República das Emendas
Nísia não caiu por suas falhas, mas por seus méritos: ela tentou controlar a liberação de recursos secretos

Enquanto parte da imprensa ecoou a narrativa oficial que justificava a demissão da ministra Nísia Trindade, o Palácio do Planalto tratou do que era estratégico – blindar as emendas parlamentares do Ministério da Saúde, com o intuito de garantir a entrega de bilhões de reais em verbas políticas a deputados e senadores.
Nísia não caiu pelas supostas falhas cometidas à frente do Ministério da Saúde como apregoou o governo, mas por seus méritos: tentou controlar minimamente a liberação das emendas secretas, impondo regras que pudessem impedir fraudes, desvios e roubalheira generalizada.
Engendrado durante o mandato de Jair Bolsonaro, o sistema de concessão de emendas parlamentares previu pulverizar cifras bilionárias por todo o país para custear consultas médicas e exames clínicos laboratoriais.
Com o orçamento secreto, o dinheiro público foi injetado no Fundo Nacional de Saúde e, em seguida, dispersado nos Fundos Municipais de Saúde “escondidos” nas franjas do Brasil.
Despesas corriqueiras do dia a dia do Ministério da Saúde não estavam (e continuam assim) vinculadas aos gastos ordinários como deveriam, mas às emendas apresentadas pelos políticos.
Deu no que deu: em 2020, o município maranhense de Igarapé Grande, de apenas 11 mil habitantes, registrou 12.700 radiografias de dedo – é como se toda a sua população tivesse quebrado o dedo, sendo que algumas pessoas mais de uma vez, naquele mesmo ano.
A ministra Nísia trabalhou para evitar situações como a de Afonso Cunha, também no Maranhão, onde o governo Bolsonaro pagou 18.474 ultrassonografias de próstata e outras 18.474 ultrassonografias transvaginais (exatamente o mesmo número), numa cidadezinha de 6.500 moradores.
Para moralizar as emendas no âmbito do Ministério da Saúde, Nísia propôs que técnicos ligados ao Sistema Único de Saúde avalizassem a razoabilidade das indicações apontadas por deputados e senadores.
Com isso, atraiu a ira dos congressistas.
Ex-presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) não mediu esforços para derrubá-la.
Na alagoana Barra de São Miguel, aliás, cujo prefeito vinha a ser o pai de Lira, o Ministério da Saúde acomodou 100 mil consultas médicas num período de oito meses, apesar de o município possuir apenas 8 mil habitantes.
O cerne do problema é que Lula abraçou o esquema forjado por Bolsonaro, embora tenha procurado ajambrá-lo com o objetivo de evitar escândalos.
Nísia era uma pedra no sapato do governo.
O ministro Alexandre Padilha (PT-SP), das Relações Institucionais, cuidava dos interesses do Congresso no governo Lula e havia indicado Nísia para o comando da pasta da Saúde.
Para quebrar a resistência da ministra, mandou um recado público durante uma entrevista à CNN Brasil, ainda em 2023:
“A ministra Nísia é um símbolo de conhecimento da saúde pública, o que não a exime de fazer um papel de ampliação da articulação política.”
Padilha ainda deu um “empurrão”: funcionários da sua Secretaria de Relações Institucionais dirigiram-se ao Ministério da Saúde, a fim de organizar e priorizar o atendimento de deputados e senadores que exigiam a liberação rápida das emendas que custeavam o SUS.
Em 2024, quando Arthur Lira acabou por romper com Padilha por causa das emendas secretas sob a guarda da ministra, foi a vez do presidente Lula mandar recado pela imprensa: o chefe do governo orientou Nísia a cumprir os acordos políticos.
Não foi o suficiente, e Lula optou por colocar Padilha no Ministério da Saúde, exonerando Nísia.
Ainda é incerto, mas até 40% do total de emendas em 2025 deverão tomar o rumo do Ministério da Saúde, o que vai somar algo em torno de 20 bilhões de reais sob o crivo de Padilha – a maior parte para custear as tais consultas médicas e exames clínicos, de difícil fiscalização.
Mas o governo conseguiu pacificar a questão, com a providencial ajuda do Supremo Tribunal Federal que aceitou o “plano” conjunto do Palácio do Planalto e do Congresso para proporcionar transparência às emendas.
Que fique claro: a identificação nominal dos parlamentares não assegura controle sobre a aplicação correta do dinheiro das emendas.
No final, a suposta moralização das emendas, ponto de honra do ministro Flávio Dino, do STF, terminou como fogo de palha.
Dino entregou o galinheiro (20% do orçamento de investimentos do país, aproximadamente 50 bilhões de reais em 2025) às duas raposas irmanadas – o Poder Executivo e o Poder Legislativo.
Tudo contabilizado, o governo vai fingir que fiscalizou as emendas e que o dinheiro do povo foi investido a contento.
O Congresso fingirá que adotou mecanismos de transparência e rastreabilidade ao definir o destino dessas ordens de pagamento.
Ao Supremo caberá fingir que as leis estão sendo cumpridas e que o sistema de concessão de emendas parlamentares é constitucional e legítimo.
Ao Tribunal de Contas da União e à Controladoria-Geral da União o acordão vai possibilitar fingirem a existência de controle sobre o direcionamento das verbas políticas, com as quais o governo “compra” apoio de deputados e senadores.
Quanto à grande imprensa, fingirá que o assunto não é mais prioridade, pois as empresas de comunicação estarão amortecidas pelas sempre generosas verbas publicitárias.
E assim o presidente da República fingirá ter conduzido uma administração ética num país que não é mais subdesenvolvido, mas no qual impera uma sórdida aliança entre corrupção e impunidade.
Ao institucionalizar a República das Emendas, Lula criou as condições para chegar ao final do mandato de bem com o Congresso.
Resta saber o que o eleitor vai dizer a respeito em 2026.
Ivo Patarra, jornalista e escritor, é autor do livro Emendas Secretas – o “toma lá, dá cá” que garantiu o 3º governo Lula (2024)
As opiniões dos colunistas não necessariamente refletem as de Crusoé e O Antagonista
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (3)
MARCOS
2025-03-09 11:57:24QUER DIZER ENTÃO QUE OS LADRÕES DO CONGRESSO FORAM OS RESPONSÁVEIS PELA QUEDA DA MINISTRA? RATOS PILANTRAS.
Amaury G Feitosa
2025-03-08 11:44:58A CF DE 1988 VIROU CORTESÃ ??? ..... Vejamos, após 170 remendos sempre em favor de elites insanas e estúpidas o que alguém com três neurônios poderia inferir? Contra fatos não há argumentos e aí estão eles límpidos, vergonhosos e fatais, impraticável pela insanidade "democrática" de seus construtores a mal ajambrada constituição é um triste blefe que ninguém obedece por intrpretar como lhe manda o patrono para permitir que os ditadores se locupletem como bem quiserem, e assim triste e cruelmente virou lixo, nem prá papel higiênico serve, pode infectar as entradas manoélicas estupradas.
Edilene Barreto
2025-03-07 15:53:23Excelente artigo