Obrigado por ouvir a palavra do voto inútil

23.09.22

O caro leitor, a mimosa leitora, decerto são mais novos do que eu, e só conhecem pelos filmes ou pela conversa da vovó os antigos vendedores de porta em porta, que tocavam a campainha para oferecer, digamos, um belo corte de pano bom, ou uma enciclopédia muito útil para a escola dos seus filhos, ou ainda uma finíssima bijuteria ou perfume. Isso é coisa de um tempo não somente mais seguro, mas ainda também mais gentil, em que as pessoas atendiam os vendedores sem medo de assalto, e vendedores eram atendidos sem grandes esculhambações. Eles hoje foram substituídos pelas testemunhas de Jeová ou pelos neopentecostais de hoje em dia, que oferecem talvez mais conversa e menos volume.

Mas eis: façam o leitor, a leitora, de conta que eu mesmo sou um desses velhos vendedores, ou um dos religiosos modernos, que agora lhe bate à porta e, com sorriso amarelo, bigodinho ralo e terno da Ducal, venho lhe perguntar se já considerou hoje as vantagens ou se aceita ouvir a palavra do voto inútil. Sim, porque chegamos à altura da campanha em que começa a conversa a respeito do chamado voto útil, que é aquele que o amigo dá não no sacripanta de sua preferência, mas sim no sacripanta que o amigo acha que vai ganhar, ou no sacripanta que o amigo acha que vai impedir que outro sacripanta — o sacripanta que lhe pareça mais abominável, menos aceitável — vença. Daí eu pergunto de novo: o amigo já considerou as vantagens do voto inútil? Aceitaria ver o meu mostruário de argumentos, ou ouvir a palavra do democrata indiferente?

Aceite, dado que é mostruário pequeno e palavra ligeira. Ei-los: no turno, vote em quem achar que deve, e deixe o voto útil (que, cá entre nós, é coisa que nem existe) pro returno. Se sua preferência, senão seu coração, estiver ao lado do abantesma que tem 0,12% dos votos, vá nele. Se suas esperanças ou seu tédio o inclinarem a votar na sirigaita que tem 1,67% dos votos, vá nela. É para isso, e só para isso, que serve o primeiro turno.

— Mas — obtemperarão o combativo leitor, a intrigada leitora — e se o meu voto no palhaço sinistro X fizer o picareta safado Z perder o lugar no segundo turno para o corrupto asqueroso Ʊ, sendo o picareta safado Z a minha escolha resignada de voto contra o ladrão desavergonhado Ʃ, que certamente vai estar no segundo turno?

Ao que eu responderei:

— Relaxa. Não vai ser o seu voto que vai decidir isso. Seu voto é um-cento-e-cinquenta-e-seis-milhões-de-avos; é, com todo o respeito, um suspiro num furacão, é uma gotinha de dipirona no Amazonas. É tão pequeno, tão pouquinho, que nem conta. Não seria útil nem mesmo se você quisesse. Por isso, tanto faz você sufragar o favorito, a zebra, o branco, o nulo ou até ficar em casa à toa. Do ponto de vista do seu número pessoal, dá tudo na mesma. E sabe o que isso faz de você? Alguém livre. E eu arrisco dizer que isso, essa liberdade dos que não contam, é a única coisa que presta nesse negócio de eleição.

É isso. Muito obrigado por ter ouvido a palavra do voto inútil: eis aqui um folhetinho sobre a nossa congregação inexistente, que se reúne nunca em lugar nenhum. Tenha um bom dia.

* * *

Excelência, nos ensina o dicionário, é a qualidade do que é excelente ou muito superior, sendo excelente aquilo que já é, de si, bom pra caramba, ótimo até. Vem daí, dessa presunção mais do que otimista, o hábito – oh, minto, a obrigação legal que temos, eu e o caríssimo leitor, a mimosíssima leitora e os digníssimos representantes das demais infinitas variantes, de tratar como excelentes vários membros excrescentes dos muitos poderes que nos pesam sobre a nuca.

É o caso, por exemplo, dos senhores senadores, dos senhores deputados (estaduais e federais), dos senhores ministros, governadores e prefeitos, dos presidentes e membros dos tribunais diversos, e dos demais presidentes que há por aí (de câmaras, de juntas, de repúblicas) etc.

E o são por força de lei. Não se espante, pois, de saber que a determinação de serem tidos por excelentes partiu deles mesmos. Sim, pois quem, em pleno gozo de suas faculdades, seria capaz, sem ser obrigado, de achar excelente um deputado? Ou um senador? Quem chamaria de excelente uma criatura da qual o máximo que se espera é que seja lavado regularmente, que saiba assinar um documento com o polegar, que não se alivie nos corredores dos palácios, que não assalte ninguém na rua, à luz do dia, e que não mate nem devore ninguém no ambiente de trabalho?

Sim, sim, você só os chama de excelentes, senão, superlativamente, de excelentíssimos para não ir pra cadeia. E você tá certo. Porque eles não vão para a cadeia (e, se vão, não ficam: são excelentes). Já nós…

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  1. Tratar um deputado, senador, ministros em geral, presidentes de excelências é o mesmo que passar perfume em bosta.

  2. No primeiro turno, meu voto inútil será dado e será inútil de qualquer forma porque não afrontarei minha consciência votando num ex presidiário ou num futuro presidiário. Já no segundo turno, caso se concretizar este futuro negro(a esperança é a última que morre), junto com a minha consciência, anulo o voto.

  3. Pelo voto inútil! E se enganam aqueles que pensam que a polarização termina em 2022. O apelo pelo voto útil se repetirá nas próximas décadas. Liberte-se!!

  4. Quando ouço esses termos derivados de "excelente" só consigo pensar na música dos Titãs: Vossa Excelência. 😅 Nunca sai de moda.

  5. Excelente e oportuno texto, lembrete indispensável nestes tempos bicudos em que a esperança eleitoral de mudanças virou conformação ante a eleição de retorno de um corrupto ou a permanência do despreparado enganador… SIMONE TEBET 15

  6. Vou votar na sacripanta do Mato Grosso do Sul, na esperança que mais gente tenha a mesma ideia que eu...porque o inqualificável da Barra, além de inqualificável é também menos popular do que o deus-sol da corrupção do ABC. Voto tranquilo sabendo que meu voto é inútil. Não existe voto útil nesta democracia disfuncional ... agora vou escolher um deputado na lista que os caciques honorabilíssimos dos partidos prepararam para nós...

  7. Mais um pro grande time na qual a revista deve investir! Show de texto! E de sacripanta em sacripanta esse Brasil vai andando pra trás…

  8. No geral tendo a concordar com esta opinião, mas estamos diante de uma eleição especial, dado que qualquer um dos dois candidatos que lideram a pesquisa seriam uma tragédia. Portanto, defendo um voto útil em Simone Tebet, uma candidata civilizada e que tem menor rejeição ...

  9. A maioria dos citados ( deputados, senadores, ministros, etc... ) tem excelência na ignorância, na falta de cultura, na imoralidade e por aí vai.

  10. Do mesmo tempo da palavra sacripanta, poderia ter sido usada a locução valhacouto de facínoras para as nossas tantas casas legislativas ( 1 congresso, 27 assembleias e 5600 cãmaras).

  11. Gostei da idéia!!! Tinha resolvido não votar, mas, depois desta coluna vou votar na Soraya. Apesar de saber que ela não ganharia nem para síndica do meu prédio.

  12. Já descobri a delícia e a liberdade do voto nulo e é com ele que eu vou. Minha consciência será a maior vitoriosa nessa eleição, ter a tranquilidade de saber que não fui complacente/conivente com nenhum dos dois péssimos candidatos. Não terei contribuído para mais desastres, que é o que teremos pela frente.

  13. Me parece que já tem uma lei, ou decreto, ou qualquer coisa assim, abolindo esses tratamentos pomposos, virou tudo “senhor” e “senhora”. Mas continuamos adotando os antigos por hábito. Quanto ao voto inútil, o que mais usei até hoje foi o voto nulo.

    1. Decreto nº 9.758/2019. Mas ao que parece, só é aplicável ao Poder Executivo.

  14. A justiça pode apontar que alguém que matou a verdade perante um país inteiro, é inocente? É OBVIO QUE NÃO. A justiça tem o poder apenas de "descondenar" um criminoso que fez isso. Lula, um dos maiores corruptos da nossa história, talvez o maior, hipnotiza os eleitores ingênuos, ajudado pelos hipócritas que o cerca, balançando toda  hora o espantalho "imbroxável". Não existe "descondenado" e "imbroxável". Como não existe justificativa moral para votar em Lula e Bolsonaro. Sim🇧🇷ne 15.

  15. Verdadeiramente excelentes este artigo e o seu autor. Tosetto escreve sempre com muito suingue. Tem de permanecer na Crusoé porque ajuda a engrandecer esta ótima revista semanal.

  16. Voto útil é votar no candidato da sua preferência. Voto útil é ter oportunidade de escolha. Escolha,com cuidado, candidatos ao parlamento.

  17. A nova administração não é nada sutil. Entrou com tudo, como se vê pelo presente artigo. Estamos combinados. Fica o assassino e não o velho sacripanta.

  18. Pior que "excelência" é "meritíssimo". Muitos juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores são verdadeiros "meritríssimos". E estes odeiam juízes com real mérito como o ministro Joaquim Barbosa, a ministra Calmon e o juiz Moro.

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