RuyGoiaba

Também quero viver no universo paralelo

10.09.21

Cría cuervos y te sacarán los ojos. Colocar a pasta de dente de volta no tubo. Prender a serpente dentro do ovo depois de chocá-lo. Fazer o gênio, uma vez solto, retornar à garrafa. Escolham a metáfora que quiserem para descrever o que aconteceu com Jair Bolsonaro e os seus caminhoneiros bolsoafetivos nos últimos dias — um Monty Python de baixíssimo orçamento e só com gente burra, ou um esquete dos Trapalhões com o roteirista loucaço depois de misturar pinga e rebite. Talvez tenha sido a única coisa engraçada pós-7 de Setembro, em meio ao golpismo descarado do pato manco que (ainda) ocupa a Presidência.

Vou resumir, já que mais uma vez o Brasil se encarregou de escrever a coluna por mim: Zé Trovão, caminhoneiro foragido com esse apelido ridículo de personagem de novela da finada TV Manchete (e que pode ser preso enquanto escrevo este texto), convocou sua turma para “trancar todo o Brasil”, fechando as rodovias, em apoio a Bolsonaro. Até o presidente, pessoa com os pés no chão (e as mãos também), percebeu o risco de dar merda big time: desabastecimento de combustíveis e alimentos, mais pressão sobre a inflação, prováveis conflitos entre polícia e caminhoneiros, explosão de impopularidade forçando Arthur Lira a parar de sentar sobre uma pilha de pedidos de impeachment. Enfim, tiro no pé.

Ato contínuo, Bolsonaro grava um áudio em que diz aos bolsocaminhoneiros coisas na linha de “é melhor a gente parar com isso daí, talquei? — e eles NÃO ACREDITAM. Foi necessário que Tarcísio de Freitas fizesse um vídeo para assegurar que o áudio do presidente era real, e não uma imitação feita pelo Marcelo Adnet. Em resumo, um governo perito em disseminar fake news não consegue convencer seus aliados de que uma fala é verdadeira: o conteúdo do áudio contraria o pensamento deles, logo “não pode ser verdade”. É nisso que dá se alimentar de lixo, da junk food literal que é a desinformação: a pessoa acha que a realidade está aí para ser exatamente do jeitinho que ela quer e destrói os dois neurônios — no máximo — que ainda estavam positivos e operantes.

“Ah, mas eles só desconfiaram desse áudio específico do presidente”. Sinto dizer, caro leitor, que você está muitíssimo enganado: vídeos que circularam pelas redes nesta semana comprovam que muitos minions carga-pesada decidiram se mudar de vez para o universo paralelo. Houve caminhoneiros chorando de alegria com o “estado de sítio”, que Bolsonaro não decretou, e com a “queda dos 11 ministros do STF”, que continuaram se reunindo no tribunal. Essa gente não passa ilesa pelo mata-burro nem pelo psicotécnico, não faz ideia de onde fica o rabo do cavalo, mas está por aí, dirigindo caminhão pelo Brasil afora e entregando encomendas sabe Deus de que jeito; como já escrevi aqui, um amigo classificaria isso como “mais uma vitória do movimento antimanicomial”.

Confesso que, no fundo, sinto profunda inveja dos bolsocaminhoneiros e da versão Leblon deles, que é Paulo Guedes dizendo que a economia está voando, a inflação no Brasil não é um problema e as reformas vão sair na semana que vem: queria muito poder me transferir para um desses fantásticos universos paralelos. Em vez disso, todo dia acordo e saio para trabalhar no Bananão real, esse lugar com pandemia, inflação, desemprego e crise institucional bombando — e ainda repleto de brasileiros fazendo brasileirices por todos os lados. Só me resta esta adaptação canhestra de Kafka: “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Ruy Goiaba encontrou-se em sua cama não metamorfoseado em um inseto monstruoso, mas ainda e tragicamente brasileiro. Abriu a boca com ambas as mãos; tentou se suicidar à maneira de Didi Mocó. Faiô.”

***

A GOIABICE DA SEMANA

É verdade que todos os caminhoneiros bolsoafetivos citados no texto principal bateram recordes mundiais de cretinice, mas eu não tenho medalhas para distribuir a tanta gente. Dou o troféu da semana, portanto, a Nelson Piquet, o tricampeão de F-1 que achou o máximo servir de motorista de Uber a um golpista no 7 de Setembro. Aposto que nem Ayrton Senna nem Rubinho Barrichello passariam essa vergonha — o primeiro porque já morreu faz tempo (e só por isso), o segundo porque dificilmente chegaria antes de 8 de setembro.

(Se o prêmio fosse de Arregão da Semana, Bolsonaro seria hors-concours.)

Alan Santos/PRAlan Santos/PRJair Bolsonaro e Piquet, seu motorista de Uber; ontem campeão, hoje retardatário
 

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