Foto: Wikimedia CommonsIlustração para o Decameron, de Boccacio: igualzinho ao nosso país tropical

O que o Decameron ensina sobre a corrupção brasileira

Nossa ladroagem é não só perversa como brega, e ainda assim os fanáticos encontram meios de justificar os malfeitos de seus ídolos políticos 
18.05.23

Nunca escrevi a respeito da corrupção. O tema me entedia mais do que me enoja. Para ficar em um escândalo recente, tento acompanhar os enroscos do clã Bolsonaro com cartões de vacinação e de crédito, mas logo canso. Não bastasse a figura diligente e sorridente do tenente-coronel Mauro Cid, agora apareceu um sargento que também cuidava das contas da ex-primeira-dama. Não tenho paciência para milicos áulicos.

Vários artigos meus, é verdade, trataram lateralmente de corrupção. Pois aqui é Brasil, e até escrevendo sobre literatura – ou arte, ou ciência, ou futebol… – a sujeira em algum momento se apresenta. Mas, até onde lembro, nunca fiz um texto exclusivamente dedicado à corrupção. Pois minha aversão à troca de favores e ao tráfico de influência não é apenas moral: ela é principalmente estética. A corrupção é tão feia quanto viciosa. Aliás, a corrupção é o mais feio dos vícios.

Outro dia, revi O Poderoso Chefão 2. No início do filme, um senador corrupto tenta cobrar Michael Corleone (Al Pacino) pela licença para operar um cassino em Las Vegas. Queria um dinheiro por fora, como se diria no Brasil. Gângster de princípios como já fora seu pai, Michael recusa a proposta. Os meios pelos quais acabará dobrando o senador envolvem a morte brutal de uma prostituta, mas, no universo ficcional do filme, essa atrocidade parece mais nobre do que maços de dólares passados por baixo da mesa.

Reprovamos, por princípio, a agressão, a guerra, a violência, mas não escapamos ao fascínio que essas perversidades exercem – que o diga o inglês Thomas De Quincey, autor de um fino ensaio sobre o assassinato como obra de arte. O terror extremo pode se aproximar do sublime e os crimes mais violentos por vezes carregam com eles a grandeza trágica. A corrupção, ao contrário, é sempre um negócio vulgar, mesquinho.

Eu proporia uma definição assumidamente falaciosa da corrupa brazuca – uma definição que contorna aspectos morais e jurídicos essenciais ao objeto definido: a corrupção brasileira é aquela atividade subterrânea exercida por gente brega para comprar breguices caras. Minha proposta tem amparo em numerosos exemplos: apartamento de juiz em Miami; dança com guardanapo na cabeça em Paris; cueca servindo de cofre; empreiteira fazendo reforma em sítio com lago e pedalinho; imóvel para guardar dinheiro vivo; dinheiro vivo para comprar imóvel; propina em Bíblia, ouro e pneu; e joias, muitas joias ostentosas mas nem por isso elegantes.

A breguice vem acompanhada da pobreza retórica. Corruptos e corruptores só conhecem duas figuras de linguagem: a perífrase e o eufemismo, empregados para encobrir a natureza ilícita de suas práticas. Sabe aquela conversa de “inconsistência contábil”? Pois é disso que estou falando.

Ao que parece, o recém-lançado livro de Emílio Odebrecht é pródigo nesses expedientes. Não o li, nem o lerei. Observo, no entanto, que quase todos os excertos reproduzidos na imprensa são circunlóquios para levar à conclusão de que a lama das empreiteiras é limpinha. Eis o autor negando que a Odebrecht mantinha um departamento de propinas: “O que existiu foi um sistema de geração de recursos não contabilizados, o popular ‘caixa 2”. Sim, o caixa dois é mais popular que Anitta e a capivara Filó juntas: faxineiras, pequenos comerciantes e entregadores de aplicativo – todos mantêm algum “faturamento alocado” para “atender contingências inesperadas”.

A tentativa de relativizar, distorcer ou até negar fatos relacionados à corrupção estende-se para além daqueles que lucram com esquemas ilícitos. Os fiéis das seitas políticas brasileiras têm a notável tendência de neglicenciar os fatos que implicam seus líderes enquanto apontam o dedo justiceiro para os malfeitos do campo oposto. E isso ainda é trivial: o espantoso é quando os sectários consideram que suspeitas de ladroagem confirmam a virtude de sua seita.

No século XIV, Giovanni Boccaccio apresentou um paradoxo similar na segunda novela da primeira jornada de seu Decameron. A história se passa em Paris, onde dois mercadores honestos – Giannotto, católico, e Abraam, judeu – tornam-se muito amigos. Preocupado com a salvação da alma de Abraam, Giannotto busca convencer o amigo a abandonar os “erros do judaísmo” e abraçar “a verdade cristã”. Tanto insiste que o judeu afinal admite a possibilidade de ser batizado – mas não sem antes conhecer o centro do catolicismo, Roma. Giannotto desespera-se: se o amigo vir de perto a devassidão da corte papal, jamais se converterá ao cristianismo.

Como previsto, Abraam assombra-se com os pecados que grassam na cúpula da igreja: a luxúria tanto “natural” quanto “sodômica”, a glutonaria desregrada, a ganância que busca lucro até com bens sagrados. De volta a Paris, ele relata tudo isso a Giannotto. Para alegria do amigo, porém, decide ingressar no rebanho católico naquele mesmo dia. Abraam concluíra que, se a fé cristã ainda cresce enquanto seus altos representantes trabalham para desmoralizá-la, isso prova que ela é “a religião verdadeira e santa”.

A corrupção da igreja, portanto, confirma a verdade da fé. À esquerda e à direita, os fanatizados brasileiros levaram essa racionalização a um extremo idiotizado. Toda notícia de maracutaia envolvendo seus ídolos políticos só confirma que estes estão no caminho certo – e que por isso são perseguidos pelo establishment político, pelos interesses estrangeiros que conspiram contra nossa soberania nacional, pela mídia, pela elite. Quanto mais se acumulam indícios e evidências de corrupção, mais o grande líder se consagra como o único que pode deter a corrupção. E esse tipo de pensamento mágico corrompe ainda mais o debate público.

(Desconfio que na verdade eu sempre escrevi sobre corrupção.)

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor.

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  1. Sempre acreditei que os jornalistas têm a obrigação moral de expor os erros, equívocos e intenções não republicana de nossos governantes de todos os níveis. Também, expor os fatos que beneficiam a nação em todos os níveis. Agora compreendo porque estamos onde estamos. Ou você criou o texto na pessoa física, Jerónimo? Se positivo, gostei!

  2. Uma leitura interessante da consequência do analfabetismo político e cívico da população recém desperta para a política.

  3. A comparação com a novela do Decameron é muito boa. Quanto mais lama de corrupção envolve Lula e Bolsonaro, mais convictos em suas fés ficam lulistas e bolsonaristas.

  4. Gostaria que este seu texto e outros que são escritos na Crusoé fosse lidos em praças públicas. De forma que o povo pudesse entender quanto está sendo feito de pal.haço pelas nossas altas instituições governamentais, e religiosas também. O brasileiro tem preguiça de se informar, não é só questão de cultura. O analfabetismo funcional do nosso povo é preguiça sim. Melhor curtir Carnaval, e outras festas nossas tão inebriantes. e deixar para a Globo a função de informar sobre a situação do Brasil.

  5. Realmente o indignado jornalista "odeia" escrever sobre corrupção e eu que abomino até o entendo MAS onde ele estava quando BILHÕES vou repetir BILHÕES foram roubados por uma quadrilha homiziada no Palácio do Planalto com a Petrobrás e grandes empreiteiros? Na sua sacrossanta indignação vá ver dando milho aos pombos na praça dos Pôdres Poderes não é filho? É óbvio que falsificação de vacina é crime e deve ser mostrado ao povo mas POR QUE a pudica omissão a crimes de responsa? mistééééérios !!!

  6. Excelente matéria, alto nível de ideias comparativas, e aterrorizantes. como muito bem disse, é vulgar e mesquinho. Personalidades e excelências extremamente despreziveis.

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