CarlosGraieb

Pecados da língua

04.11.22

A língua já foi considerada um dos órgãos mais perturbadores do corpo humano. Todas as palavras que um homem pronunciava eram atribuídas a ela. Por isso, no século XII, proliferaram na Igreja católica os tratados que catalogavam e analisavam não os pecados da boca ou da palavra, mas os pecados da língua, tais como a blasfêmia, a mentira, a adulação, a zombaria, a jactância, a tagarelice ou a discórdia.

Quatrocentos anos mais tarde, os sábios continuavam preocupados com a língua. Erasmo de Roterdam, exemplo máximo de humanista, hoje conhecido principalmente pelo tratado satírico Elogio da Loucura, dedicou um livro inteiro a esse “pequeno órgão flácido” que, no entanto, tem o poder da vida e da morte, como dizem os Salmos. Na mesma época, pululavam obras com títulos como O Veneno da Língua, O Comando da Língua e A Língua Domada.

Jair Bolsonaro passou quase toda a sua carreira política sem controlar a própria língua. Disse barbaridades a granel – não, eu não vou repeti-las – e sempre esteve convicto de que isso não lhe causaria nenhum mal. Foi só na reta final das eleições que a ficha caiu. As pesquisas lhe mostraram que seu modo de falar impedia muita gente de votar nele. Sua língua o havia desgastado. Bolsonaro baixou o tom de voz, começou a escolher palavras com cuidado e, principalmente, se desculpou. “Peço desculpas humildemente se meu modo de falar estiver impedindo você de fazer a escolha certa”, disse ele aos eleitores. Tarde demais.

Lula, que está de volta, também tem a língua solta. A certa altura, durante a campanha eleitoral, ele enfileirou uma tal sequência de asneiras sobre violência contra mulheres, a humanidade dos policiais e “facções” religiosas, que muita gente se perguntou se os tropeços na própria língua não lhe custariam a vitória.

No último domingo, depois do resultado das urnas, Lula fez um discurso de comemoração. Ele tinha um texto pronto para ler, cheio de mensagens conciliatórias. Mas antes, lá vieram algumas palavras de improviso, em que o presidente eleito “parabenizou” aqueles que votaram nele, em vez de se dirigir a todos os brasileiros, cantou vitória sobre quem tentou “enterrá-lo vivo” e jactou-se por ter derrotado a máquina do governo. Não houve nada que fosse chocante — mas a língua, que tem vida própria, resolveu ignorar que o momento deveria ser dedicado a palavras de pacificação e deixou no ar algumas notas de raiva e ressentimento.

Nossos antepassados não estavam errados ao tratar a língua como uma entidade autônoma. É mais fácil confrontar um inimigo externo do que passar o tempo se recriminando pela própria grosseria ou estupidez. Talvez exista, dessa maneira, até mesmo alguma chance de vencer a batalha. Infelizmente, essa sabedoria se perdeu. A política brasileira têm sido um verdadeiro compêndio de pecados da língua e não deve melhorar nos próximos anos. Todo mundo quer governar os outros, mas ninguém se preocupa em  governar a própria língua.

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  1. Olavo Bilac, se referiu ao idioma português como a última das filhas da língua latina “A última flor do Lácio, inculta e bela”, mas esses 3 últimos boçais que ocuparam à PR nas últimas 2 décadas estão conseguindo destrui-la e enterrá-la ad eternum, com suas sandices.

  2. Na realidade o grande problema não ê a língua, esse músculo maior em alguns, menor em outros. O problema é que milhares e milhares de pessoas em tom professoral emitem opiniões sem ajuda da parte posterior do cérebro. E aí a pobre língua paga por estar num corpo descerebrado . " Viva a língua e a retina tb.

  3. Realmente a língua tem o poder de nos colocar em situações verdadeiramente complicadas, ou de nos privar ou salvar delas, a depender da forma que a utilizamos. Sempre preferi a palavra escrita.

  4. Bem abordada essa característica desqualificadora desses dois tipos de políticos. O criminoso descondenado não tem a menor condição de pacificar o país. Vai mentir descaradamente e jogar a responsabilidade da ineficiência sobre o governo anterior.

  5. Vejamos como o Lula irá montar o Governo e o uso da língua para proferir as palavras : herança maldita, o orçamento foi feito pelo outro, eu não sabia, a mídia precisa de controle, herdei um teto furado, etc. Até lá, veremos as línguas atuantes do PT para ganharem de volta suas boquinhas no governo. Agora, se Lula propuser a criação da Guarda Nacional ou equivalente, estaremos no caminho da Venezuela. Cuidemos da língua, DELES!

  6. As línguas soltas de Bolsonaro e de ex-presidentes como Lula, Dilma, FHC, Collor, General Figueiredo - para ficar nos mais recentes - proferiram frases antológicas pela ignorância, prepotência, vaidade, preconceito e altivez!

  7. 😜🤪😝🤑🥵🤥🤥 Problema que no Bananão além da língua ser o nemesis do próprio ser impróprio, é que o nariz cresce junto, e ao final seres híbridos de camaleão com cauda de macaco e focinho de rato (além do corpo de serpente)...

  8. A triste realidade é a incapacidade que a maioria das pessoas têm, incluindo eu, de ouvir "nos entredentes", principalmente o que foi dito pelas línguas dos políticos, assim com temos dificuldades de ler nas entrelinhas, as interpretações das leis feitas pelos ministros da suprema corte do Brasil, em seus pareceres jurídicos.

  9. O maior pecado da língua (manda para o inferno!) para os terrivelmente horrorosos fanáticos religiosos (e meia bocas em geral) é usá-la como órgão sexual. Talvez por ser mavilhosa pela sensação lúdica, orgástica. Ou, não é?

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