Caetano Veloso no Festival da Canção de 1968Caetano Veloso em 1968: os revoltados agora são outros - Foto: Divulgação

O coach da contracultura

Por ora favorito na campanha para prefeito de São Paulo, o candidato do PRTB é o novo político “contra isso tudo que está aí" 
30.08.24

Me dê um beijo meu amor

Eles estão nos esperando

Os automóveis ardem em chamas

Derrubar as prateleiras

As estátuas, as estantes

As vidraças, louças, livros, sim.

Caetano Veloso não gostava de É Proibido Proibir. A canção que toma como título e refrão um dos lemas dos protestos de maio de 1968 em Paris foi composta por sugestão de seu empresário, Guilherme Araújo. Caetano achava que o paradoxo da proibição à proibição era ingênuo, mas cedeu à insistência de Araújo. Também por sugestão do empresário, o cantor baiano apresentou a música desdenhada no Festival Internacional da Canção de 1968, promovido pela rede Globo. As roupas extravagantes, o americano careca que subia ao palco só para berrar, as guitarras elétricas dos Mutantes: a performance tropicalista que Caetano levou ao palco abespinhou a jovem esquerda nacionalista que formava boa parte do público. Caetano respondeu às vaias com uma diatribe que se tornou célebre – uma crítica ao mesmo tempo errática e certeira à “juventude que diz que quer tomar o poder”. 

É Proibido Proibir hoje só é lembrada porque ficou associada a esse discurso furibundo. Mas os seis versos que transcrevi acima – carregados de “imagens de sabor anarquista”, como diz o próprio Caetano em Verdade Tropical – condensam bem o espírito de uma época nostalgicamente cultuada como revolucionária – a década dos Beatles e dos Rolling Stones, da cultura hippie, da psicodelia, da liberação sexual, do LSD, dos protestos contra a Guerra do Vietnam. O ímpeto de derrubar estátuas e bibliotecas define bem o que então se chamava genericamente de “contracultura”.

Hoje, quando ouço essa passagem da canção, me vem à mente uma imagem incômoda: um sujeito de camiseta preta estampada com a imagem de Jair Bolsonaro derruba um relógio do século XVII no chão do Palácio do Planalto. 

Momento emblemático da orgia de vandalismo promovida pela Horda Canarinha em Brasília, a destruição do relógio Martinot foi um gesto contracultural. Perdido nos corredores do Planalto, o vândalo calhou de encontrar um relógio que precede a divisão do campo político entre  direita e esquerda – era obra do francês Balthazar Martinot (1636–1714), relojoeiro de Luís XIV. Mas o sujeito, ao que parece, vive em um presente eterno. Não sabia nem queria saber da origem do relógio. Velhas quinquilharias acumuladas no palácio do usurpador esquerdista tinham de vir abaixo! A ordem (ou desordem) era derrubar prateleiras, estátuas, livros, relógios – e o governo eleito.

O bolsonarismo é a contracultura de nosso tempo. O 8 de janeiro foi seu Woodstock. 

Tal como o trumpismo, sua matriz americana, o bolsonarismo veio se insurgir não só contra a esquerda, mas também contra uma direita que, na sua visão, combatia essa esquerda com punhos de renda. Toda a cultura política, pregavam seus adeptos, estava corrompida. Precisava ser reconfigurada aos moldes de uma imaginária era de bonança e progresso que o país teria vivido sob o coturno dos presidentes-generais. E essa restauração só seria possível com o capitão na presidência. 

Na gestão da pandemia, na proteção ao meio ambiente, na relação com os demais poderes, no prometido combate à corrupção e até nos ensaios golpistas, o governo Bolsonaro acumulou fracassos. Conquistou, no entanto, uma vitória na guerra cultural: roubou da esquerda o lugar de força política anti-establishment. Contencioso, barulhento e sempre instagramável em seus grandes eventos, o bolsonarismo foi uma força demolidora, que alcançou o paroxismo em seu último (por enquanto) e monumental malogro: a intentona tonta do 8 de janeiro. 

Os bolsonaristas levaram a contracultura ao pé da letra: foram inimigos declarados da arte. Aquela conversa de separar autor de obra não colou entre os estetas da nova direita: se o artista é de esquerda (e não há como negar que alguns dos melhores o são) sua arte é doutrinação esquerdista e portanto uma porcaria. Mais grave, uma porcaria financiada pela Lei Rouanet. Frente a esse filistinismo agressivo, a intelectualidade brasileira refugiou-se no beletrismo mais careta. O livro virou um objeto fetichista com o qual tentava-se exorcizar o demônio canarinho. Como um talismã, era carregado para a cabine de votação; como um feitiço, suas fotos eram compartilhadas nas redes sociais para trazer o presidente perdido de volta ao Planalto.

O jogo contracultural é arriscado: a qualquer momento, um aventureiro aparece na mesa com a promessa de quebrar a banca. Eis aí o incendiário Pablo Marçal ameaçando o domínio de Jair Bolsonaro e família nas redes sociais. Mais grave, ameaça se tornar prefeito da maior metrópole brasileira. Filiado a um tal de PRTB, sigla de que ninguém havia ouvido falar, condenado por participar de um esquema de fraude bancária, enrolado em associações com gente do PCC (esta, sim, uma sigla bem conhecida), ele dobrou a aposta na grosseria e na difamação dos adversários.

Incapaz de propostas minimamente estruturadas para a cidade (recomendo, a propósito, o artigo sobre o “ex-coach” que Raul Juste Lores, jornalista especializado em urbanismo, publicou no Uol), ele tem uma credencial para apresentar: é empresário – não entendi ainda de que ramo –, categoria que fascina o pobre-diabo bolsonarista (falei a respeito disso em uma coluna de março).

Parece que não é nada, e não é, não deveria ser nada. Mas seus adversários –  incluindo o atual prefeito, apoiado por Bolsonaro – talvez tenham dificuldade em desmontar Pablo Marçal. Como se derruba quem veio para derrubar tudo?

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Caetano ex doce bárbaro virou uma velha coroca ridícula, oportunista e maniqueista ... o tal Marçal foca no público que abomina o sistema pôdre imposto pela direita e esquerda que dividem uma nação ignorante e sem rumo.

  2. Ele é um populista como os presidentes LULA e Bolsonaro. O currículo de Lula beira o de Marçal. E, não sei muito sobre o Bozo, mas do que sei me basta para incluí-lo no mesmo saco. Cada um com suas particularidades, mas todos conseguem falar a linguagem do analfabeto funcional.

  3. O Marçal me lembra o Janones e cada um diz pertencer a um lado dessa rude polarização , pois afinal, todos se unem no populismo e na blindagem a corruptos

  4. Não concordo que o candidato Marçal não tenha propostas estruturadas para a cidade. Não realidade são propostas disruptivas e inovadoras e por isso mesmo incomodam grande parte da imprensa e do establishement. A proposta dele para educação é semelhante a cooperativa educacional implantada pela SaromCred na pequena cidade de São Roque de Minas. Sugiro só articulista visitar a cidade e conhecer esse projeto inovador e visionário.

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