Manifestação estudantil junta mais de 150 mil e amplia pressão sobre Milei
Maior universidade da Argentina, a UBA entrou em abril em um sistema de racionamento de luz, com entradas e corredores das faculdades sem iluminação
A manifestação em Buenos Aires nesta terça-feira, 23 de abril, contra os cortes de verbas em universidades públicas não começou com cartazes nem tambores.
Às 12h, poucas dezenas de estudantes de medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA) já se agrupavam para ter aulas de biologia celular ao ar livre na praça em frente à faculdade, de onde partiria o ato desta terça.
Maior universidade da Argentina, a UBA entrou em abril em um sistema de racionamento de luz, com entradas e corredores das faculdades sem iluminação.
Ainda não se cortou a luz das salas de aula, todavia.
Professor responsável pela classe de biologia celular ao ar livre, Tomás Falzone explica que a iniciativa se deu por motivos simbólicos.
"Poderíamos ter ficado na sala, mas hoje é um dia para mostrar à sociedade o que fazemos. Então, levamos os estudantes à praça para dar uma aula pública", diz Falzone, que leciona na UBA desde 2010.
Aquelas dezenas de estudantes de medicina e alguns curiosos, incluindo uma idosa que interrompeu o passeio com seu cachorro para acompanhar a classe de biologia celular, foram o início da maior manifestação no governo de Javier Milei.
Segundo a Polícia da Cidade de Buenos Aires em relatório inicial, a mobilização envolveu mais de 150 mil pessoas — houve protestos em outras cidades importantes, como Córdoba e Mar del Plata.
O ato desta terça contou também com a presença de estudantes e professores de universidades particulares, assim como cidadãos de diversos segmentos da sociedade argentina.
A maior manifestação no mandato de Milei até então foi aquela convocada pela Confederação Geral do Trabalho, a CUT da Argentina, no final de janeiro, com estimativas oficiais de público indo até 100 mil.
Enquanto os sindicalistas encheram apenas a praça do Congresso naquela ocasião, o protesto desta terça percorreu um trajeto bem mais longo desde a partida na Faculdade de Medicina.
No pico, pelas 18h, os manifestantes haviam enchido a zona do Congresso e também a Praça de Maio, na frente da Casa Rosada, assim como boa parte da Avenida de Maio, que conecta ambas as sedes do Legislativo e Executivo.
A preocupação com a situação das universidades não é de se minimizar. O reitor da UBA ameaça fechar a universidade pelo restante do ano se não houver reajuste no orçamento dentro de dois meses.
O orçamento da universidade porteña encolheu 32,5% no primeiro trimestre de 2024, em comparação ao ano anterior. A maioria das instituições ficaram na faixa de 30% a 40% de redução na verba.
"Não sabíamos que a situação do orçamento estava tão grave. Uma manhã quando cheguei na faculdade estava tudo apagado", diz a estudante do terceiro ano de medicina, Morena Españon, que participou do protesto desta terça.
O hospital universitário da UBA teve de suspender cirurgias e funciona a 30% da capacidade.
Morena Españon também estava na praça em frente à faculdade durante a aula ao ar livre, porque trabalha como assistente de Falzone nas classes de biologia celular e genética, lecionadas à turma do primeiro ano.
Se a UBA fechar pelo restante do ano, a estudante terá de voltar a sua cidade, Vicente López, na região metropolitana de Buenos Aires, a uma hora da faculdade.
"Eu não vou poder estudar. Então, vou continuar trabalhando como enfermeira do meu irmão, que sofre de uma doença rara. E, como não vai ser suficiente para bancar as minhas contas, vou ter que buscar um segundo trabalho", diz a estudante.
No embate pelo congelamento do orçamento, o governo demanda poder para auditar os gastos das universidades públicas.
Atualmente, a função é responsabilidade de entidades internas às faculdades e do Congresso. O Legislativo, aliás, convocou uma sessão extraordinária para esta quarta, 24, para tratar da demanda universitária.
Por que esse protesto é diferente?
Na noite desta terça, após o ato se dissipar, Milei publicou em suas redes sociais a imagem de um leão, símbolo do presidente e dos libertários, tomando uma xícara com a legenda: "lágrimas de esquerdistas".
Os estudantes, professores e funcionários em geral das universidades até podem estar à esquerda para os parâmetros de um libertário, mas eles representam diversos grupos.
Muitos estão alinhados ao radicalismo, como o reitor e grande parte dos professores da UBA, e ao peronismo não-kirchnerista.
Esses dois movimentos integram a chamada "oposição dialoguista", da qual Milei depende do apoio no Congresso para poder avançar com suas reformas — o novo pacotão ómnibus tramita na Câmara nestas semanas.
https://twitter.com/o_antagonista/status/1782879434690707467
De fato, o sindicalismo tradicional e outros movimentos ligados ao kirchnerismo, como La Cámpora, participaram da manifestação desta terça e tentaram capitalizá-lo.
Bandeiras e uniformes desses grupos ficaram mais frequentes com o decorrer do protesto, em especial no caminho do Congresso até a Casa Rosada, onde se encerrou o ato desta terça.
A ex-presidente Cristina Kirchner posou da sacada de seu instituto, nas redondezas do Legislativo, com um moletom da Universidade Nacional de La Plata, onde ela estudou direito.
Apesar da intromissão, o protagonismo do protesto desta terça permaneceu com a comunidade universitária tanto no palanque montado na Praça de Maio quanto nas ruas.
Os discursos dos líderes da manifestação se concentraram nas demandas universitárias, sem nenhuma menção explícita a Milei.
Nas ruas, chamou atenção da reportagem de Crusoé o fato de grupos distintos cantarem a melodia da marcha "Juventud Peronista" com letras alteradas, sem as referências ao peronismo.
Também se destacou a ausência de episódios de ofensas ou agressões a jornalistas de veículos locais, segundo correspondentes do canal de notícias TN, que tendem a ser alvos em protestos.
Brasileiros no protesto estudantil
Brasileiros, que respondem por mais de 10% de todos os estudantes de medicina da Argentina, também participaram da manifestação desta terça.
Crusoé se deparou com pelo menos cinco ao longo da cobertura.
Um deles é Isla Montalier, de 29 anos, natural de Aracajú, Sergipe. Médica recém-formada de uma universidade particular argentina, ela convocou outros brasileiros pelo Instagram.
Com mais de 135 mil seguidores, o perfil dela é voltado à comunidade brasileira em Buenos Aires.
"Estamos aqui para apoiar a toda a educação gratuita no país", diz.
Até o início de 2024, pelo menos, os estudantes brasileiros tinham um motivo a mais a se preocupar.
Milei queria cobrar uma taxa de alunos estrangeiros que não tivessem título de residência permanente — brasileiros com um contrato de aluguel conseguem esse documento em cerca de dois meses.
"Isso é uma cortina de fumaça. Os estudantes estrangeiros da UBA não passam de 10%", diz a brasileira.
A medida estava na primeira versão do pacotão de reformas ómnibus, que caiu no plenário da Câmara no início de fevereiro. A ideia não permaneceu no atual pacote, que deve ser votado pela Casa até a semana que vem.
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