:

– Mas eu não estou me divertindo.

O conto ainda segue por um quarto de página, com o narrador tentando conter a exaltação de Santelmo, mas deveria ter se encerrado com essa frase: “Mas eu não estou me divertindo”. Dyonelio, que era médico psiquiatra, demonstra aí uma profunda compreensão da psicologia da miséria – não apenas da miséria econômica, mas da miséria moral.

Publicado há quase um século – Um Pobre Homem é de 1927 –, Sr. Ferreira talvez funcione como uma alegoria do melancólico estado carnavalesco em que nos achamos hoje. Há, dizem, uma festa. Mas não estamos nos divertindo.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Bravo. Sim, a melancolia do samba é uma das facetas que o tornam fascinante: o cantor pode estar dilacerando seu coração, mas o ritmo é rápido, de toque apressado, enquanto a melodia se alia a letra triste. Essa mistura resulta fascinante. Quanto ao "carnaval triste", concordo. A festa é cada vez mais uma altura de extravazar um sentimento de descontentamento reprimido qual gás numa garrafa de espumante. É uma euforia desesperada, não alegre como de outros carnavais.

  2. Carnaval era pra mim, quando era obrigado a me divertir, uma enorme tristeza. Hoje tenho a alegria de não ser obrigado a me divertir.

  3. Gostei desses comparativos, e continuo indignada quando lembro da frase "Carnaval é a única alegria do pobre". Deve vir de alguém que mora em uma "comunidade" no rio de Janeiro. O mesmo que acorda na quarta-feira, de ressaca, e falta ao trabalho. Perde o emprego, mas vai contar essa façanha à noite, quando encontra com seus amigos no boteco. Na quinta-feira todos vão jogar "no bicho" para ver se enriquecem fácil. Tai a educação de milhares de brasileiros.

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