Democracia: uma experiência fadada ao fracasso? Segundo ponto
Só uma coisa poderia mitigar os efeitos nefastos da democracia: a excelência intelectual dos cidadãos que vivem sob as suas estruturas
Volto a propor reflexão sobre o regime democrático – este que, nos tempos em que estamos, tem merecido celebração acrítica e, por isso mesmo, sustentada (essa é a minha tese) em bases analíticas frágeis/quebradiças.
No primeiro texto desta série, trouxe um preambular ponto de crítica, de inspiração filosófica clássica: um grupo de apedeutas/leigos na arte de bem conduzir as coisas da “pólis” não poderá, como que por um milagre, propor solução política saudável exatamente porque tal solução demanda, por óbvio, grau de competência técnica/intelectual que aquele grupo simplesmente não fez por obter.
“Estamos diante do que a moderna ciência política denomina ‘o milagre do agregado’, bem definido na frase de H.L. Mencken: ‘A democracia é a crença patética na sabedoria coletiva da ignorância individual’, a estranha ilusão de que múltiplos indivíduos intelectualmente desapetrechados sairão com soluções coletivas formidáveis”, registrei no texto anterior.
Votantes de qualidade
Trocando em miúdos, um grupo de pessoas que não passou por um processo “paidêutico” (formativo) cuidadoso, jamais estará à altura da tarefa que se lhes impõe numa democracia: escolher as melhores alternativas. Claro: se não sei discernir sobre o que é melhor, como poderia escolher o melhor? Neste quadro, o problema não é encontrar bons candidatos ou líderes à altura da “sublime” tarefa de conduzir a massa; é encontrar votantes de qualidade!
Naturalmente, não podemos mesmo ter bons políticos se não somos bons nós mesmos (um povo medíocre está matematicamente condenado a ser governado por medíocres, se a escolha toca a ele, povo: disso não se pode escapar!).
Estabelecido esse primeiro ponto, trato de um segundo elemento de crítica à democracia: na excelente formulação de Bryan Caplan, eleitores médios em regimes democráticos são mais do que simplesmente ignorantes, são mesmo irracionais. Exemplo disso? É muito difícil ir contra uma política protecionista porque ela nos causa uma boa sensação, um sentimento acolhedor, intimamente positivo. O mesmo a maioria experimenta diante de uma reluzente política de cotas por cor da pele ou manifestação de sexualidade. Ou ainda por carga tributária prometida a algo etéreo como, sabe-se lá, “justiça social”.
Acreditar
Um especialista poderia desfilar sem-número de argumentos técnicos e evocar múltiplos exemplos da mais absoluta ineficácia de medidas protecionistas de mercado, de cotas malparidas, de desvios contábeis sistêmicos – desenhando com gráficos escorados em dados matemáticos uma realidade cristalina: nada disso afasta o homem irracional do seu propósito maior de “sentir-se bem consigo mesmo” ao crer em algo, mesmo estando substancialmente errado.
Na célebre reflexão de Carl Sagan sobre o desejo de crer, “não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar”. Note-se, então, que o desejo de acreditar em algo (em alguém ou numa solução qualquer), não passa, em geral, pela legitimidade ou pela higidez daquilo em que se acredita, mas de uma disposição apriorística de querer acreditar. E não há evidências que sejam capazes de demover alguém que basicamente decidiu ver no erro uma virtude angelical.
Um pouco é assim com quase todos: procuramos ignorar, afastar mesmo, dados da realidade que nos incomodem. Entretanto, é bem como relata trecho atribuído à filósofa Ayn Rand: “Você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade”. E as consequências da democracia-regime-da-irracionalidade podem ser vistas diariamente em exemplos abundantes mundo afora (porque, é o óbvio ululante, em menor ou em maior grau, as democracias de todo o mundo estão sendo, neste exato momento, gravemente testadas).
Universitários analfabetos funcionais
Com efeito, não estou aqui a emitir juízo de valor, mas a tratar de fatos. No Brasil, para ficarmos em terreno doméstico, pesquisas indicam que navegamos entre 30% e 35% de universitários analfabetos funcionais. Somos um povo cientificamente iletrado (90%, em média, não conseguem fazer cálculo de conversão de moeda ou compreender gráfico simples de duas linhas).
Nossa incompetência em formar humanos pensantes é transgeracional: no final do ano passado, o Brasil ficou na 55ª posição no ranking de conhecimentos de matemática para estudantes de 9 anos, conforme revelado pelo TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study). Entre 58 países avaliados, o Brasil ficou à frente apenas de Marrocos, Kuwait e África do Sul (imaginem vocês). Cerca de 16% dos brasileiros tiveram desempenho inferior ao que teriam se tivessem chutado todas as respostas nesta área do conhecimento!
Nem me darei ao trabalho de replicar aqui outros tantos rankings e avaliações (nacionais e globais) que fazem de nós exemplo mundial na arte de construir ignorantes voluntariosos, mestres na arte de escolher destinos por meio de afecções hormonais, humores, caprichos e sentimentos.
Ayn Rand, em seu clássico A revolta de Atlas, ainda diz o seguinte:
“A mente do homem é o instrumento básico de sua sobrevivência. A vida lhe é concedida, mas não a sobrevivência. Seu corpo lhe é concedido, mas não o seu sustento. Sua mente lhe é concedida, mas não o seu conteúdo. Para permanecer vivo, ele tem de agir, e, para que possa agir, tem de conhecer a natureza e o propósito de sua ação. Ele não pode se alimentar sem conhecer qual é seu alimento e como tem de agir para obtê-lo. Não pode cavar um buraco, nem construir um cíclotron, sem conhecer seu objetivo e os meios de atingi-lo. Para permanecer vivo, ele tem de pensar. Mas pensar é um ato de escolha […]. A razão não atua automaticamente.”
A excelência intelectual dos cidadãos
Só uma coisa poderia mitigar os efeitos nefastos da democracia: a excelência intelectual dos cidadãos que vivem sob as suas estruturas. Um esforço concentrado e dirigido para um querer pensar racionalmente (o simples fato de dispor da faculdade da razão não faz de ninguém um ser racional).
Alguma chance de tal coisa acontecer enquanto submetidos a uma casta política que lucra vertiginosamente com a nossa irracionalidade?
Que interesse há (em quem hoje nos lidera) na construção de sociedade crítica, sensata e ilustrada?
Não sejamos ingênuos… buscamos com as mãos os resultados aviltantes que temos obtido nas mais diversas áreas da vida social. Nada disso é “ao acaso” ou “por acidente”: há muito empenho no que não funciona para chegarmos a quadro assim pífio.
O ensinamento vem de Platão: indivíduos internamente desorganizados/desajustados não podem construir espaço social organizado/ajustado. Este é um retrato ampliado daquele, um microcosmo que projeta a qualidade do macrocosmo no qual habita. A mensagem do filósofo tem vinte e cinco séculos.
Aprenderemos?
Semana que vem volto com o terceiro ponto de reflexão sobre os dilemas do regime democrático. Até lá.
Dennys Xavier é autor e tradutor de dezenas de livros, artigos e capítulos científicos; Professor Associado de Filosofia Antiga, Política e Ética na Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Doutor em "Storia della Filosofia" pela "Università degli Studi di Macerata" (Itália). Tem Pós-doutorado em História da Filosofia Antiga pela Universidade de Coimbra (Portugal) e Pós-doutorado em Filosofia pela PUC-SP. Tem passagens de pesquisas por diversas universidades brasileiras e estrangeiras. É coordenador/autor da série best-seller “Breves Lições”, que divulga o pensamento de autores liberais/conservadores não contemplados pelos currículos de universidades do país. É fundador da Sociedade da Lanterna, uma das maiores sociedades não acadêmicas de estudo da História da Filosofia do país. Na condição de esportista, foi também membro das seleções mineira e brasileira de natação e venceu diversos campeonatos nos âmbitos estadual, nacional e internacional.
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Comentários (1)
Bonelli
2025-01-31 14:05:09Novamente perfeito e irretratável. Parabéns!