Brasil contra Brasil

13.07.18

Durante a Guerra Fria, a coexistência de dois arsenais nucleares de grande envergadura — os de EUA e União Sovietica — gerou o chamado “equilíbrio do terror”. Possuir mísseis balísticos intercontinentais, rastreáveis por sofisticados mecanismos de detecção, deixara de fornecer grande vantagem estratégica.

Desaparecia a possibilidade de surpreender o adversário mediante um “primeiro ataque”. A ofensiva propiciaria resposta em dimensão letal equivalente. Dada a potência de tais armas, ficava explícito o conceito de “destruição mútua assegurada” — famoso pela sigla “MAD” a partir das iniciais em inglês.

Hoje, estamos testemunhando no mundo os movimentos iniciais de uma assombrosa guerra comercial. Movido por uma série de diagnósticos — a maioria equivocados — sobre a perda de competitividade de alguns setores industriais nos EUA e do acúmulo de déficits comerciais, Donald Trump impõe barreiras a outros países e às próprias empresas americanas.

Num mundo interdependente, nada é tão globalizado quanto a estrutura das empresas dos Estados Unidos. Quando, na sequência das medidas protecionistas de Trump, a Harley-Davidson decide transferir operações para a Europa, a empresa argumenta que barreiras à importação são na realidade impostos sobre consumidores norte-americanos.

Em represália, novos obstáculos são erguidos por mercados externos às exportações dos EUA. Assim, fica claro que uma guerra comercial significa aumento da carga tributária — e lucros menores — para todas as companhias que produzem o “Made in USA”.

Num mundo economicamente interconectado, em se considerando diferentes teatros de operações, todos perdem com o protecionismo. Guerras comerciais representam, portanto, uma espécie de “MAD” com efetiva mútua destruição.

Como o Brasil figura nessa história? Bem, o país é responsável por algo como 1% de todo o comércio global. E este — entendido como soma do total de importações e exportações — representa apenas pouco mais de 20% do PIB (produto interno bruto) brasileiro.

Tal constatação, num mundo comercialmente conflagrado, pode ser vista como vantagem — mas certamente não é. Na superfície, a conjuntura pode oferecer a falsa impressão de que os comercialmente isolados saem vencendo. Ou ainda que a aposta no comércio exterior está fadada ao fracasso, pois o atual cenário de desglobalização veio para ficar.

Cabe, no entanto, lembrar que nos anos 1970 (crises do petróleo), 80 (crises de moratória), 90 (crise asiática e do rubro) e 2000 (subprime 08 e dívidas soberanas 11), o comércio internacional experimentou momentos de retração. No entanto, apesar das atribulações econômicas ou geopolíticas, manteve sua tendência ascendente.

Ao longo dos anos, a interdependência prevalece sobre o isolamento. O comércio foi a principal ferramenta de promoção de riqueza no pós-Segunda Guerra (e também no pós-Guerra Fria). Que o digam atores tão variados quanto Japão, Alemanha, Coreia do Sul, Espanha, China ou Chile. O que há de comum entre esses países? Alguns são asiáticos, outros europeus, um é latino-americanos. Alguns são democráticos, outros viveram, ou ainda vivem, regimes de ditadura. Uma dos poucos traços em comum nesses diferentes modelos é que todos têm elevado percentual de comércio exterior nas suas economias. Não é o caso do Brasil.

Por que isso acontece? Ora, o Brasil jamais construiu uma estratégia de inserção comercial internacional. Pior, é como se o país estivesse em guerra comercial contra si próprio. Não fizemos acordos com os grandes mercados compradores do mundo. Não abrimos frentes, com esforços de promoção comercial mediante escritórios em centros globais como Dubai, Londres, Paris, Singapura ou Hong Kong. Em vez disso, para ficar apenas nas deseconomias do período petista, fomos abrir embaixadas em uma dezena de países africanos, e deperdiçar tempo com a criação de mecanismos regionais — como a UNASUL —que pouco têm a ver com a prosperidade brasileira.

A guerra comercial do Brasil contra si se manifesta também na confusão conceitual. Embaralham-se noções como “abertura comercial” e “inserção internacional competitiva”. Unilateral ou negociada, abertura tem a ver com diminuição de barreiras internas e externas na forma de tarifas, quotas, subvenções e subsídios, idiossincrasias técnicas e burocráticas. Tudo isso é importante, mas não basta. É fundamental que se promova — em sincronia e sintonia com a abertura — a inserção competitiva. Isso significa promover a cooperação fina entre atores do setor privado, governo e diplomacia, para aumentar quantidade e qualidade do comércio do país.

O debate comercial brasileiro parece modestamente reduzido a um Fla-Flu que opõe “abertura” à “agenda de competitividade interna”. Uns acham que devemos baixar tarifas e tomar vinho francês mais barato antes de reformar a previdência. Outros propõem que tenhamos infraestrutura portuária de containers como Xangai, antes de facilitar a importação de bens de capital.

Há, porém, duas questões prévias, ainda mais importantes. A primeira: queremos o comércio exterior como nossa ferramenta privilegiada para a construção de poupança nacional e recursos para investir? A segunda: o Brasil deseja o comércio exterior como sua principal via de inserção na economia global?

Se as resposta a ambas perguntas for “sim”, então uma mínima preparação para os desafios que vêm por aí exige estratégia bem orquestrada que articule aspectos de formulação, negociação, promoção e defesa da politica comercial.

Nos EUA, quem formula a política comercial é o Congresso, que dá ao Executivo a autoridade para a sua promoção. O Executivo conta com o USTR (United States Trade Representative), diretamente ligado à Casa Branca e que negocia os acordos. Uma vez em vigor, quem cuida das exportações é o Departamento de Comércio. E quando se percebe que um país com quem está se tratando usa mão de obra infantil ou desrespeita normas de propriedade intelectual, algo na fronteira entre comércio e política externa, entra em cena o Departamento de Estado. Entre nós, não há clara divisão de quem faça o quê.

O Brasil sabe o que quer a “China 2.0”, país que juntamente com os EUA forma o “G2” do mundo atual? Qual é a nossa abordagem para México e Argentina se o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) e o Mercosul implodirem? Como tirar proveito da ascensão da Índia e de outras estrelas do Sudeste Asiático, como Indonésia e Vietnã? Como deixar de desperdiçar relações econômicas com os EUA?

Quando essa ausência de visão-estrutura-coordenação se soma ao Custo Brasil, não há que temer Trumps ou Xi Jinpings. Em vez de “MAD”, é “SAD” (self-assured destruction). Na guerra comercial, o Brasil é o pior inimigo de si mesmo.

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  1. O Brasil só acordará para um novo amanhecer, quando homens públicos trabalharem pelo bem público, visando o bem coletivo. Isso vai demorar ainda alguns séculos.

  2. Comércio Exterior por estas terras é algo tão minúsculo e desprezado, que se evidencia no amadorismo e pobreza curricular dos cursos de graduação relativos a esta área. As muralhas burocráticas, desestímulo ao desenvolvimento de tecnologias de verdade, evasão de maciça de empreendedores e cientistas, políticas externas voltadas para as alianças ideológicas acéfalas e criminosas, apenas reforçam a vontade do Brasil e seus eleitores de ficarem onde sempre estiveram. Na merda.

  3. O presidente Donald Trump está fazendo exatamente o que precisa ser feito, o mundo precisa se livrar das quinquilharias chinesas produzidas por trabalhadores escravos, aliás o chinês nunca merece confiança.

  4. Muito bom. particularmente tenho uma conviccáo de que politica monetária da maneira que o BC faz hj é um tiro na femural. e esse falso sentimento de soberania, etc..., só satisfaz os bolsos dos políticos , banqueiros e empresários goelas largas. O Brasil é um Trump maquiado de país, FAKE.

  5. Mesmo errando, os militares pensavam o Brasil. O PSDB quis pensar, mas se atolou na armadilha européia da social-democracia, na constituinte garantista de 88 e na corrupção. Passou. Junte bons profissionais de cada área da sociedade civil, à capacidade de elaborar estratégias para o Brasil dos militares que poderá dar jogo. A iniciativa privada só não dará conta (interesses particulares e pouco apoio popular), nem o Bolsonaro isolado com seus militares. Juntos, talvez.

  6. Excelente reportagem. Na verdade o Brasil não sabe o que quer, em nenhum setor! No país quem fala em.planejamento tático, operacional ou estratégico está falando...grego!

  7. É verdade,os interesses corporativos e nojentos de uma minoria q vive muito bem no Brasil, aliada a ignorância da maioria corrobora e muito pra permanência desse fracasso.

  8. o problema não e’ o brasil querer ou não querer, e’ que o brasil n consegue, e sabendo mt bem disso , nem tenta. Não e’ questão de estrategia, e’ questão que o brasil ( ou seja os brasileiros ) n e’ capaz de produzir nada que presta e que seja vendavel mundo afora. So’ tem commodities e agronegocio e olha la’ , tudo de baixo valor agregado, vamos cair na real, somos terceiro mundo e pronto, vamos se concentrar em não ter guerra civil e ja’ sera’ um sucesso

  9. Mais claro, impossível. O que falta é "somente" definir para onde queremos ir nos próximos 5, 10 anos. Sem esta definição, qualquer caminho serve (para nos afundar mais ainda)!

  10. A nau tupiniquim também atende pelo nome de "Titanic", especialmente (mas não só) depois de 13 anos de ideologia safado-marxista no poder. Do jeito que está, nem o "Grande Timoneiro" sozinho conseguiria evitar a colisão com o iceberg da Realidade.

  11. Pra isso acontecer, seria necessário desemperrar o relógio do Brasil, que parou em algum momento dos anos 80 e nunca mais andou.

    1. Tente abrir uma empresa no Brasil sendo estrangeiro e morando no exterior . Tente exportar do Brasil sendo brasileiro e vivendo no Brasil . Tente viver no Brasil sem ser assaltado . Derrepente a melhor solução é conseguir visa permanente para todos brasileiros em outro país ...

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