Dall-EImagem produzida pelo Dall-E, da mesma empresa do ChatGPT: cadê a outra metade?

O robozinho dos lugares-comuns

ChatGPT entrega respostas em texto a partir de milhões de páginas, mas é incapaz de raciocinar ou de lidar com duas verdades
10.02.23

Você, caro leitor, provavelmente já ouviu falar do ChatGPT. Ao entrar no site da empresa OpenAI, é possível enviar uma pergunta em português ou dar uma ordem ao programa que, em poucos segundos, dá uma resposta. O resultado é impressionante e rendeu inúmeras reportagens.

A melhor forma de explicar o funcionamento do ChatGPT é a partir das ferramentas de email e de busca que sugerem complementos para um texto quando ele ainda está sendo escrito. Quando uma pessoa escreve em um buscador como o Google “como fazer…”, a página sugere seguir com “bolinho de chuva”. Isso ocorre porque milhões de buscas anteriores, feitas por outras pessoas, continham essas palavras, nessa ordem.

O ChatGPT vai um pouco mais além, usando a mesma fórmula. Quando alguém pergunta se “carpas possuem dentes?”, a resposta não é simplesmente “não”. O programa consulta bilhões de textos na rede e devolve com: “Não, carpas não têm dentes na boca. Elas têm dentes no estômago para triturar alimentos duros”. Esse tipo de inteligência artificial é chamado de “generativa”, justamente por gerar textos que fazem sentido para a nossa leitura e compreensão, a partir de milhões de repetições anteriores.

A primeira consequência desse método é o uso abusivo de jargões. O ChatGPT, portanto, incorre no mesmo problema dos emails em inglês. Expressões que se tornaram famosas de tão cansativas no mundo corporativo, justamente pelo excesso de repetição, acabam sendo reforçadas de forma insistente pelos assistentes de geração de e-mail, “pasteurizando” executivos pelo mundo afora.

Por exemplo, ao iniciar um e-mail, uma sugestão comum após escrever “Hi“, é o programa completar com “hope this e-mail finds you well” (espero que este e-mail te encontre bem, em inglês). No final da mesma mensagem a recomendação é de “hope to hear from you soon, best regards”. Outro jargão.

É assim que, a partir de uma ferramenta que facilita o dia a dia, as pessoas aprendem a serem mais parecidas umas com as outras — e com o senso comum.

O mesmo padrão se repete nas respostas do ChatCPT. “Médicos venezuelanos foram escravizados no Brasil?”. A resposta é: “Não, os médicos cubanos não foram escravizados no Brasil. Eles participaram de um programa de cooperação médica entre o Brasil e Cuba, conhecido como Mais Médicos, que teve como objetivo fornecer atendimento médico em áreas carentes e remotas do Brasil. Embora tenha havido críticas sobre as condições de trabalho e os salários dos médicos cubanos, não há evidências de escravidão ou trabalho forçado envolvidos no programa.”

Um leitor atento da Crusoé e de O Antagonista com certeza não teria uma resposta tão inocente para essa pergunta, e certamente não replicaria o senso comum como o ChatGPT faz.

Ainda assim, essa capacidade do chat de responder em formato de texto a partir de tantas repetições deixou professores de escolas em pânico. Com esse recurso, os alunos poderiam elaborar artigos e responder questões em provas.

De fato, se o que o professor espera de seus alunos é que eles decorem uma matéria e devolvam em forma de texto o seu conteúdo, esse papel já pode ser feito pelo ChatGPT. Mas esse temor só acabou colocando em evidência a precariedade da nossa educação. Professores devem estimular o pensamento crítico, a criatividade e o trabalho em grupo, coisas que a vida e o exercício das profissões vai de verdade exigir na vida real. Se o aluno preguiçoso encontrou um chat pra chamar de seu, o professor deve ir além, entender a nova realidade e partir para o próximo passo. A chegada do ChatGPT, assim, pode ser uma oportunidade para que eles evoluam.

Os professores, aliás, já deveriam ter aprendido isso com o surgimento do Google.

A comparação entre o ChatGPT e o Google permite ainda mais algumas conclusões interessantes. Alguns especialistas disseram recentemente que o  novo programa, que teve 100 milhões de acessos em uma semana, acendeu um “alerta vermelho” no Google.

Com certeza, acendeu. Isso porque a experiência que as pessoas têm no chat é bem mais amigável do que no do buscador. O ChatGPT pode pegar a mesma busca que alguém faria no Google, misturar o conteúdo das respostas, juntar tudo em um caldo (recheado de senso comum) e devolver em forma de texto, usando uma sequência frequente de palavras.

Aqui vai um exemplo de como essa interface é melhor. Quando uma pessoa digita “voos diretos de São Paulo para Flórida” no Google, o resultado não é satisfatório nas primeiras três páginas. Propagandas misturadas com blogs e conteúdos escritos de propósito para aparecer na primeira página do Google dominam a experiência e não respondem diretamente à pergunta. Para piorar, alguns cliques depois o usuário é perseguido por banners muito chatos, tentando vender passagem e hospedagens.

Já uma busca ainda mais específica no chat, incluindo o nome da companhia aérea trouxe a seguinte resposta: “A [nome da companhia aérea] oferece voos diretos do aeroporto de São Paulo-Guarulhos (GRU) para diversos destinos na Flórida, incluindo Miami (MIA), Fort Lauderdale (FLL) e Orlando (MCO)“.

Resultado simples, em uma única frase, sem propaganda irritante. Parabéns para o Chat.

Porém, é preciso fazer algumas ressalvas. A primeira é em relação à perda de diversidade. As páginas apresentadas pelo Google trazem diversas empresas e pessoas, com diferentes opiniões e interesses. É claro que todos usaram de técnicas para aparecer em uma boa posição. Mas isso pode ser considerado, até certo ponto, democrático. Por outro lado, o ChatGPT junta tudo o que encontra em um senso comum. É bom pra quem tem pressa (ou preguiça), mas ruim para quem quer se aprofundar a partir de opiniões diversas.

Essa perda de diversidade também afeta aqueles autores de conteúdos que esperam receber dinheiro em troca de suas publicações. No Google, a pessoa ou empresa que tiver a melhor resposta para uma pergunta frequente será mais visualizada na página que traz os resultados das buscas e terá seu site mais acessado. Os autores, assim, poderão ser recompensados de alguma maneira, vendendo produtos ou publicidade. No ChatGPT isso não acontece. Como o programa junta informações de milhões de páginas, fica impossível saber de quem ele tirou maior aprendizado. Os autores desaparecem. Muitos deles ensinaram o algoritmo, mas não receberão um tostão por isso.

Mais uma ressalva importante é que a resposta do ChatGPT pode simplesmente estar errada. Quem ligar na companhia aérea para conferir sobre voos entre São Paulo e a Flórida vai escutar de um atendente que há voos diretos apenas para Miami. O ChatGPT erra porque só traz dados até 2021, mas os voos diretos para Orlando foram cancelados em 2000, há três anos.

Outra limitação do ChatGPT é que ele é incapaz de criticar ou raciocinar. Uma curiosidade bem conhecida sobre o cantor Roberto Carlos é que ele odeia a cor marrom. Quando pedimos ao chat para ele elaborar “perguntas inteligentes para Roberto Carlos, fã da cor marrom“, o programa dá dez opções. Entre elas: “Qual é a sua música favorita que você já escreveu com uma tonalidade marrom?” e “Como a cor marrom se relaciona com sua personalidade e estilo musical?“. E para piorar: “Como a cor marrom se encaixa na história e evolução da música popular brasileira?“.

O ChatGPT também não consegue lidar com duas verdades. Pergunte a ele se “os signos mudaram depois que Plutão deixou de ser planeta“. A resposta poderá conter afirmações contraditórias no mesmo parágrafo, como “a astrologia se baseia na posição aparente dos planetas, a partir da perspectiva da Terra” e “os signos astrológicos são determinados pela posição relativa dos planetas em relação ao sol“. O programa não consegue interpretar o que seriam “duas verdades“, nem criticar ou pensar a respeito.

Outro produto de sucesso da OpenAI chama-se Dall-E que, em vez de texto, responde com imagens. Sua capacidade de raciocinar é parecida com a do ChatGPT. Ao pedir uma “pintura de Van Gogh de um robô burro vestido como palhaço se afogando debaixo d’água”, o programa respondeu com a imagem que ilustra este artigo.

Como se pode constatar, o robô aparece cortado ao meio. O motivo pelo qual ele aparece pela metade pode parecer impossível de entender, mas é simples. Foram analisadas milhões de imagens que, por qualquer motivo, apareceram cortadas. Ou, então, robôs não costumam ser tratados de corpo inteiro quando estão debaixo d’água. Para a inteligência artificial não interessa o motivo, pois não há raciocínio aqui, apenas repetição.

O mérito do ChatGPT e do Dall-E está em popularizar o tema da IA e trazer a discussão para o dia a dia das famílias. Será preciso repensar desde o emprego dos pais até como as escolas dos filhos lidarão com isso. Diferente do etéreo metaverso — cortina de fumaça criada na época em que o Facebook precisava desviar a atenção das críticas por seus diversos erros em relação à privacidade, concorrência desleal e influência nas eleições — o ChatGPT é real.

É importante que todos discutam as inovações que impactam nossas vidas, suas limitações e seus avanços. A inteligência artificial existe há 40 anos e tem dado contribuições importantes para a nossa sociedade. Uma startup americana consegue, a partir de milhões de comportamentos detectados no telefone celular, como quantidade de acessos, força, velocidade e aplicativos, prever se a pessoa está com depressão. Isso é conseguido a partir das milhões de repetições observadas no passado, em outras pessoas. Outra empresa usa a inteligência artificial em processos seletivos, reduzindo o impacto do viés inconsciente dos recrutadores, que costumavam preterir mulheres e negros. Uma startup brasileira usa a inteligência artificial para fazer um ranking dos melhores médicos, de acordo com o histórico deles (como a formação acadêmica e o número de cirurgias que apresentaram problemas). A partir daí, sugere os doutores mais apropriados para os funcionários das empresas. O custo com o plano de saúde pode cair até 30%.

Esses são apenas alguns exemplos de como a Inteligência artificial já está criando valor no marketing, nos negócios, na saúde, na área de recursos humanos, em todos os lugares. O ChatGPT apenas popularizou a discussão ao criar uma interface amigável, muito amigável.

E, para terminar: nenhuma parte deste texto foi escrita pelo ChatGPT. Zero.

Diferente dos jornalistas que adoram começar com textos escritos pelo chat e depois revelar tal autoria, aqui a ideia não era a de criar mais um artigo de senso comum. Talvez agora, mais do que nunca, fique claro o diferencial que faz ser bem informado, estudar e construir uma opinião própria.

 

Fernando Teixeira é autor do livro Inteligência Artificial em Marketing e Vendas (Alta Books), é formado no MBA de inovação do MIT e sócio da KORO Martech

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500
  1. Chamar o ChatGPT é forçar a barra. É um programa de recolha de dados providos por humanos na internet, só isso. Tem mérito pela incrível velocidade e capacidade aglutinadora das respostas, mas passa longe de ser uma IA verdadeira. Ainda não será esse a causar o declínio do homem kkkkkk

  2. a chave mestra da nossa identidade é a linguagem. se a terceirizamos perdemos a capacidade de sermos indivíduos. tristes tempos.

  3. A imagem do robô cortado pode ter sido uma referência à orelha cortada do famoso pintor imortalizada no auto retrato. Creio que a ferramenta fez uma excelente imagem!!!

  4. Fui professora universitária por 35 anos. No trabalho ainda não existia esse ChatGPT, mas já era muito fácil achar no Google "Faça sua Dissertação ou Tese em 1 hora"!!! Anúncios desses automáticos. Só consigo imaginar é como grande parte dessas pesquisas serão apresentadas, especialmente em Universidades "meia-boca". Mas, o difícil mesmo é mudar um programa, um método, uma didática para esses novos tempos. Só espero que resolvam logo pois o futuro é agora, e as consequências são nefastas.

  5. Um adolescente fascinado por esse "Chat" veio me mostrar os incríveis feitos. . Fiz uma brincadeira baseada no filme Clube do Imperador. e disse a ele que perguntasse quem foi Shutruk-Nahunte. A resposta inicial foi que "Era uma cidade do interior de São Paulo fundada por alemães...". Um texto de 4 parágrafos com informação errada do começo ao fim! Depois, mandei pesquisar na wikipedia e expliquei o erro. Ele mandou um feedback para o programa. Semanas depois, corrigiram!

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