Flickr/Egisto SaniPorcelana com lançador de disco na Grécia Antiga: 480 a.C.

Corram, humanos, corram

30.12.22

O Brasil detém um vice-campeonato pouco conhecido e que deveria ser mais comemorado. O país é o segundo em número de academias, com cerca de 30 mil unidades, atrás apenas dos Estados Unidos, que possuem 41 mil, de acordo com o IHRSA Global Report de 2021, relatório global sobre o mercado fitness. Está entre os líderes no pódio a despeito de ter apenas a sétima maior população global. Quando as pessoas se exercitam nas academias, nos clubes e nas ruas, correndo e pedalando, repetem um comportamento que está com os seres humanos desde os seus primórdios.

Se, no prelúdio da humanidade, homens e mulheres tinham de se mexer muito se quisessem sobreviver, hoje, a maioria da população está bem longe de atingir a meta recomendada pela Associação Americana de Medicina: caminhar, no mínimo, 10 mil passos por dia. Na pré-história, atividades como correr, caçar, subir em árvores e fazer longas caminhadas, por exemplo, faziam parte da rotina básica das tribos nômades primitivas. Com todas as benesses e inovações do mundo moderno, o número médio de passos que alguém dá por dia é de 4.961. E o Brasil está entre os últimos colocados neste ranking, com 4.289 passos diários, em média. Os dados são de uma pesquisa da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, que acompanhou 700 mil pessoas em diversas cidades do mundo que concordaram em compartilhar anonimamente suas caminhadas diárias através de um aplicativo de celular.

A história dos exercícios físicos vem de tempos remotos, mas com muitas idas e vindas até sua consolidação como modo de vida e, posteriormente, comprovação científica de seus benefícios. Ao longo de dezenas de milênios, eles se transformaram de ações cotidianas e necessária para algo cultural e lúdico a até hedonista, passando por treinamentos militares e jogos esportivos. Com base em uma série de pesquisas, o arqueólogo J.K. Anderson, em seu livro Hunting in the Ancient World, reconstituiu o cotidiano de algumas comunidades pré-históricas. Além de confirmar o que já se suspeitava — tais povos estavam em constante movimento —, ele provou que algumas comunidades, após excursões bem-sucedidas de caça e coleta, faziam viagens de mais de 30 quilômetros para tribos vizinhas para visitar amigos e familiares. Juntos praticavam danças e jogos culturais que costumavam durar várias horas.

Há cerca de 12 mil anos, a revolução agrícola neolítica permitiu que mais pessoas vivessem em grupos e comunidades maiores, e como a especialização das ocupações reduziu a quantidade e a intensidade das atividades físicas relacionadas ao trabalho, curandeiros e líderes tribais começaram a enfatizar que a vida longa e a saúde dependiam da prevenção doenças através de alimentação adequada e atividades físicas. De acordo com o livro The Paleolithic Prescription: A Program of Diet and Exercise and a Design for Living, de Boyd S. Eaton, Marjorie Shostak e Melvin Konner, tais prescrições para a saúde, incluindo recomendações de exercícios, são muito anteriores às diretrizes da filosofia e da medicina gregas clássicas.

Na China antiga, por volta de 3mil a.C., a obra Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo descreveu, pela primeira vez, o conceito de que a harmonia humana com o mundo era a chave para a prevenção de enfermidades e uma vida longa. Mais recentemente, também na China, mais ou menos em 200 a.C., começou a prática de Tai Chi Chuan, um complexo sistema de exercícios com movimentos lentos e harmoniosos. A prática, globalizada hoje em dia, demonstrou melhorar a coordenação motora, o equilíbrio, a capacidade cardiorrespiratória e, de acordo com pesquisas, diminui a incidência de quedas em idosos.

Outra atividade oriental bastante difundida e popular no mundo todo é a ioga. Embora sua origem exata seja motivo de controvérsia, é certo que o conjunto de posturas, alongamentos, exercícios respiratórios e meditativos existe há, ao menos, 5 mil anos. A palavra ioga é derivada do sânscrito yuji e significa união, numa indicação que o conjunto de movimentos promete reunir harmonicamente corpo e mente. Acredita-se que a prática foi criada por sacerdotes hindus que desenvolveram os exercícios observando animais e outros elementos da natureza. Grande parte das origens sacras mantem-se ainda hoje, como a busca por equilíbrio e bem-estar físico e espiritual.

Somente nos EUA, mais de 12 milhões de pessoas praticam ioga atualmente. Em 2021, ano marcado pelo lockdown e enfrentamento da pandemia de Covid-19, a prática de da ioga dobrou em relação a 2020. Para Shailvi Wakhlu, diretora-sênior de dados da consultoria Strava, que realizou a pesquisa por meio do número de downloads e usuários ativos em apps de ioga, a atividade se intensificou na pandemia por não necessitar de espaços amplos e nenhum equipamento além do próprio corpo.

Flickr/Agência BrasíliaFlickr/Agência BrasíliaAula de Tai Chi Chuan, em Brasília: início em 200 a.C.
Mas talvez nenhuma outra civilização tenha mantido uma relação tão reconhecida e íntima com os exercícios físicos do que a Grécia antiga. O ideal de perfeição física grego era não apenas estético, mas ético. O belo era também o bom. Antes dos gregos não há paralelo na história em termos da valorização da beleza física, incluindo atributos como musculatura definida e simetria. O lema Mens sana in corpore sano (uma mente sã num corpo são), posteriormente imortalizado pelo poeta romano Juvenal (circa 55 — 127), era um estilo de vida corriqueiro, levado a cabo até por pensadores — estátuas antiquíssimas de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), feitas antes da era cristã, retratam-no bem marombado.

Os principais protomédicos gregos, incluindo o “pai” da medicina Hipócrates (460 a.C. – 377 a.C.) e Galeno (129 – 217), contribuíram decisivamente para a importância do bom condicionamento físico para se ter uma vida saudável. Nas escolas gregas, a gymnádzein (literalmente, exercitar-se nu) era tão importante quanto as aulas de lógica e filosofia. A prática, que posteriormente originou a palavra ginástica e também a atual educação física, incluía corridas, saltos e luta corporal. Os gymnasion (escolas de ginástica, em grego) eram muito populares na época e abrigavam centenas de jovens orientados por Pedótribas, os primeiros preparadores físicos e treinadores profissionais. E, claro, não há como não mencionar que por volta dos anos 770 a.C., os gregos criaram as Olimpíadas, a maior ode à beleza dos corpos humanos em movimento já inventada.

Os gregos conseguiram disseminar as práticas lúdico-esportivas para seus substitutos mais próximos cronologicamente, o Império Romano e o Bizantino, mas quase tudo se perdeu na fragmentação linguística, cultural e social da Idade Média. Muito novos jogos foram criados — a obra Homo Ludens, do historiador holandês Johan Huizinga, disseca muitas dessas disputas lúdicas — mas a atividade esportiva como estilo de vida e meio para a vida saudável perdeu força e vigor.

A concepção aliando atividades físicas e vida saudável só voltou à moda no Renascimento, com a publicação de Arte Ginástica (De arte gymnastica, de 1569), o mais famoso livro sobre exercícios já feito, escrito pelo médico italiano Girolamo Mercuriale. Homem de múltiplos interesses e saberes — um renascentista paradigmático —, Mercuriale é um dos protagonistas do livro Sweat: A History of Exercise, do escritor americano Bill Hayes. A seminal obra do italiano é um dos primeiros tratados de medicina com ênfase na fisioterapia e na ginástica como práticas auxiliares à boa condição de saúde. O texto teve e continua tendo uma influência enorme na popularização dos exercícios físicos, diz Hayes.

Em seu relato, Hayes descreve como praticou muitos exercícios — caminhada, corrida, natação, spinning, ciclismo, boxe, squash — até se transformar em um “rato de academia”. Curioso e pesquisador experimentado (Sweat é seu sétimo livro), o autor investiga a história cultural e científica do exercício, desde os tempos antigos até os dias atuais, demonstrando como a atividade física evoluiu desde seus primórdios até se transformar, em suas palavras, numa “obsessão moderna”. A obra tem um corte bem específico, concentrando-se nos exercícios voltados para o bem-estar e à saúde, uma forma de atividade física distinta de esportes coletivos, brincadeiras físicas ou esportes individuais.

O exercício ganhou grande popularidade no século 19, no âmbito da Revolução Industrial, com a mudança dos campos para as cidades. Havia preocupações sobre o sedentarismo e o aumento de peso. Em resposta, houve gradualmente um aumento mundial do que era chamado na época de ‘cultura Física’, que incentivava formas diferentes de exercício”, diz Hayes para Crusoé. Não coincidentemente, datam dessa época, meados do século 19, os primeiros aparelhos individuais de exercícios feitos em escala industrial, como as bicicletas, os halteres e outros tipos de pesos domésticos.

Depois, já na década de 1950, o epidemiologista britânico Jeremy Morris conduziu os primeiros estudos clínicos em larga escala comprovando cientificamente que o exercício realmente reduz a morbidade e a mortalidade — e proporcionam melhor saúde física e mental. “O fato de que praticar atividades físicas faz bem e leva a uma vida mais saudável é conhecido intuitiva e empiricamente há milênios” — afirma Hayes — “Mas foi só na década de 1970 que o estilo de vida fitness tornou-se uma cultura global”, completa.

E de volta à Grécia antiga, além dos benefícios, parte do hype em torno deste modo de vida recupera elementos do mito de Narciso, algo facilmente comprovado na profusão de fotos e vídeos de pessoas malhando nas redes sociais. Hayes crê que “elementos narcisistas” sempre caminharam juntos do culto ao corpo e é quase impossível dissociar a busca por uma boa forma física e a necessidade de autopromoção de algumas pessoas. “Vamos ser sinceros, as pessoas se exercitam para ficarem bem nuas”, disse o escritor americano. Certamente há muito suor e alguma verdade nisso.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. A tendencia hoje ao se referir a eras passadas é retirar a conotação religiosa tipo AD ou AC ou DC. Ao se referir a anos anteriores ao nascimento de Jesus se fala before common era (BCE) em portugues antes da era comum (AEC) ou era comum (EC). Crusoe como revista laica deveria saber disso.

    1. Então ela teria que primeiro dar uma aula sobre o assunto. Em meus 72 anos de vida nunca ouvi falar sobre isso. O fato de se escrever AC ou DC é só uma referência do tempo, nada a ver com religião. Como dizem os alemães "vamos deixar a igreja na aldeia". Minha avó diria "cê tá venu chifri em cabeça de cavalu,ômi"

  2. Muito bom o artigo. Sou praticante e entusiasta dessa prática, mas sempre me pergunto porque a tartaruga vive tanto …

  3. Que bom ler um pouco de história. E concordo com aquelas últimas palavras “queremos ficar bonitos nus”.

    1. O que temos hoje é somente o "corpore sano". Há uma obsessão em ter o corpo perfeito e um excesso de vaidade, o que não parece cair bem em homens. O sentimento de pertencimento à manada também colabora para o "bem estar".

Mais notícias
Assine agora
TOPO