AlexandreSoares Silva

Alguém que odeia o Brasil se esforçaria para melhorá-lo?

14.10.22

Longe de mim ficar escandalizado porque alguém não é patriota. Acho normal. Cresci antipatriota, e todos os meus amigos eram antipatriotas. Você pega isso no ar, quando é uma criança em São Paulo. E na verdade, dois terços de tudo que escrevi foram maneiras novas de falar mal do Brasil e dos brasileiros.

Outro dia estava argumentando, por exemplo, que não existe brasileiro obcecado. Sabe o clichê de filme, do policial obcecado com o caso que está resolvendo, bebendo cafés madrugada adentro, fazendo painéis com artigos de jornal e com fotos ligadas por barbantes invariavelmente vermelhos? É ridículo fazer isso na tevê brasileira, mostrar um policial obcecado, o “Inspetor Macedo” ou algum nome decepcionante assim, porque sabemos muito bem que não existe brasileiro obcecado. O Inspetor Macedo não ia ficar obcecado com caso algum. Nós íamos prestar mais atenção no caso do Inspetor Macedo do que o próprio Inspetor Macedo.

Cheguei a argumentar até que não temos nem autistas. Não autistas comme il faut, que contam as ervilhas que caem no chão. Nossos autistas talvez contem as ervilhas, mas contam tudo errado. Não confio nem nos nossos autistas.

Enfim, parte do prazer de viver no Brasil é ficar encontrando coisas novas para falar mal. É um prazer, sim, como o que às vezes sentimos quando a gengiva está um pouco sensível e fazemos força bem nesse ponto com o fio dental. Esse é o prazer e a alegria de ser brasileiro, um prazerzinho neurótico.

De modo que não fiquei chocado com o vídeo do jornalista Eduardo Bueno, o “Peninha” para quem tem essas intimidades, autor de livros de história do Brasil, tradutor de Pé na Estrada de Jack Kerouac e biógrafo dos Mamonas Assassinas. Eis o que ele disse:

“Um dia eu disse assim, “Cara, eu moro no Brasil, eu estou ligado ao Brasil, então por que é que eu tenho tanto desprezo pelo Brasil? Vamos tentar entender o Brasil.” E aí como eu sou um cara treinado pra ler, que sou pago pra ler, cuja profissão é ler e escrever, tive a sorte (…) de ler dois mil livros sobre o Brasil, e escrevi trinta e três livros sobre a História do Brasil… Então do alto desse cabedal eu estou aqui pra te dizer (TOM DE PUNCHLINE) que sempre foi um país de merda, um país de merda, um país de terceira categoria, um país que não vale nada, o país que recebeu o maior número de escravos na história da humanidade, um país que dizimou os seus indígenas do mesmo jeito que os outros, mas tu precisa ver os requintes de crueldade, e que ainda os destrói, o país da desigualdade social, o país de uma elite nojenta, e acima de tudo o país de um povo gado, omisso, burro, nojento (…), gente horrorosa…”

Algumas pessoas ficaram chocadas. Eu não fiquei, sendo um detestador do país tanto quanto ele, embora por outros motivos: ao contrário dele não me acho eticamente superior aos outros brasileiros, nem menos “nojento” que “as elites”.

O país é o que é e eu não faria melhor que nenhum dos nossos antepassados. Nem Eduardo Bueno faria melhor, aliás, o que é algo que ele não parece perceber em nenhum momento, seja antes ou depois da leitura de dois mil livros.

Mas todo mundo agora está embriagado com o sentimento de ser melhor e mais ético que os próprios avós. Todo filme de época é assim agora – até se o período for só vinte anos atrás. Toda série, romance, livro de história, palestra etc. de agora é uma dança orgiástica de reprovação aos antepassados, o que só faz sentido se você se sentir melhor que eles, e se nunca lhe passa pela cabeça que, dadas as mesmas tentações, você faria até pior.

Eu, me sentir melhor que o meu bisavô bandeirantinho com esquistossomose? Não sou tão tolo assim.

Mas o que esse vídeo me fez pensar é em qual o valor de um historiador que odeia o que historia. Não é como um encanador que odeia pias? Você deixaria a sua pia ser consertada por um encanador que odeia pias?

Você leria uma enciclopédia de vinhos escrita por alguém que odeia vinho?

Você leria um estudo de mil páginas sobre a obra de Volpi escrito por alguém que não SU-POR-TA olhar para um quadro de Volpi? Um artigo de ataque, ok, pode ser engraçado. Mas um estudo?

Não que o historiador do país precise ser um patriota, mas ele não precisa pelo menos ter uma visão levemente, vagamente, equilibrada? Mostrar defeitos e virtudes, e coisa e tal?

Mas ainda mais que um problema de alguns historiadores, esse me parece o problema das esquerdas atuais. Eles dão a impressão de odiar o país. Parecem ter uma reação instintiva de nojo ao verde-amarelo, ao hino, ao passado etc. E quando adotam o verde-e-amarelo para “ressignificar” as cores, a falsidade do ato grita aos Céus.

Por que alguém que odeia um lugar se esforçaria muito para melhorá-lo? Eu odeio Osasco e não me daria ao esforço sequer de me abaixar pra pegar um potinho de iogurte da calçada pra deixar o lugar mais bonito.

Alguém que ama o seu jardim está constantemente rondando para tirar ervas daninhas, adubar, aparar aqui e acolá etc. Quem odeia o seu jardim vai concretar tudo ou deixar que tudo seque ou apodreça.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO