Divulgação/Padre Paulo

A liturgia como síntese das artes

O tema da origem mítico-religiosa é pouco estudado no Brasil, principalmente no âmbito acadêmico
23.06.23

Houve um tempo em que a arte e a religião tradicional eram perfeitamente integrados. Numa catedral gótica, vê-se condensada a doutrina cristã, como uma bíblia de pedra — para usar o termo de John Ruskin, que escreveu o livro A Bíblia de Amiens sobre a catedral homônima. Num ícone ortodoxo, vemos um testemunho do Espírito Santo e o próprio Evangelho enunciado através das imagens. Numa igreja barroca, está presentificada em imagens a simbologia cristã sobre as hierarquias celestiais, os profetas, os santos, a Virgem e o Cristo, numa cortina de formas que intercepta o real — como escreveu Germain Bazin.

Na modernidade, houve um distanciamento crescente entre arte e religião e uma dessacralização da arte. O grande ponto de ruptura é o Renascimento, em que a arte se voltou para o real como aparência em vez de essência. Em todas as épocas, entretanto, é possível reconhecer um diálogo profundo com a transcendência. Inclusive no cinema, arte tão nova, o sagrado é elemento central na obra de diversos cineastas, especialmente Andrei Tarkóvski – cuja obra dialoga profundamente com a tradição cristã dos ícones.

O tema da origem mítico-religiosa da arte, entretanto, é pouco estudado no Brasil, principalmente no âmbito acadêmico. Prevalece uma visão materialista da arte baseada em conceitos marxistas, de representação social, ou preconceitos historicistas. Autores como Ernesto Grassi, John Ruskin, Pavel Florenski – que têm essa abordagem mítico-religiosa da arte – tiveram poucas obras publicadas no Brasil e estão à margem dos principais debates acadêmicos sobre arte e cultura.

Existe um texto de Pavel Florenski, ainda não traduzido para o português, cujo título – numa tradução literal – é: “A liturgia como síntese das artes”. O livro se ocupa da arte religiosa como síntese suprema das artes.

Florenski foi filósofo, teólogo e padre ortodoxo russo. O texto citado foi publicado em 1918 para a salvaguarda do Mosteiro da Trindade, na Rússia, que Florenski vê como um centro de arte experimental comparável à antiga Atenas. Ele dizia que no mosteiro se sente a Rússia como um todo e defendia que o lugar fosse preservado em sua função religiosa, em vez de virar um museu naquele conturbado contexto revolucionário russo.

Ele dizia que uma obra de arte mantida no seu contexto original é como um pássaro solto na floresta, enquanto uma obra de arte colocada num museu é como um pássaro empalhado. No caso do mosteiro, elemento fundamental para mantê-lo é a liturgia, que envolve vários elementos — os ícones à luz de velas, o cheiro do incenso, a música do canto tradicional, o movimento dos celebrantes (que é uma espécie de coreografia, segundo ele).

Florenski chega a dizer que o jeito certo de ver um ícone é sob a luz de velas. A liturgia, para ele, é a arte total, pois envolve o tato (os ícones são beijados pelos fiéis), o olfato (do cheiro do incenso), a visão do espaço arquitetônico e da cerimônia litúrgica. A poesia, a música, as artes plásticas, estão também integrados.

Nem a ópera ou o cinema ativam tanto os sentidos quanto a liturgia. Estas artes, apesar de assimilarem outras artes, não chegam a atingir o tato ou o olfato.

Tal descrição da liturgia como síntese das artes se aplica perfeitamente à liturgia católica. O que torna a paróquia do seu bairro um museu vivo com uma tradição imemorial.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

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  1. Ótimo texto! Como pós graduanda em Conservação e Restauro de Arte Sacra, me interesso bastante pela história da arte e gostei muito de suas reflexões

  2. Interessante essa visão de que a paróquia do meu bairro é um museu vivo. Eu já tinha uma visão parecida, que agora foi reforçada.

  3. muito boa, sua observação, Josias; o amigo José Neistein disse-o bem: "sou fiel à ética judaica, assim como à estética católica, não há nada mais tão bem representado do que a liturgia da Igreja"

  4. Muito interessante, Josias. Talvez por isso eu prefira visitar lugares históricos à visitar museus. Ainda que sejam ambientes agradáveis , e nos possibilitam conhecer detalhes das obras, até porque a maioria não pode mais estar em seus ambientes originais. mas perde muito das sensações que os artistas queriam exprimir.

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