ReproduçãoLula e Bolsonaro: pantomima de iguais, enquanto os donos do poder compartilham o butim com permanente despudor

Ninguém ganhará a guerra da autonomia do BC

No fundo, o embate de Lula com Roberto Campos Neto expõe um sistema de exploração de uma casta de mandatários, eleitos por voto popular
10.02.23

A guerra retórica de Lula contra os juros altos e a gestão de Campos Neto, nomeado por Bolsonaro, vitimará a economia, ou seja, o cidadão.

A autonomia do Banco Central (BC) na gestão de Roberto Campos Neto, nomeado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, tem sido combatida de forma veemente pelo sucessor desse último sob o argumento de que os juros altos são os maiores responsáveis por fome, miséria e baixo crescimento econômico. No fundo, a guerra expõe sem subterfúgios, não o conflito entre pobres e ricos, que, segundo o petista, perderam a eleição. Mas as deficiências estruturais de um sistema de exploração de uma casta de mandatários, eleitos por voto popular, nomeados por apadrinhamento político ou detentores de cargos, salários e aposentadorias, negados aos expropriados, que não têm renda, mandatos ou funções públicas privilegiadas. A autonomia da autoridade monetária é relativa, ao contrário dos mandatos com reeleições permitidas a perder de vista, que de populares não têm nada, das pensões centenárias das descendentes do oficialato armado e das trocas permanentes de favores em que se baseiam excrescências absurdas como os infames orçamentos secretos.

A troca de farpas entre a esquerda empoderada por 60 milhões de fotos e a direita encastelada em escritórios de luxo ou gabinetes vitalícios é apenas a fímbria do tapete puído sob o qual se ocultam vantagens seculares e opressão sem limites. Filha natural de parto a fórceps, usado pela direita cruel para dar retoques ideológicos da escola de Chicago e do campo de torturas improvisado no Estádio Nacional de Santiago, a entrega da gestão da moeda à burocracia doutorada para conter ímpetos de gastança da politicagem amestrada é um floreio retórico. De fato, os donos do poder, de que tratou o jurista Raymundo Faoro, em seu tratado clássico, compartilham o butim com permanente despudor.

Como dizia Jânio Quadros, que foi prefeito, governador e presidente (de mandato que ele mesmo encurtou), o material orgânico produzido pelos intestinos republicanos é compartilhado sem disputa por insetos, que mudam de distância com regularidade evidente. Campos Neto, com o apoio da entidade que se compraz em atuar como demônios, ou seja anjos caídos, o tal do mercado, não demoveu em um milímetros seu ex-chefe de seus gastos absurdos com cartões corporativos nem das despesas imorais com que tentou, em vão, garantir a reeleição na urna – já que não teve competência nem força armada para tomar o poder a golpes. Agora, com metade do mandato provido de autonomia sob o tacão do mestre metalúrgico, o economista grã-fino limita-se a acusar os golpes do florete do chefe adversário com a famosa palavra francesa que acusa o golpe indolor: touché, tocado. Toque que não fere, sangue que não jorra, garante-o a diversidade colorida e esbaforida do colegiado que o julga: o Congresso Nacional. Tanto que os lugares-tenentes do novo estatuto não fazem eco aos disparos verbais do poderoso chefão, mas fazem o jogo que interessa aos dois lados da contenda inexistente. É do jogo, senhores. Adeus, populismo de direita. Bem-vindo, pobrismo da esquerda. Rola, roleta, rola.

É uma pantomima de iguais. Lula e Bolsonaro subiram ao pódio no segundo turno dividindo o proscênio de uma tragicômica polarização. Para conseguir os votos necessários para superar o parceiro de ringue, Lula pregou uma pacificação de ânimos na qual nunca apostou: afinal, foi ele quem inventou o nós contra eles e o mapa do Brasil dividido ao meio entre rubros e auriverdes para derrotar o parceiro de cartas e truques e garantir para o futuro a polarização que racha o País nos lares, nos templos, nas praças e nas ruas. Com a garantia permanente de que um dia o derrotado voltará, repetindo a própria saga, em vez de apertar a mão de quem não o sufragou cospe nela na certeza histórica de que quem não tem um inimigo a vencer no jogo sujo da política pátria não terá uma faixa a envergar, mesmo que esse não a entregue. Mais do que a autonomia ou a volta à submissão da autoridade monetária aos interesses eleiçoeiros dos chefões políticos vale na verdade a disponibilidade dos cofres que pagam as aventuras dos amigos de além fronteira, seja a Hungria, seja a Nicarágua.

Bolsonaro nunca escondeu de ninguém que não lhe interessa fazer amigos para influenciar pessoas, pois prefere gerar inimigos para intimidar cidadãos. Na sua vez, seu substituto não perde a oportuna ensancha de dar jóias estatais à mulher do fiel servidor Rui Costa, chefe de sua Casa Civil e marido da enfermeira Aline Peixoto, conselheira do Tribunal de Contas da Bahia com salário vitalício de R$ 42 mil por mês. Novidade nenhuma, prezados leitores, gregos e baianos.

“Triste Bahia, ó quão dessemelhante”, rosnava Gregório de Mattos. E continuava seu soneto o Boca do Inferno: “Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, / Rica te vi eu já, tu a mi abundante.” Ou seja: assim era a Bahia de todos os santos e orixás no século 17, quando vivia o poeta e praguejador. E assim a banda ainda toca, também em ritmo de axé, nestes tempos de algoritmos e posts.

A frente ampla de Lulinha pacificador foi substituída por campanhas como essa contra a autonomia do neto de Bob Fields. E, sobretudo, pela reconstrução de duas patranhas mais difíceis de engolir: a plena indulgência gozada pelos políticos de todos os jaezes que reescreve a História do Brasil com o beneplácito de muitos humildes. Dilma Rousseff, deposta da Presidência pelo martelo de seu companheiro Ricardo Lewandowski, virou vítima do golpista Michel Temer, seu companheiro de chapa, escolhido pelo chefão do Partido dos Trabalhadores e comandante em chefe do Diário Oficial do Poder Legislativo sediado em Salvador. Muito necessários ainda serão os Gregórios de Mattos, que em quaisquer plagas da antiga Pindorama tiver queixas a fazer dessa casta encastelada e dominante. Com baraço, cutelo e o chumbo da imprensa oficial.

 

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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  1. JÂNIO: " forças ocultas " movidas pelas Hanna Mining Co. e da U.S. Steel causaram a renúncia. JANGO ,revivendo Getúlio, teimou: queria entrepostos no Mar Adriático - Balcâns... Santo Deus... -) para exportar minérios. Daí as " verde$ americana$ " e o Oliva bra$ileiro , irmanado$ , o derrubaram também. Jumento carrega minério mas não pode vendê-lo... E dizem que a tragédia é Grega...

  2. " Presepe de bestas "( G Matos ). Esquerda e direita - Rejeição: 61 e 62% , respectivamente. Na contramão de evolução econômica e moral instituições viciadas mantém a " Serpente (regime ) de duas cabeças. Corrupção e intolerância: mestátase contamina nação . 3ª via... direito natural de Revolução... NÊUMANE , o " Farol da Ilha "... ( renovação garantida... ). Ouro ( juros ) para o bem do Brasil. Herança de 66 ?

  3. Bolsonaro e Lula representam o que há de pior na política. É triste seus respectivos corregionários ficarem se atacando entre si.

  4. Gostei da forma como colocou o dedo na ferida das "zélites"! Quando Bozo desgovernada, o mercado não deu um pio, mas assim que o novo presidento assumiu, começou a porrada.

  5. Tá tudo dominado e minha última esperança de ver alguma mudança estava no Partido Novo. Agora já não tenho tanta certeza …

  6. A Bahia, a mãe-terra, onde foi rezada a Primeira Missa, onde Pedro Alvares Cabral aportou em 1500, terra do grande Castro Alves, nosso Camões tupiniquim, merecia melhor destino! Pobre povo baiano, tão imerso em sua religiosidade, suas questões raciais, suas festas e danças, seus encantos geográficos - não percebe o quanto é roubado e massacrado diariamente!

  7. Esse cara é um artista político, destrinchou essa cambada todinha em uma pseudo poesia, com uma certa dose de criatividade. Muito bacana. Gostei.

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