ReproduçãoA venezuelana María Corina Machado discursa em Mérida, apesar de ter sido inabilitada por Maduro

A luta pela liberdade também é sua

O princípio mais importante é também o mais distorcido pelos políticos, segundo suas conveniências
08.03.24

Um lutador pela liberdade.” Foi assim que a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, recordou Alexei Navalny, o mais conhecido opositor do presidente russo Vladimir Putin, morto em meados de fevereiro em uma colônia penal na Sibéria. “O que Putin e seus amigos mais temem é que o povo se levante, que fale. [Eles têm medo] dessa luta pela liberdade e contra a corrupção, como fez Navalny. O mundo perdeu um lutador pela liberdade. Vamos honrar o seu nome e defender a democracia e nossos valores”, disse Ursula. No enterro, duas semanas depois, russos formaram filas enormes e gritavam slogans como “A Rússia será livre!“. Mais de noventa pessoas foram presas no dia do funeral de Navalny.

Liberdade é um dos conceitos mais sublimes, mais inspiradores e também mais desgastados dos tempos atuais. Todos os políticos, das ideologias mais variadas, proclamam-se seus legítimos defensores. Até mesmo Putin, o homem que ordenou a invasão da Ucrânia e é o responsável pela morte de Navalny, afirmou no ano passado que seu país estava “lutando não apenas pela liberdade da Rússia, mas pela liberdade de todo o mundo“.

Se a frase de Putin vira o mundo de cabeça para baixo é porque a intenção era exatamente essa. A desinformação é uma das artes do Kremlin. Seus discursos são reverberados por propagandistas a soldo dos russos em vários países, incluindo o Brasil. Putin também exerce um magnetismo que atrai políticos diversos, da mesma maneira como o alemão Adolf Hitler e o italiano Benito Mussolini encantavam governantes do Ocidente antes de empurrarem o mundo para a Segunda Guerra Mundial. Entre os admiradores de Putin estão nada menos que Donald Trump, Jair Bolsonaro e Lula. E todos eles se propagandeiam como promotores da liberdade. O resultado é uma salada russa, em que os ingredientes se confundem. Para não ser o próximo a cair na armadilha da desinformação, é imprescindível ter, em primeiro lugar, uma definição nítida do conceito de liberdade.

Liberdade é a capacidade de se fazer o que se quer. Isso pode ser entendido como acreditar no que se gosta, ir para onde se bem entende e expressar qualquer opinião. Mas, desde os gregos antigos, esse nunca foi considerado como um valor absoluto. Quando o filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873) debruçou-se sobre o assunto, ele já entendeu que a liberdade de uma pessoa deveria ser limitada para não causar o mal a terceiros. Ninguém é livre para matar outra pessoa. No século seguinte, o conceito foi traduzido em metáforas pelo filósofo Isaiah Berlin (1909-1997). Duas de suas frases preferidas para explicar as ideias de Mill eram: “a liberdade do tubarão é a morte das sardinhas” ou “a liberdade do lobo quase sempre significa a morte do cordeiro”.

Berlin, que era russo-britânico, desenvolveu as ideias de Mill e introduziu a ideia de “liberdade negativa”. Para ele, a liberdade de um indivíduo seria tanto maior quanto menos o governo e outras pessoas interferissem em sua vida. Esse seria um valor “negativo”, porque dependeria da ausência de obstáculos no espaço individual. O importante, para ele, é delimitar um espaço protegido no entorno de cada indivíduo para que ele possa perseguir seus próprios fins, relacionar-se com quem quiser e seguir sua própria fé. “A liberdade cujo preço é a ‘vigilância eterna’ é uma operação defensiva perpétua a partir de muralhas que não seriam necessárias se ela não estivesse em constante perigo”, escreveu Berlin em Dois conceitos de liberdade, obra que nasceu de uma palestra que ele deu em 1958. A liberdade, assim, não é um presente dado pelo Estado, mas é garantida quando o Estado não avança nessa área individual.

Em um mundo onde 40% da população vive em 59 regimes autoritários, esse é um conceito que deve estar sempre à mão. A liberdade, afinal, é um item raro para muitos. Um norte-coreano neto de um dissidente político pode nascer e morrer dentro de um campo de trabalhos forçados sem nunca saber o que há além da cerca. Um cubano jamais pode defender outra ideologia que não o socialismo. “A defesa da pátria socialista é a maior honra e dever supremo de cada cubano. A traição à pátria é o crime mais grave”, diz a nova Constituição do país, aprovada em 2019.

Em cada uma das autocracias e ditaduras, governantes autoritários dominam seus súditos em parceria com uma elite rentista, enquanto a maior parte da população é obrigada a aquiescer. Para todos, o custo de revoltar-se ou de protestar pedindo mudanças costuma ser muito alto. Sendo assim, cada um faz o seu próprio cálculo de como agir, levantando os benefícios e os riscos. Se empunhar um cartaz contra uma ditadura implica a perda do emprego, a retirada do cartão de racionamento ou alguns anos na cadeia, é natural que muitos abram mão da própria liberdade. “A maioria da população costuma ser desorganizada, e com isso acaba se submetendo a uma minoria organizada, que é o Estado. Além disso, o governo costuma garantir sua sobrevivência ao usar a força bruta, ao controlar as ideias e ao dividir a população, angariando o apoio de uma elite pequena“, diz o cientista político Adriano Gianturco, professor do Ibmec em Belo Horizonte. Outra opção é “votar com os pés”, quer dizer, emigrar. Dos 30 milhões de venezuelanos, quase 8 milhões já deixaram o país para fugir do chavismo — um em cada quatro. Já é o maior êxodo da história nas Américas.

Raros são aqueles que se expõem e seguem na luta pela liberdade em seus países, apesar de todas as ameaças. Como eles podem inspirar outros que estão insatisfeitos a se opor ao regime em questão, são esses corajosos os que arcam com as piores punições. Entre eles estão as venezuelanas María Corina Machado (inabilitada por quinze anos) e Rocío San Miguel (presa). A lista ainda inclui cubanos, bielorrussos, russos, nicaraguenses e chineses. Sem poder desfrutar da liberdade em seus países, eles lutam pela liberdade de todos.

Mas nem sempre a luta dessas pessoas valentes desperta compaixão entre os habitantes de países livres. Apesar de todo discurso laudatório sobre liberdade, a solidariedade internacional está em baixa. “Minha impressão é de que o interesse político de alguns atores acaba ficando por cima da preocupação com as dignidades humanas. O que prevalece hoje para os grupos políticos é aquela regra de Maquiavel, de que o importante é conquistar e manter o poder, muito mais do que defender os heróis da liberdade”, diz Leandro Bachega, doutorando em filosofia na USP e autor do recém-lançado livro Isaiah Berlin – Pluralismo e dois conceitos de liberdade (É Realizações).

Essa decepção também transpareceu em um artigo para a revista The Economist escrito por Natan Sharansky, um ex-preso político que ficou nove anos em um gulag na União Soviética. No texto, ele contou sobre sua correspondência com Alexei Navalny. Os dois foram submetidos à cela conhecida como shizo. “É tão fria que não se pode dormir. Você consegue três pães e dois copos de água por dia. Não há nada para ler, nada para escrever, ninguém para conversar. A punição é restrita a quinze dias, mas se o sistema quer destruir você ele pode te colocar lá repetidamente”, escreveu. Sharansky acredita que a época atual é menos propensa a se preocupar com as vítimas de Moscou. “Havia uma grande diferença entre o meu tempo na prisão e o de Navalny. Na minha época, os políticos do Ocidente entendiam a dimensão da luta e viam o destino dos prisioneiros políticos soviéticos como parte de sua própria segurança. Agora isso não acontece. E esse é um erro de proporções históricas”, escreveu. Para Sharansky, o Ocidente deveria sempre apoiar as vítimas da violência política como uma forma de impedir que esses governos se alastrassem pelo mundo. Dessa maneira, eles estariam garantindo a continuidade de suas próprias democracias.

Voltando a Isaiah Berlin, ele também definiu outra liberdade, a positiva, em que o indivíduo se vê como senhor de si próprio e faz uso dos seus direitos. Pensadores que vieram em seguida passaram a argumentar que, muitas vezes, é preciso que ocorra uma ação estatal para que essa liberdade positiva possa valer. Se uma criança pobre não tem acesso à escola, suas possibilidades futuras se reduzem e ela não terá como fazer muitas escolhas quando adulta. Sendo assim, o Estado precisa encontrar uma maneira de dar a ela essa oportunidade. Um morador de uma favela do Rio de Janeiro que é extorquido pelo Comando Vermelho pode ter toda a sua vida regulada pelos criminosos. Não pode sair de casa a qualquer hora, nem contratar qualquer empresa de telefonia. O Estado, então, precisa se fazer presente e aplicar a lei para garantir os direitos dos cidadãos. Em situação parecida estão os yanomamis, que clamam por uma ação estatal para que os garimpeiros ilegais não invadam seu território.

O problema das liberdades positivas costuma estar na dosagem. Com o intuito de garanti-las, o Estado frequentemente solapa as liberdades negativas, invadindo o espaço individual das pessoas. É o que acontece quando, em nome de preservar a liberdade de expressão e manter o debate público a salvo de “fake news”, o Supremo Tribunal Federal passa a censurar jornalistas e veículos de imprensa. Esta semana foi a vez de o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, avançar no espaço de liberdade das pessoas que trabalham com aplicativos de transporte e de entrega, como Uber e IFood. “Sob o pretexto de garantir condições dignas de trabalho, o Estado quer limitar o número de horas que uma pessoa pode trabalhar com esses aplicativos. Esse é um caso recente de uma situação em que o Estado, ao tentar garantir uma liberdade positiva, extrapola o seu papel”, diz o cientista político Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia (leia o seu artigo Putincracia nesta edição da Crusoé). “As ações para garantir liberdades positivas deveriam ser sempre mínimas, o suficiente apenas para garantir que elas sejam exercidas. Do contrário, podemos ter um Estado paternalista que avança sobre o espaço dos indivíduos.”

No Brasil, tanto Lula como Bolsonaro, os dois homens que comandam a vida política do país, pecam na defesa das liberdades. Nesta quarta, 6, Lula se pronunciou sobre as eleições presidenciais na Venezuela, marcadas para o dia 28 de julho. Ao responder sobre a opositora María Corina Machado, que foi inabilitada por 15 anos pela Justiça chavista, o presidente brasileiro afirmou que “fui impedido de concorrer às eleições de 2018. Ao invés de ficar chorando, eu indiquei o outro candidato e (ele) disputou as eleições”. A mensagem para Corina foi que ela deveria deixar que outro candidato assumisse o seu lugar, sendo que foi ela a vencedora das eleições primárias e é ela quem mais tem chances de derrotar Maduro. “Eu choro, presidente Lula? Você está dizendo isso porque sou mulher? Você não me conhece”, respondeu Corina na rede X. “Estou lutando para fazer valer o direito de milhões de venezuelanos que votaram em mim nas primárias e dos milhões que têm o direito de fazê-lo em eleições presidenciais livres nas quais derrotarei Maduro.” Além de debochar de María Corina, Lula já se contorceu para não responsabilizar Putin pela morte de Navalny. “Para que essa pressa de acusar alguém?”, disse Lula. “O cidadão morreu em uma prisão. Eu não sei se ele estava doente, se ele tinha algum problema.”

Indiferente à luta dessas pessoas por liberdade, Lula ainda dá total apoio para os algozes delas, como Maduro e Putin. O petista esta semana deu vários sinais de que irá chancelar as reeleições desses dois ditadores neste ano. O Brasil ainda tem atuado para ajudar esses países a contornarem as sanções ocidentais. Lula quer que Putin, acusado de crimes contra a humanidade, possa estar presente no encontro do G20 este ano no Rio de Janeiro. Quando o chanceler russo Sergey Lavrov esteve no Brasil, o governo até cedeu um avião da FAB para levá-lo até Brasília, porque as sanções internacionais criaram problemas para que o avião oficial russo fosse abastecido.

Na bajulação a Putin, o petista concorre com Jair Bolsonaro. Quando ainda era presidente, em 2022, Bolsonaro foi até o Kremlin para prestar solidariedade à Rússia, uma semana antes do início da invasão da Ucrânia. No final de fevereiro, Bolsonaro publicou um vídeo de propaganda em que aparecia ao lado de Putin. “Eu fui conversando, fiquei três horas com o Putin, uma distância minha com a tua, sem máscara, diferente de quando ele recebeu o (Emmanuel) Macron, e tratamos de muita coisa lá. Uma delas foi a questão dos fertilizantes”, disse o presidente. Naquele mesmo ano, Bolsonaro reuniu-se com seus assessores e com militares para elaborar uma minuta de decreto que poderia ter enterrado de vez a liberdade política dos brasileiros.

Outro exemplo de como ele distorceu o sentido da liberdade deu-se durante a pandemia. Bolsonaro recorreu ao princípio para negar-se a tomar vacina contra a Covid-19 e também sustentou que as cobranças pela vacinação eram tirânicas. Defensor do libertarismo, a vertente filosófica que entroniza a liberdade em mais alta medida, o filósofo americano Jason Brennan mostrou, na época, que até a defesa mais instransigente da liberdade individual deve abrir espaço para o cuidado com o próximo, sobretudo em situações anômalas como uma pandemia. Brennan invocou o “princípio das mãos limpas”, segundo o qual todo indivíduo tem a obrigação de se abster de opções que, agregadas, causam danos aos demais. Uma pessoa que deixa de se vacinar parece ser irrelevante. Mas tomados em conjunto, os indivíduos que não se imunizam quando poderiam fazê-lo aumentam o risco de uma doença se espalhar e causar vítimas. Ao se omitir, eles “sujam as mãos”. São circunstâncias em que até o individualista mais empedernido deve levar em consideração a comunidade em que vive.

Com Lula ou Bolsonaro, a sensação é de que o Ocidente não dá valor aos seus princípios e não reage aos avanços das ditaduras. Em algum momento, o Ocidente corre o risco até de sucumbir por ingenuidade ou inapetência. Tudo isso quando a China usa de seu poder econômico para cooptar universidades, veículos de imprensa e parlamentares no Brasil, a Rússia financia uma rede de influenciadores, sites e acadêmicos para reproduzir as narrativas do Kremlin e Cuba atua diretamente nos mais altos escalões do governo para obter alguma ajuda para seu regime falido. Em seu livro A Constituição da Liberdade (Avis Rara), publicado pela primeira vez em 1960, o economista austríaco Friedrich Hayek expôs uma preocupação que continua atual. “Para vencermos a grande luta de ideais que está sendo travada, temos, antes de tudo, de saber no que acreditamos”, escreveu Hayek, durante a Guerra Fria. “Atualmente, a política externa é, em grande medida, uma questão de qual filosofia política triunfa sobre outra; e a nossa própria sobrevivência pode depender de nossa capacidade para reunir uma parte do mundo suficientemente forte em torno de um ideal comum.” O mundo poderá ser um lugar melhor e mais seguro se esse ideal for a liberdade.

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  1. 👏👏👏👏👏👏👏👏 (de pé). Vivemos um ponto de inflexão na humanidade em que as pessoas terão que decidir entre princípios e valores ou a palavra de populistas que dizem defender a liberdade, Deus, os pobres... mas que verdadeiramente só enxergam poder e grana.

  2. Duda Teixeira oferece uma visão lúcida sobre a liberdade, expondo a ironia de autocratas que se dizem seus defensores. Ao destacar a bravura de indivíduos como Navalny e Machado, ele nos lembra de que a verdadeira liberdade exige luta constante e vigilância contra aqueles que pretendem moldá-la para seus próprios fins. É um poderoso alerta para valorizarmos e protegermos nosso mais precioso bem coletivo.

    1. O Brasil através da truculência de um ditador já tem o seu Navalski na figura do manifestante Cleriston Cunha preso ilegalmente e morto na prisão onde mais de mil inocentes no mínimo processados ilegalmente por foro (o argumento que descondenou o chefe do bando ungido pelas cortes ao poder) e um ditador impôs tortura mental a culpados e inocentes na maior barbárie política da triste estória deste lixo infecto que chamam república ... pobre Ilha de Macunaíma.

  3. A mulher de César, não basta parecer honesta. Tem que ser honesta no falar, nas ações e atitudes, na ostentação, no vestir, e ser respeitada. Sempre. No caso do Brasil, o presidente parece uma putana em todas as atitudes, falas, posturas, ocasiões. O Brasil é uma Democracia e ele foi eleito dizendo que era um democrata agora, no exercício da Presidência, se declara comunista e como disse o Sr. Nikolás, é um ladrão condenado com fartas provas documentadas, ex-presidiário, amante das ditaduras!

  4. Parabéns, Duda! Seu texto é envolvente, emocionante, triste e ao mesmo tempo elucidativo. “Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós!”

  5. Que bom se esse seu artigo fosse utilizado como referência para uma prova de vestibular das Universidades, especialmente as públicas, mas não só elas. Nosso povo é ignorante. Não basta aprender a ler, escrever, ou ainda, saber calcular raiz quadrada.

  6. Ótimas análises e reflexões . Infelizmente temos tido presidentes que passam pano pra ditadores e autocratas. O Lula deve querer transformar o Brasil na Rússia do Sul, por isso tem essa politica externa imprestavel que nos afasta das democracias

  7. Desde quando um presidente querer usar um instrumento de defesa instorucional do Estado é crime? Mas grave erro estratégico pois bastaria motivo houvesse, e houve vários, decretar e o Congresso Nacional aprovar o que poderia depender da $$$ das imorais emendas parlamentares ...o idiota deu chance ao bando ditador e tentáculos em narrativas cínicas o incrimonarem ... inda vai Mané?

  8. Muito bom. Acrescentaria que a constante busca por ideais vale a pena ainda que se trate apenas disso "ideais", inatingíveis, muitas vezes, ao passo que a escravidão, quando não combatida, é bem real.

  9. Excelente texto. Abrangente e preciso. Desconhecia John Brennan, vou lê-lo pois achei interessante esse "princípio das mãos limpas"

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