Carlo Rovelli: “Você quer saber de ciência? Então eu vou lhe contar mais e mais”

Tudo é relativo (mesmo)

30.12.22

É preciso imaginação para entender O Abismo Vertiginoso. Em seu livro mais recente, o físico italiano Carlo Rovelli antecipa o que ele aposta que será conhecimento comum no futuro, ensinado em colégios, mas que hoje parece saído dos romances de ficção científica: a mecânica quântica. As novas descobertas da física contradizem preceitos clássicos da ciência. Revelou-se, por exemplo, que um mesmo objeto pode estar em dois lugares ao mesmo tempo; assim como pode se teletransportar de um ponto a outro.

Rovelli desvenda ao leitor os bastidores da história – cheia de reviravoltas intelectuais – das revolucionárias teorias quânticas, e explica essa nova forma de pensar a realidade. Na entrevista a seguir, o cientista de 66 anos, autor de best-sellers e comparado frequentemente a Stephen Hawking (1942-2018), antecipa o tema de seu próximo livro, previsto para 2023, e exibe sua veia tuiteira ao versar sobre assuntos como desmilitarização, redes sociais e filmes de super-heróis.

 

A física quântica tem presença na cultura popular, como quando é citada para explicar histórias com multiversos em filmes de super-heróis. Essa divulgação é boa para a ciência?
As pessoas falarem do assunto demonstra que há um crescente interesse por ele. Também é lindo ver como artistas se inspiram no nosso trabalho para imaginar ficções. Mas é fato que está havendo algum abuso no uso do termo “quântico”. Algumas vezes de forma ingênua. Noutras, como fraude. O que chamam por aí de medicina quântica é um exemplo. Nada tem de quântico. Nada tem de medicina. É só mais uma forma de pegar dinheiro de pessoas que estão sofrendo. Acreditar nisso é como cair na lábia de ambulantes que vendiam açúcar como se fosse remédio, na Idade Média.

A internet tem sido o principal palco das interpretações ingênuas e das fraudes?
Sim. A internet é uma ferramenta fantástica que nos permite acessar uma enorme quantidade de conhecimento. Mas é um presente envenenado por uma quantidade, também imensa, de coisas bobas, estúpidas, sem sentido. Todo navegador deveria trazer um enorme anúncio: não acredite em tudo que lê na internet! Não devemos proibir as pessoas de falarem, mas a sociedade precisa criar formas de se proteger do perigo dessas coisas estúpidas. Obviamente, o fenômeno não surgiu agora. Há umas quatro décadas, uma grande amiga minha  acreditou que curaria um câncer de mama apenas com medicamentos naturais. Uma doença que já tinha caminhos de cura pela medicina tradicional! Ao decidir colocar sua vida nas mãos de um curandeiro, acabou morrendo. Esse tipo de fake news se espalha em escala muito maior com as redes sociais. As pessoas têm de ser ensinadas a não acreditar em blábláblá.

Apesar das críticas, o senhor é bem ativo no Twitter, onde tem 40 mil seguidores e fala de diversos assuntos, não só de ciência. No seu perfil, promoveu movimentos que pedem a redução global de gastos com recursos militares, assim como opinou serem hipócritas as críticas feitas ao Catar durante a Copa do Mundo. Por que esse interesse em tuitar?
Não sou apenas um cientista. Sou um cidadão e, assim, faço parte da conversa à minha volta. Além disso, como físico, sou pago para pensar. Intelectuais – e incluo nessa categoria, os artistas, os filósofos, os cineastas – não tomam as decisões que guiam a sociedade. Isso cabe aos políticos eleitos. Intelectuais são aqueles que usam seu tempo para refletir e oferecer novas ideias. São, ou deveriam ser, pensadores livres, cuja mente não foi comprada por ninguém. Por isso, vejo como dever moral do intelectual contribuir com os debates da  sociedade.

Em O Abismo Vertiginoso, o senhor apresenta teorias difíceis de serem entendidas até pelos físicos. Como popularizar esse conhecimento, evitando assim os erros de interpretação, o blábláblá?
As teorias quânticas vão se tornar parte de nossa compreensão básica do mundo. Porém, levará tempo para isso acontecer, como demorou mais de um século para aceitarem o modelo heliocêntrico de Copérnico. A ciência anda devagar. Neste momento, sabemos que a teoria funciona. Ela tem sido usada na prática para vários avanços tecnológicos, em campos como engenharia, química, astrofísica. Só que ela traz resultados contraintuitivos, como que um objeto pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. As predições estão corretas, sabemos disso, mas não há consenso sobre como explicar esses novos achados. Enquanto os cientistas não chegarem a um acordo, não alcançaremos o momento em que a quântica passará a ser ensinada nas escolas.

O livro apresenta as diferentes interpretações da mecânica quântica e o senhor deixa claro que tem um lado nesse conflito intelectual. Qual é a melhor forma de entender a teoria?
O caminho menos complicado é também o melhor. Partimos da afirmação que  as propriedades dos objetos são relacionais. O exemplo mais claro é o da velocidade. Medimos a velocidade em relação a outro objeto — e usamos a palavra para designar tanto pessoas quanto coisas inanimadas. Creio que, assim como a velocidade, todas as propriedades físicas são relativas. A partir desse raciocínio, podemos começar a compreender a mecânica quântica. Um  elétron pode aparecer numa posição para um observador, mas em outra para outro, num mesmo momento. Na realidade descrita pela física quântica, isso equivale a estar em dois lugares ao mesmo tempo. É isso que os cálculos mostram. Existem alternativas a essa teoria. Alguns cientistas afirmam não que um objeto pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, mas que existem vários universos paralelos. Penso que esses colegas estão mal orientados.

Divulgação

O senhor cita no livro uma série de inovações que só existem pelas descobertas da mecânica quântica, como computadores superpotentes.  Quais serão os próximos avanços?
Teletransporte, por exemplo, é algo que já foi feito em laboratório. Mas apenas com elétrons. Não é como em Star Trek. Governos e empresas também têm investido em computação quântica. Há muita expectativa, assim como incertezas. A verdade é que é difícil prever. Aliás, a maior parte das previsões científicas não se concretiza. Em vez de serem cuidadosamente planejadas, inovações tecnológicas têm o hábito de aparecer de surpresa. Os únicos que já conseguiram adivinhar com maior exatidão são os escritores de ficção científica. Como Júlio Verne, que no século XIX escreveu sobre submarinos e voos à  Lua.

Por que o senhor também costuma recorrer a outros campos do conhecimento, como a filosofia, para explicar os progressos da física?
Sempre houve um diálogo. Muitos dos maiores cientistas tinham uma ligação com a filosofia. Einstein lia Kant, Jung, Schopenhauer. A física fundamental necessita desse tipo de inspiração. Assim como na filosofia, nós criamos formas de pensar a realidade. Eu procurei esse tipo de estímulo. Achei no filósofo indiano Nagarjuna, do século II, uma visão útil de mundo na qual nada existe de forma independente. Ou seja, tudo só existe ao interagir com o outro. Ideias como essa, séculos depois, clarificam o meu entendimento da teoria quântica.

Essa abordagem relacional aparece em outros campos, como na linguística e na neurociência. Está em curso uma mudança de forma de pensar a realidade?
Essa perspectiva relacional hoje está espalhada pelas áreas do conhecimento. Na economia, tudo é sobre a interação entre agentes. A psicologia não é sobre a mente isolada, mas sobre como ela se relaciona com o mundo. Nossa própria identidade é formada a partir do contato com outras pessoas e coisas. A física, que antes tentava ver os objetos isoladamente, agora percebe que isso é impossível. É assim que a civilização funciona. Ela avança a partir de mudanças de perspectiva. No último século, a visão de que tudo existe apenas a partir de como se relaciona com o mundo tem nos permitido desenvolver melhores formas de interpretar a realidade.

Seu primeiro best-seller, Sete Breves Lições de Física, era simples de entender.  A Ordem do Tempo, sua segunda obra de alcance popular, foi uma leitura mais complicada. Agora, O Abismo Vertiginoso nos apresenta conceitos difíceis até mesmo para físicos. Esse trajeto era inevitável?
Quando Sete Breves Lições de Física foi um sucesso global, a editora que publica minhas obras recomendou: “Fantástico! Você achou uma fórmula. Agora é só repetir”. Para mim, seria como enganar os leitores. Prefiro assim: “Ok, você quer saber de ciência? Então eu vou lhe contar mais e mais”. A leitura foi ficando mais desafiadora, livro a livro. E o público gostou. Mas meu próximo livro será mais curto e também sobre algo mais simples: buracos negros e buracos brancos.

Não tão simples assim, certo?
Mas não tão complicado quanto mecânica quântica.

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500
  1. Os livros de Carlo Rovelli são obras de fácil leitura voltadas ao público em geral! São excelentes, leitura obrigatória para quem gosta de ciência!

  2. Filipe, vc usa bastante a palavra "interpretação". Sobre esse tema, sugiro a leitura de Pensamento pós-hermenêutico em 6 partes https://emporiododireito.com.br/leitura/pensamento-pos-hermeneutico-um-contraponto-cibernetico-a-subcultura-da-interpretacao-parte-i#.Y6YKQHoGqsI.link

  3. Há muito sabemos disto e o ADMIRÁVEL MUNDO NOVO de Aldous Kuxley escrito em 1932 já mostrava o porvir onde será a tecnologia que mudará o mundo e o ser humano e isto se faz numa progressão geométrica incrível onde as ideologias se tornam ridículas ou meros instrumentos de dominação de ditadores impondo suas taras e insanidades às nações ... lembro que a saída prevista para controlar as massas seria o "soma" nada mais que o Prozac e outras já usadas em larga escala.

  4. Genial esse Carlo Rovelli. Só uma boa observação faltou. Não seria possível que ele como italiano parasse de falar! Buracos Negros e sua contrapartida cósmica, os buracos brancos, são temas muito mais simples.

  5. Ou seja, tudo se existe ao interagir com o outro. Penso que o correto seria.. Ou seja tudo SÓ existe ao interagir com outro. Que tal terem um revisor?

  6. Dois objetos ocupando o mesmo espaço ao mesmo tempo! Não estaria o amado mestre reduzindo o tempo a uma grandeza infinitesimalmente desprezível? Se não, estamos diante de um paradoxo de tempo e de espaço.

    1. Na verdade, Mauro, é um objeto ocupando infinitos espaços ao mesmo tempo e que assume uma posição apenas quando medido. De qualquer maneira, a posição é relativa, por conta de algo chama-o entanglement ou emaranhamento. Assim, todas as outras posições possíveis também podem ser acessadas, mesmo após a medição, daí a possibilidade de teletransporte.

    2. Deixe a mente livre pra sonhar. A mecânica quântica permite isso. Por que 1 corpo não pode ocupar 2 espaços ao mesmo tempo? Ou o contrário?

  7. A ciência quântica , um objeto ocupa dois espaços ao mesmo tempo e o mais fazia de entender , o lugar em que o objeto está e o lugar onde ele também ocupa outro lugar no meu campo visual , e poderia ocupar outros na medida que me posiciono em relação ao objeto em questão , e assim não seria dois o campo de visão mais infinito se levarmos em conta somente o espaço. MDM

  8. A vida humana é uma Filosofia. Filosofia somente existe em humanos. Mas, o preconceito à Filosofia é normal nestes mesmos humanos. Poucos humanos conseguem perceber na Filosofia um meio de conseguir alcançar soluções necessárias. Neste planeta deveria ser obrigatório o tão temido ato de " filosofar" .

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