Foto: Saulo Dias/Photo Press/FolhapressO show de Ney espanta pela forma física do ancião e pelo capricho de apresentar o melhor do Brasil

Canções que salvam o Brasil

No Brasil devastado pelo ódio e pelo absurdo, o gênio de Ney Matogrosso resgata num espetáculo excepcional a qualidade fora de série de várias gerações
23.06.23

Este país está indo para o fundo do poço, ou melhor, da fossa. Um artigo pródigo em lucidez de um militante do direito nos campos da liberdade de expressão e da partilha equânime do patrimônio da civilização, André Marsiglia, publicado em Crusoé e Antagonista, alerta o leitor para o abismo do emparedamento dos párias ante as castas. A deputada Dani, herdeira de Eduardo Cunha, fez uma lei que torna políticos, seus parentes e aderentes acima da justiça. O múltiplo relator do arcabouço, na prática calabouço, fiscal e da equiparação da atividade política ao racismo, Cláudio Cajado, introduziu saliva no debate cívico da nação adotando a longeva prática do “me engana que eu gosto”. E a suspeita escarra em Têmis.

Parece impossível pular o muro que Franz Kafka previu no século passado. Mas nossa plebe “ignara”, que sustenta políticos, puxa-sacos, militares e sindicalistas organizados com abundante suor de sua boca paralisada, ainda tem o direito ao deleite pela via dos tímpanos de bom gosto. Este escriba conheceu Ney Matogrosso em agosto de 1973, eu aos 22 anos, ele aos 31. Apresentado por um vizinho da redação da Folha de S.Paulo, Walter Silva Picapau, amigo de um certo Moracy do Val, inventor desse teimoso fenômeno que passou quase 50 anos fazendo sua arte única do jeito que sempre quis.

Walter, corintiano da Mooca, produziu o até hoje mais vendido LP, depois CD, não sei mais o quê, da tal da Música Popular Brasileira, dona MPB, Dois na Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues. Moracy, colunista do Última Hora, cujo dono era seu Frias e o fundador Samuel Wainer seu diretor, no prédio ao lado, na Barão de Limeira, chamou um ator de A Viagem, adaptação dos Lusíadas, de Camões, escrita por Carlos Queirós Teles, dirigida por Celso Nunes e produzida por Ruth Escobar, para uma aventura: ser o cantor dos Secos e Molhados, de João Ricardo e Gerson Conrad. Em agosto de 1973, fiquei de queixo caído com o que o velho Mora nos oferecia: uma voz absolutamente singular, inigualável e inimitável num corpo malhado, nu, saracoteado e pintado. Duas canções impressionaram o foca da Folha naquela noite no Teatro Record da Rua Augusta no programa Mixturação, produzido por Walter e Mário Buonfiglio. Sangue Latino, melodia fantástica de João Ricardo, com letra magnífica de Paulinho Mendonça, é irresistível na mesma voz de Ney, dos 31 aos 81. A outra é Rosa de Hiroshima, obra-prima do grande e nunca totalmente reconhecido engenho poético de Vinicius de Moraes. A década dos 1970 pesava toneladas insuportáveis e ali estava a perfeição que o Brasil consegue parir, apesar dos pesos, pêsames e pesares.

Cinco decênios se passaram e, enquanto a elite política, empresarial, sindical e pública se refestela na lama generalizada, o mesmo dom preciso e precioso de quase meio século atrás me comove ao contrastar com a fossa geral brasileira e a derramar o bálsamo das melhores canções e dos mais espetaculares poemas para nos fazer levitar a 6 mil metros do chão. Hoje, como dantes, Ney nos presenteia com seu extraordinário talento vocal. Mas sem perder o realismo. O espetáculo com que percorre o país desde 2019 tem título simbólico da canção composta no mesmo ano da estréia artística de Ney, 1973: Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio, de Cachoeiro do Itapemirim, de Roberto Carlos e Rubem Braga. E ele, na certa teria de novo morrido da pancreatite resultante da fome, do álcool, da droga e da revolta, matérias primas de seu único sucesso.

O show de Ney espanta pela forma física de jovem do ancião e pelo capricho, que parece intencional, de apresentar o que de melhor este Brasil escatológico produziu e ainda pode (Deus queira) produzir. De sua geração de berço nos presenteia jóias de Caetano Veloso, Chico Buarque (inclusive a versão da obra-prima do cubano Pablo Milanés, Yolanda) e Martinho da Vila. Fez questão de doar sua voz única à turma que assumiu o microfone à mesma época que ele no Mixturação: Fagner, Raul Seixas, Paulo Coelho, Clodoaldo, Rodger Rogério e Ednardo (do Pessoal do Ceará). Da herança do Secos e Molhados importou Solano Trindade, poeta que João Ricardo musicou. Os outros autores são de gerações intermediárias. Como Rita Lee.  Caso a parte foi o de Cazuza, com quem também este autor cruzou no início da carreira dele. Em 1983, secretário de redação do Jornal do Brasil, editei uma capa da semanária Revista de Domingo sobre o sucesso do Barão Vermelho, do qual Cazuza fazia parte. Poeta de fina estirpe, descoberto por Zeca Jagger, o Ezequiel Neves, comparece no show com a belíssima Poema. E ali também estão DJ Dolores, Paralamas do Sucesso, Itamar Assumpção, da vanguarda da Lira Paulistana, Alice Ruiz, que foi casada com o poeta Paulo Leminsky, Paulinho Moska e Dan Nakagawa.

E para ninguém dizer que não falei em parceiro meu nesta história, destaco o fato incrível de que tanto no espetáculo sobre a vida de Ney, montado no Teatro Procópio Ferreira, na Rua Augusta, quanto no Espaço Unimed, os shows foram encerrados de forma apoteótica pela mesma canção. Qual seja, o enorme sucesso fora da esquadro desse nosso personagem: Homem com Agá. Afinal, hoje estamos no São João. Viva São João do carneirinho, viva o Brasil, viva Ney Matogrosso do mundo.

 

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Artigo excelente parabens...graças a DEUS ainda temos o Ney pra nos salvar de tanta coisa ruim neste Pais. Deus proteja a todos nós do que vem pela frente !

  2. Que bom Nêumanne, resgatar alguns dos que realmente orgulham o Brasil. Ney é um representante genuíno e admirável da nossa música. Chico Buarque já tenho dificuldades em desmembrar o músico do ativista. Mas aí estão nesse texto grande nomes que precisamos trazer novamente às luzes, e apagar os atuais sertanejos, sofrencias e algoritmos dançaveis.

Mais notícias
Assine agora
TOPO