Pablo Marçal em campanha

O código Marçal

O significado da candidatura do ex-coach para a política brasileira
30.08.24

De todas as bravatas de Pablo Marçal, candidato do PRTB à prefeitura de São Paulo, a mais inofensiva é a de que vai vencer a eleição no primeiro turno. Não há mal nenhum em dizer isso, mesmo que a previsão não tenha amparo nos números. As pesquisas apontam na mesma direção: o esquerdista Guilherme Boulos (Psol), o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o próprio Marçal embolados na dianteira. O levantamento mais recente, divulgado pela Quaest nesta quarta-feira, 28, mostrou o primeiro com 22% das intenções de voto e os outros dois com 19% cada um. Ainda há muita coisa para a acontecer. A propaganda eleitoral na televisão, por exemplo, começa nesta sexta, 30, e pode mexer nesse quadro. Mas Marçal não tem vantagem nesse caso, pelo contrário. Seu partido nanico não lhe trouxe tempo de exposição na TV, enquanto Nunes terá 6 minutos e 30 segundos e Boulos, 2 minutos e 22 segundos. Deve haver segundo turno e Marçal pode até não estar nele. Existe um feito, no entanto, do qual o “ex-coach” já pode se gabar, sem medo: ele trincou a hegemonia de Jair Bolsonaro na direita, atualizando com sucesso o código capaz de aglutinar um eleitorado que vivia disperso até poucos anos atrás.

Quais são os elementos do “código Marçal”?

ANTIPOLÍTICA – Às vésperas das eleições de 2018, Jair Bolsonaro se apresentava como um outsider do sistema político, embora não o fosse: contava sete mandatos de deputado federal pelo Rio de Janeiro, passando por oito partidos. Além disso, havia carreado seus três filhos para a mesma atividade.

Ao contrário de Bolsonaro, Marçal de fato está chegando agora à política. Filho de uma faxineira e de um funcionário público, trabalhou num call center, começou a enriquecer no mercado imobiliário e ganhou projeção vendendo cursos de motivação e empreendedorismo. Declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de 193,5 milhões de reais.

Ele tentou conquistar um cargo eletivo pela primeira vez em 2022 e mirou logo a presidência. A aventura foi interrompida porque a convenção de sua legenda na época, o Pros, foi considerada inválida pelo Tribunal Superior Eleitoral. Marçal  concorreu então à Câmara dos Deputados e obteve os votos necessários, mas sua posse, mais uma vez, foi barrada, devido a problemas de documentação.

A trajetória de self made man, a riqueza considerável e a lábia de coach, que promete ensinar cada paulistano a empreender e progredir na vida, em vez de depender do Estado, são o lado “positivo” de um Marçal que se diferencia dos “comunistas”, de forma específica, e dos políticos tradicionais, de maneira geral.

Mas ele também sabe beber da raiva e da frustração de muitos eleitores com um país em que as elites parecem trabalhar sempre em benefício próprio, ignorando as pessoas comuns. Para esses eleitores, não parece existir saída a não ser explodir tudo e começar do zero. Por isso, eles se mostram tolerantes com os erros – e até crimes – de quem se opõe ao “sistema”. Assim como as rachadinhas e a venda de joias do acervo presidencial são perdoados em Bolsonaro, muita gente parece disposta a ignorar o envolvimento de Marçal com uma quadrilha que aplicava golpes pela internet ou sua ligação com figuras próximas do PCC, como Leonardo Avalanche, presidente de seu partido.

Marçal tem dito que podem persegui-lo de todas as maneiras e até mesmo prendê-lo, mas que não vai desistir de ser um “servo do povo”.

O mais notável é que Marçal conseguiu mostrar o próprio Bolsonaro como alguém  acomodado ao stablishment, por ter fechado apoio, ainda que sem muito entusiasmo, a Ricardo Nunes. “Você vai se curvar para esses comunistas da prefeitura”, disse ele depois de uma motociata no dia 24, dirigindo-se ao ex-presidente. “Você já percebeu que eu vou ganhar essa eleição e vai ficar ruim para você se você não tomar uma atitude de homem.”

Como mostram inúmeros posts nas redes sociais, muitos admiradores do capitão criticaram sua aliança com Nunes e o que veem como submissão à lógica de Valdemar Costa Neto, chefão do partido de Bolsonaro, o PL. Mesmo sem abandoná-lo completamente, deixaram claro que não vão seguir a indicação de voto no atual prefeito. Escolherão Marçal.

LACRAÇÃO – Na campanha de 2022, Pablo Marçal gravou um vídeo amigável ao lado de Janones. Os dois falavam das virtudes de ser moderado e se vendiam como alternativas à polarização entre esquerda e direita (lembremos que Janones também quis disputar a presidência naquele ano, antes de se aproximar de Lula).

Nesta sua nova investida eleitoral, Marçal jogou para longe qualquer fantasia de moderação. Parece ter descoberto algo que a ciência política já comprovou: a “nasty politics”, que pode ser traduzida como “política da baixaria” ou “política da lacração”, é a melhor amiga dos outsiders. Não há caminho mais rápido para superar a desatenção e a indiferença dos eleitores do que falar e agir de modo agressivo, desprezando as regras da civilidade.

Jair Bolsonaro usou esse recurso à farta quando era candidato à presidência e ainda pouco conhecido nacionalmente. E continuou a usá-lo na presidência, mas agora com outra função – mostrar que continuava sendo o inimigo número um do sistema.

Marçal fez o mesmo ao desembarcar no primeiro debate transmitido pela televisão acusando dois de seus adversários de serem usuários de cocaína. Disse que tinha provas e que as mostraria no momento certo. Depois que o prefeito Ricardo Nunes fez um teste toxicológico para impedir que o boato se colasse a ele, Marçal passou a direcionar a insinuação a Guilherme Boulos, chamando-o de “aspirador de pó” e repetindo, em várias oportunidades, o gesto de alguém que cheira a droga. No debate seguinte, conseguiu tirar o psolista do prumo “exorcizando-o” com uma carteira de trabalho.

Mais uma vez, Marçal voltou seus disparos inclusive para a família Bolsonaro. Embora não tenha subido demais o tom com o próprio ex-presidente, chamou seu filho 02, Carlos, de “retardado”.

USO E ABUSO DAS REDES – Carlos Bolsonaro é tido como um dos artífices da vitória de seu pai em 2018, pela maneira como manejou uma rede de perfis e disparos nas redes sociais. Depois, com sua trupe já instalada no Planalto, teria comandado o gabinete do ódio, responsável por atacar adversários e demolir a reputação de qualquer bolsonarista que mostrasse sinais de insubmissão.

Marçal não se mostra muito impressionado com o currículo de Carlos. Disse que ele foi responsável pela derrota na campanha da reeleição, em 2022, tendo jogado no lixo oitocentos vídeos gravados por Bolsonaro sob sua orientação.

Suas críticas soam críveis porque o próprio Marçal teve sucesso extraordinário nas redes sociais, adotando em tempos recentes, segundo suas próprias declarações, as táticas do influenciador anglo-americano Andrew Tate.

Tate é uma figura execrável, que sempre veiculou discursos de ódio às mulheres e atualmente cumpre prisão domiciliar na Romênia, acusado de integrar uma rede de exploração sexual de garotas. Não foi isso que Marçal copiou dele, por óbvio, mas a prática de arregimentar pessoas para cortar e divulgar seus vídeos, remunerando aqueles que obtinham os melhores resultados. Isso multiplicou  exponencialmente o alcance de seus conteúdos. O candidato disse em uma entrevista que chegou a reunir 4 mil pessoas em seus “campeonatos de corte”, que podiam gerar “uma remuneração relevante”.

Embora engenhosa, a prática parece se chocar com a legislação eleitoral. Poderia configurar abuso de poder econômico. Marçal jura que abandonou os campeonatos antes da pré-campanha, mas seus adversários alegam o contrário. Identificaram um verdadeiro exército de influenciadores digitais que  se aproveitavam dos cortes para aumentar seus respectivos engajamentos nas redes sociais. O conteúdo era padronizado, como se viesse de uma mesma fonte. Qual?

Segundo o comitê do PSB, da candidata Tabata Amaral, tudo partia do QG de Pablo Marçal. E haveria indícios, sim, de pagamento aos influenciadores digitais Com base em uma ação de Tabata, o juiz Antonio Maria Patiño Zorz, da 1ª Zona Eleitoral, concedeu no último fim de semana uma liminar e tirou do ar as principais redes de Marçal, permitindo, no entanto, que ele abrisse novos perfis.

A decisão foi considerada excessiva e desproporcional por muitos juristas. “A liberdade deve ser o lema”, disse nesta semana a O Antagonista o ex-ministro Marco Aurélio Mello, que foi presidente do TSE em três oportunidades. “Não pode haver providências extravagantes, como a retirada de uma certa pessoa da própria internet e da utilização de uma plataforma qualquer.” Segundo Mello, se for constatado um abuso as consequências devem vir posteriormente, no registro da candidatura.

De qualquer forma, Marçal foi rápido e aproveitou a decisão para reforçar a sua narrativa antissistema. Funcionou. Os perfis reserva cresceram rapidamente e suas postagens conseguiram mais engajamento que as anteriores.

DEUS – Bolsonaro é católico, mas forjou uma fortíssima aliança com os evangélicos. Nisso, foi ajudado por sua mulher, Michelle, que pertence à Igreja Batista Atitude, e por pastores como Silas Malafaia, da gigantesca Assembleia de Deus.

Marçal também não se diz evangélico, mas, simplesmente, cristão. Isso significa que não está vinculado a nenhuma igreja ou liderança específica e que busca uma ligação direta com Deus – uma ideia central do protestantismo. “Cristianismo não é religião, mas lifestyle, ele costuma dizer.

Quando uma pesquisa Datafolha foi divulgada no dia 22, mostrando Marçal pela primeira vez em empate técnico com Boulos e Nunes, sua equipe soltou um post que dizia “Somos só nós (o povo e Deus) contra tudo”. Uma combinação habilidosa dos discursos cristão e antissistema.

Marçal é ainda fluente no discurso da teologia da prosperidade, segundo a qual a riqueza é o desejo de Deus para seus fiéis.

*****

Há muitos percalços no caminho de Marçal, que podem impedi-lo de vencer as eleições em São Paulo ou até mesmo abortar sua carreira na política.

Uma reportagem na Folha de S. Paulo, por exemplo, mostrou nesta quinta-feira, 29, que as acusações sobre consumo de drogas que ele dirigiu a Boulos podem ser fruto de um erro crasso ou até mesmo de má-fé: o personagem em questão seria, na verdade, um homônimo do candidato do Psol. Mesmo que não afaste eleitores da direita radical, para os quais vale tudo no combate aos esquerdistas, isso pode impedir que Marçal conquiste votos mais ao centro, indispensáveis para uma vitória.

A presença de personagens ligados ao PCC no seu entorno, que vem sendo explorada com habilidade por Tabata Amaral em uma série de vídeos, pode acabar ferindo a candidatura de Marçal.

E ninguém sabe o que pode resultar de um inquérito da Polícia Federal que tramita em sigilo. Investiga-se a possibilidade de que Marçal e seu sócio Marcos Oliveira tenham feito doações de 1,7 milhão de reais à campanha presidencial do ex-coach, em 2022, gastado o dinheiro com serviços de suas próprias empresas. Isso poderia configurar os crimes de falsidade ideológica eleitoral, apropriação indébita eleitoral e lavagem de dinheiro.

Neste momento, contudo, o ex-coach demonstra força.

Ele conseguiu fazer com que até mesmo Bolsonaro pareça acomodado ao stablishment, por ter fechado apoio, ainda que sem entusiasmo, a Ricardo Nunes. “Você vai se curvar para esses comunistas da prefeitura”, disse ele depois de uma motociata no dia 24, dirigindo-se ao ex-presidente. “Você já percebeu que eu vou ganhar essa eleição e vai ficar ruim para você se você não tomar uma atitude de homem.”

Como mostram inúmeros posts nas redes sociais, muitos admiradores de Bolsonaro não engolem sua aliança com Nunes e aquilo que veem como submissão à lógica de Valdemar Costa Neto, chefão do PL. Mesmo sem abandonar o capitão, deixaram claro que não vão seguir a indicação de voto no atual prefeito. Pretendem escolher Marçal.

Quando tudo parecia caminhar para um rompimento definitivo, Marçal e os Bolsonaro negociaram uma trégua. Depois de um papo “bacana”, Carlos e o candidato deixaram de lado as agressões.

O ex-presidente gravou um vídeo indicando que Marçal deve estar presente, mesmo sem fazer discurso, no palanque da grande manifestação contra Alexandre de Moraes, e pró-anistia para os envolvidos na tentativa de golpe de 2023, que o bolsonarismo está organizando para o 7 de Setembro.

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  1. Ao eleitor é dada a m3rda que ele pede. PS: como pode ter ainda "cristão" que cai nessa palhaçada de teologia da prosperidade? "E digo ainda: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus".

  2. Só falar umas obviedades nos debates que já ganha a confiança dos eleitores. Fez o papel que candidatos de direita deveriam fazer, só poderia ter menos ofensa e trazer mais conteúdo e fatos em seus "ataques" a seus oponentes.

  3. Mais um populista sem plano de governo. Alguma diferença dos nossos presidentes? Pois é assim que o povo vota, povo marcado , povo feliz!

  4. Cada vez mais a política está se distanciando dos seus fins nobres e se tornando mero palanque para oportunistas de todos os naipes.

    1. Ele espelha a maior parte do povo brasileiro que se sente super representado por ele. "Calma, Pedro, espera só pra ver o povinho que vou botar lá". E botou mesmo.

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