Isac Nóbrega/PRPutin durante visita a Brasília em 2019: balizas políticas tradicionais do Ocidente talvez não sejam apropriadas para compreendê-lo

Putin, o novo tirano de Siracusa

Em seu esforço para minar a democracia liberal, o autocrata russo conquista “passadores de pano” das mais variadas afiliações políticas
01.03.24

Em A Mente Imprudente, obra publicada em 2001, Mark Lilla fala da “sedução de Siracusa” – a atração que, desde tempos remotos, as tiranias exercem sobre os intelectuais. Em Siracusa, no século 4 a.C., o sedutor era Dionísio, o Jovem, que sucedeu seu pai como déspota da cidade siciliana, e o seduzido era ninguém menos que Platão, que juntou-se à corte do tirano, ao que parece na esperança de convertê-lo em uma espécie de “rei filósofo” – sem sucesso: Platão acabou se desiludindo com a arrogância de Dionísio.

“Dionísio é nosso contemporâneo”, afirma Lilla. O cientista político americano diz que o tirano siciliano “teve muitos nomes” ao longo do século 20 – nomes que ele lista em pares reunidos por afinidade: “Lenin e Stalin, Hitler e Mussolini, Mao e Ho Chi Minh, Castro e Trujillo, Amin e Bokassa, Saddam e Khomeini, Ceaușescu e Milošević”. Prossegue Lilla:

“Os peregrinos às novas Siracusas que estavam sendo construídas em Moscou, Berlim, Hanói e Havana foram em número surpreendente. Eles eram os voyeurs políticos que faziam turnês cuidadosamente coreografadas pelos domínios do tirano com passagens de volta na mão, admirando as fazendas coletivas, as fábricas de tratores, as plantações de cana de açúcar, as escolas, mas dando um jeito de nunca visitar as prisões.”

Stalin morreu em março de 1953 e a União Soviética desfez-se em dezembro de 1991. Moscou, no entanto, voltou a ser Siracusa. Na falta de um filósofo, Vladimir Putin, o Dionísio da hora, contentou-se com um mero jornalista, e dos mais chinfrins: Tucker Carlson.

Ex-estrela da Fox News agora à frente de seu próprio site, o Tucker Carlson Network, o intrépido repórter foi a Moscou em fevereiro para entrevistar esse que deve ser o presidente mais popular do mundo – tão popular que até já foi reeleito no pleito que só acontecerá daqui a duas semanas.

Carlson não fez propriamente uma entrevista: ficou quietinho, o que não é de seu estilo, para ouvir uma longa preleção do ditador sobre a história da Rússia, país que por destino engloba o território da Ucrânia. Essa atitude de jovem aprendiz bebendo da sabedoria do mestre ditador não foi a maior vergonha da sua temporada russa. Carlson foi às ruas para se deslumbrar com as maravilhas da vida moscovita. Era um jeca fazendo turismo: olha que legal esse supermercado! E essa estação de metrô, que tudo! Foi construída durante o governo de Stalin, que era um cara malvado – mas tem candelabros!

O baixo jornalismo brasileiro ainda não conseguiu entrada no Kremlin, mas faz o seu pior para chegar lá. Em um vídeo do Brasil 247, Pepe Escobar afirmou que a causa da morte do dissidente russo Alexei Navalny em uma prisão gelada pode ter sido a vacina da Covid fabricada pela Pfizer. Pelo mundo inteiro, disse o comentarista, essa vacina vem causando blood cloths fatais (Escobar parece ter perdido sua notória habilidade de tradutor da língua inglesa: não conseguiu se lembrar da palavra “coágulo”).

Navalny, de acordo com Escobar, recusou a vacina Sputnik, fabricada na Rússia, e tomou cinco doses da Pfizer, quando três bastariam para reforçar a imunidade. Então teria se formado nas veias do inimigo de Putin um coágulo borrachudo de quinze ou vinte centímetros, que causou sua morte súbita. Navalny, portanto, não foi assassinado pelo regime que o envenenou em 2020 e que no ano seguinte o prendeu sob acusações fajutas: ele foi, ainda segundo o analista internacional do Brasil 247, mais uma vítima dos “coquetéis absurdos que o mundo inteiro foi obrigado a ingerir (sic)”.

Na rede X, o site petista que embarcou em uma pregação antivacina típica de Jair Bolsonaro levou algumas pessoas a lembrarem da “teoria da ferradura”, segundo a qual os pontos extremos da direita e da esquerda tendem a se cruzar. Que figuras ideologicamente opostas como Carlson e Escobar botem as mãos no mesmo pano imundo com que se tenta limpar a reputação de Putin reforçaria essa tese.

Mas desconfio que, nesse caso, a ferradura foi calçada no cavalo errado. As balizas políticas tradicionais do Ocidente talvez não sejam apropriadas para compreender Putin. A direita reacionária exalta o ditador russo como o último paladino dos valores tradicionais sitiados pela ditadura globalista woke; a esquerda revolucionária admira sua resistência ao imperialismo neoliberal e sionista. Ambas se enganam sobre a natureza de seu regime.

Putin é o expoente da onda antidemocrática mundial que analistas como Anne Applebaum vem mapeando. É um dos articuladores do que poderíamos chamar de Foro de Siracusa, um clubinho de autocratas que reúne de Maduro, na Venezuela, a Erdogan, na Turquia. Pequim talvez esteja melhor posicionada para ser a nova Siracusa, mas Moscou é uma concorrente forte.

No Brasil, as duas maiores forças políticas atuais são instrumentais para o Foro de Siracusa. Bolsonaro foi a Moscou abraçar Putin uma semana antes da invasão da Ucrânia. Não estranha que, na manifestação de domingo na Paulista, tenham se visto várias bandeiras de Israel (uma delas trazia ao centro uma esquisita estrela de cinco pontas…), mas nenhuma faixa de solidariedade à Ucrânia.

No lado petista, a diplomacia comandada por Celso Amorim está bem sintonizada com o Foro de Siracusa. E Lula, perguntado sobre a morte de Navalny, recomendou que não se tivesse pressa em estabelecer responsabilidades… Ora, a morte de um prisioneiro político isolado em presídio no Ártico, sob as piores condições, é fatalmente responsabilidade do regime que o encarcerou.

Para alegria de Putin, Donald Trump tem excelentes chances de derrotar Joe Biden nas próximas eleições americanas, com a promessa de uma política externa isolacionista que secará o apoio à Ucrânia. Se isso acontecer, eu apostaria que a cobertura internacional do Tucker Carlson Network e do Brasil 247 ficarão ainda mais parecidas.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. A SOBERBA BROTA DE UM CORAÇÃO QUE SE SENTE SUPERIOR AOS DEMAIS. Efetivamente, no trato com os outros, o soberbo mostra-se arrogante, sempre pronto a condenar e nunca disponível para receber a mínima correção. Este vício tem a sua causa primeira na pretensão do homem em querer ser como Deus. Isto é um absurdo, cujas consequências passam pelo envenenamento da fraternidade e pela deterioração das relações. Por isso, no convívio com uma pessoa soberba, requer-se muita paciência.

  2. É precisos avaliar também o quanto essas democracias tipo tupiniquins têm contribuído para o crescimento desses autocratas. A população vai se desiludindo desses Congressos com parlamentares dos "Centrões"; bancadas corporativistas e religiosas; orçamentos secretos; justiça onde o juiz investiga, julga e pune e executivos populistas irresponsáveis e vai cedendo aos "ditadores" de plantão. É o remédio matando o paciente porque é dado em doses erradas ou porque o paciente não quer tomar.

  3. Para ver que esse jornalismo execrável não é uma exclusividade do Brasil. Mas o problema maior são as consequências dessa informação lapidada por líderes extremistas.

Mais notícias
Assine agora
TOPO