ReproduçãoO peruano Castillo, que está preso, com o chileno Boric, que viu proposta de Constituição ser rejeitada

A marolinha rosa

Presidentes de esquerda se elegeram em vários países da América Latina, mas pesquisas sinalizam uma queda drástica da popularidade da maioria deles, já no início dos mandatos
30.12.22

De forma reiterada, a mídia e também as universidades vêm defendendo que a América Latina está passado por uma “onda rosa”, na qual os governos de esquerda chegam ao poder através do voto para executar um pretenso governo social. Para que haja uma maior problematização do assunto, é importante conhecer o que significa esse conceito, entender se de fato ele tem sido observado no nosso continente e até quando pode durar.

O cientista político americano Samuel Huntington foi quem inicialmente apresentou a ideia de movimentos políticos coordenados, chamando-os de ondas de democratização. De acordo com o autor, ao longo dos últimos séculos, foi possível verificar processos simultâneos e regionais de construção  tanto de regimes democráticos como de autocráticos pelo mundo. É fácil constatar, por exemplo, que nas décadas de 1970 e 1980, a América Latina vivenciou um processo de reabertura democrática, que culminou na substituição das instituições políticas de diversos países da região. Isso ocorreu quase ao mesmo tempo na Argentina, no Chile e no Brasil.

Na esteira desse conceito, pode-se observar, também, algumas tendências dentro do espectro ideológico que caracterizam os países latino-americanos. Ressalvadas as diferenças da aplicação do termo – que inicialmente marca uma mudança de regime – mesmo dentro de uma mesma estrutura institucional é possível observar movimentos mais à esquerda ou mais à direita em muitos dos países desta região.

O uso da cor rosa para adjetivar o movimento se dá porque é uma forma de amenizar o vermelho, típico dos grupos de esquerda em todo o mundo. Para os seus protagonistas chegarem ao poder, foi necessário deixar para trás as ideias revolucionárias e adaptar-se ao sistema democrático procedimental. Organizados em partidos políticos em diversos países da América Latina, os grupos de esquerda conquistaram a liderança especialmente no final dos anos 1990, até meados dos anos 2000.

No Brasil, a representação desse movimento se deu nos governos do Partido dos Trabalhadores, com Lula e Dilma Rousseff. Na Argentina, com a ascensão de grupos peronistas ligados principalmente ao nome de Néstor Kirchner. Na Bolívia, com Evo Morales. No Uruguai com Tabaré Vázquez e José Mujica. Na Venezuela, com Hugo Chávez. Trata-se de uma onda ideológica, pois eles foram eleitos presidentes de forma sequenciada e, em certos momentos, governaram simultaneamente. A integração, sobretudo na América do Sul, tomou novos rumos diante da composição de esquerda vista neste período.

A onda foi interrompida em tempo mais recente com a alternância de poder em alguns países que optaram por grupos mais conservadores. A América Latina vivenciou momentos de crise dos partidos de esquerda. Dilma Rousseff, no Brasil, sofreu um processo de impeachment em 2016. Dois anos depois, a principal liderança do seu partido, Lula, foi preso por corrupção. Na Argentina, a presidente Cristina Kirchner também foi submetida a várias investigações, perdendo a liderança em seu país.

ReproduçãoReproduçãoO colombiano Petro visita o ditador venezuelano Maduro: retomada
Morales, na Bolívia, renunciou à presidência e se autoexilou no México. A instabilidade peruana colocou na chefia de governo o presidente o liberal Pedro Pablo Kuczynski. No Chile, ocorreu o retorno de Sebastián Piñera ao poder, substituindo a socialista Michelle Bachelet. A esquerda ficou de fora da pauta política.

A nova onda rosa da América Latina se destacou nos últimos cinco anos. Nesse período, os presidentes conservadores perderam espaço e popularidade. A queda do apoio a governantes que chegaram ao poder com um discurso anticorrupção e baseados em valores e princípios do conservadorismo foi gradualmente dando lugar a um retorno dos populistas de esquerda. Inflado por índices econômicos negativos, o aumento da pobreza na região e as crises internacionais, o discurso das políticas sociais ganhou fôlego.

Na Argentina, o presidente Maurício Macri foi substituído em 2019 por um nome importante do Partido Justicialista, o professor universitário Alberto Fernández, que participou ativamente dos primeiros governos Kirchner. Na Bolívia, um aliado do ex-presidente Morales, Luis Arce Catacora, foi eleito presidente. No México, chegou ao poder Andrés Manuel López Obrador, com um discurso populista e falando para as camadas mais humildes.

A onda progressista continuou alcançando outros países com a eleição de Gabriel Boric no Chile, de Gustavo Petro na Colômbia, de Pedro Castillo no Peru e mais recentemente com o retorno de Lula, no Brasil. Sem contar com o permanente governo autoritário de esquerda instalado na Venezuela, desde os anos 1990, que não se abateu com a morte de Chávez e continuou com seu sucessor, Nicolás Maduro.

Trata-se, realmente, de um movimento de retorno da esquerda ao poder. Não há mais dúvidas de que vivemos nos últimos anos uma retomada da onda rosa. É necessário, entretanto, aprofundar-se nessa tendência e questionar se ela é uma onda duradoura como foi anteriormente ou se é apenas o resultado de incertezas e crises vividas no cenário mundial, as quais afetam o resultado dos pleitos eleitorais no nível doméstico.

A esquerda que agora chega ao poder encontra os países em outro patamar. Não há o quadro de estabilidade econômica visto nos anos 2000. Na época, os cofres estavam cheios, as conexões comerciais eram prósperas e as estruturas financeiras estavam solidificadas. É completamente diferente o que se vê agora. Na esfera social, vemos países divididos, com eleições muito disputadas, com processos eleitorais questionados e um nível de violência política que há muito tempo não se via entre os países latino-americanos.

A crise sanitária da Covid, que ainda faz vítimas em todo o continente, produziu um estrago nas contas públicas de muitos países. Investimentos não planejados, dificuldades comerciais e crises inflacionárias levaram classes inteiras à condição precária de sobrevivência. A guerra no leste da Europa também trouxe impactos negativos para a região, sobretudo em produtos importantes para a nossa subsistência.

ReproduçãoReproduçãoLula recebe o argentino Fernández: aproximação
As dificuldades de governar os países da América Latina já se apresentam nos primeiros meses dos governos da esquerda na região. No Chile, o presidente Boric viu sua desaprovação subir para 57% em novembro. Após apoiar um novo texto constitucional mais inclusivo e progressista, o presidente viu a proposta naufragar em um plebiscito. A sociedade chilena hoje está amplamente dividida.

No Peru, reina o caos. Depois de tentar um golpe de Estado por meio da dissolução do Congresso, o presidente Castillo foi preso e pede a sua extradição para o México. Na Argentina, o governo Fernández vive um momento tenso: crise inflacionária, aumento da pobreza extrema e dificuldades em arcar com os compromissos internacionais. A economia está em frangalhos.

Recentemente eleito, o presidente colombiano Gustavo Petro enfrenta grandes dificuldades em seu país, marcado pela violência de grupos criminosos transnacionais ligados ao narcotráfico. Não há clima para um governo tranquilo.

Com exceção do presidente boliviano Luis Arce Catacora e do mexicano López Obrador, os principais institutos de pesquisa sinalizaram uma queda drástica da popularidade dos presidentes de esquerda eleitos na região já nos primeiros meses de mandato. Em suma: antes mesmo do seu ápice, a onda rosa já começou a se transformar em uma marolinha na América Latina.

Em um momento de debilidade social na região, o discurso assistencialista e populista ganhou um fôlego novo. Esqueceu-se, entretanto, que fazer política pública exige recursos financeiros que os países não dispõem neste momento. Um discurso de esperança não será suficiente para amainar os ânimos em tantos países e fazer com que uma onda de sucesso de partidos de esquerda seja sustentável.

Fernández já não é mais o preferido para continuar no poder na Argentina. Sua taxa de rejeição chega perto dos 70%. Nomes como o de Patricia Bullrich, ex-ministra de Maurício Macri, e do libertário Javier Milei ganham a preferência dos nossos vizinhos. No Brasil, os desafios do terceiro mandato de Lula são crescentes diante de um Congresso mais conservador e da evidente presença de grupos bolsonaristas em todas as camadas da sociedade. No Chile, o presidente Boric está negociando com partidos de direita a redação de uma nova proposta constitucional. No Peru, a nova presidente Dina Boluarte antecipou as próximas eleições, enquanto tenta se segurar no cargo. Na Colômbia, Petro se desdobra em negociações complexas.

A esquerda latino-americana não tem o que comemorar. Embora tenha obtido êxito em eleições de diversos países, as falhas desses grupos políticos e a incapacidade de mostrar resultados podem reverberar de forma negativa no futuro próximo, comprometendo suas perspectivas políticas.

 

Christopher Mendonça é cientista político e professor de Relações Internacionais no Ibmec de Belo Horizonte

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500
  1. Espero mesmo que essa marola risa não acabe um caos. Em nenhum país comandada pela esquerda da certo a não ser como em Cuba e Venezuela com.o que há de pior: ditadura implacável, corrupção e uma pobreza justamente daquela parcela que dizem defender. Aqui vamos ter os mesmos problemas:os alucinados e incompetentes ministros da esquerda, um presudente msis do que ignorante e extremamente populista, irresponsavrl com dinheiro público como já demonstrou e para coroar o bolo, sua mulher !!!

  2. Sem nenhuma dúvida nós logo estaremos comemorando com muita PICAnha no rabicó a bela democracia à moda cubana, venezuelana e nicaraguense primores de liberdade e dignidade e certamente o canelau vai adorar a libreta a cesta básica cubana com 12 quilos prum mês e um salário mínimo de 2 dólares como na Venezuela ex 4º país mais rico do mundo ... nós chegaremos lá nem duvidem.

  3. A imprensa começou a bater no governo. Calma que o orçamento p M Comunicação é de VINTE BILHÕES, leva mais quem bater mais.

  4. Ótimo artigo! E isso mostra que o populismo só leva à corrupção e acaba prejudicando muito mais is menos favorecidos. É nesse caminho que estamos no Brasil também

  5. E qual a grande novidade apresentada no artigo? Em que lugar do mundo esse populismo progressista de esquerda trouxe algo de bom para os países governados por esses despreparados esquerdistas? É só retórica, promessas impossíveis de se realizar, mentiras, e políticas econômicas voluntarista e atrasadas. Esse povo não compreendeu que o Estado não gera riqueza. Só usa o dinheiro do contribuinte para gastar irresponsavelmente, comprar políticos, e se manter no poder. É evidente que não dá certo!

  6. A corrupção tem sido e ainda é o motor e o principal problema da esquerda na América do Sul. A dificuldade de identificar e se afastar da histórica corrupção dos governos peronistas na Argentina é um exemplo contundente. No momento em que a sociedade aceita o “rouba mas faz” o destino do país está comprometido.

    1. A Corrupção é a engrenagem mestra do sistema que elege "representantes" que somente se ocupam em assegurar suas re-eleições e para isto se vendem para o populista de plantão que, por sua vez, é conivente e até tambem se vale da corrupção sistêmica para se manter no poder, principlamente "comprando" o apoio do judiciário.

  7. Um falso conservador, um jacobino, corporativista sindicalista, provocou a onda rosa. Tomara que a “direita” aprenda a escolher melhor suas lideranças.

    1. Concordo. Não vejo a hora de Lula ter que se refugiar em algum dos seus países "amigos". Mas que a população não me invente de revitalizar Bolsonaro. Um incom.petente, nar.cisista, mal-educ.ado e tantos outros adjetivos que nem caberiam aqui.

  8. Grande é a perspectiva de que algo semelhante ocorra no Brasil. O governo de transição já foi uma demonstração disso: tiveram que defenestrar a figura de Guido Mantega rapidamente e dar uma dose reforçada de calmante a Lula pra que turbulência desnecessária não tomasse proporção indesejável antes mesmo de " o homem" começar a governar. Oremos.

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