Arquivo NacionalCésar Guerra-Peixe: ele compôs com Clovis Pereira uma música tocada por orquestras do mundo inteiro

Mentiram para você sobre a cultura brasileira

O entendimento sobre cultura brasileira foi moldado pelo sucesso internacional de alguns movimentos específicos. Eu prefiro mil vezes uma boa pornochanchada que um filme do Cinema Novo
07.06.24

De certa forma, o entendimento sobre a cultura brasileira foi moldado pelo sucesso internacional de alguns movimentos específicos: a arquitetura moderna brasileira é uma referência em qualquer livro de história da arquitetura; a música popular é conhecida e reverenciada internacionalmente; o Cinema Novo é bastante respeitado pela crítica especializada fora do país, especialmente na Europa.

Só que isso tudo, apesar de ser relevante, não resume a cultura brasileira. Nem é o melhor que produzimos. Eu prefiro mil vezes uma boa pornochanchada que um filme do Cinema Novo. Observe que o termo pornochanchada é depreciativo, não é filme pornô, se bem que ali na Boca do Lixo (outro termo depreciativo) chegaram a ser feitos filmes pornôs já na fase final. Nenhum filme do Cinema Novo chegou à altura de um filme de Walter Hugo Khouri, infelizmente não se fala tanto dele pois ele não dispõe do lobby da esquerda.

O mesmo em se tratando da arquitetura: sim, a arquitetura moderna brasileira tem sua relevância, mas no contexto geral tem menos importância artística do que o barroco de Aleijadinho. E já no século 20, outras correntes têm bastante mérito, como o ecletismo, com obras como o Palácio Monroe, que ganhou um prêmio mundial de arquitetura na Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, e a Estação Sorocabana, onde hoje fica uma das melhores salas de concerto do mundo, a Sala São Paulo – só para dar dois exemplos. O projeto da Estação Sorocabana foi premiado na Argentina.

Outra coisa totalmente artificial é a ideia de que o samba é o representante central da música popular brasileira. Isso foi uma invenção de Getúlio Vargas, que resgatou a música antes desprezada usou-a como símbolo agregador. O escritor Olavo de Carvalho escreveu que a ideia de que o futebol, o Carnaval e o samba são tipicamente brasileiras não veio do povo brasileiro, mas do Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura Vargas. Para ele, a música nordestina representa muito mais a música brasileira.

Com efeito, ali surgiu o Movimento Armorial, que incorpora o legado do Congresso Regionalista de 1926, e a Orquestra Armorial, regida por Cussy de Almeida (violinista que havia sido recomendado por Villa-Lobos para estudar no Conservatório de Paris). Trata-se de uma orquestra de câmara que tocava o repertório clássico tradicional, mas também e principalmente obras de compositores nordestinos, como Clovis Pereira.

Clovis, nascido em Caruaru, estudou com Guerra-Peixe, que largou o dodecafonismo para estudar a música popular pernambucana e compôs música clássica a partir disso, inclusive sua Sinfonia N 2, a Pernambucana. Clovis Pereira (falecido na última terça-feira, aos 92 anos) compôs junto com Guerra-Peixe o Mourão, hoje tocada por orquestras do mundo inteiro. O escritor José Roberto Walker me contou que Mourão se tornou uma espécie de bis oficial da Osesp na suas turnês pelo exterior, e em Colônia viu parte do público, que já se dirigia para a saída depois do terceiro bis, voltar para a ouvir a peça, que foi ovacionada.

A Revista O Cruzeiro de 21 de janeiro de 1956 publicou uma seção chamada Arquivos Implacáveis, com Nelson Rodrigues. O dramaturgo respondeu dez itens do que gosta e do que detesta. Entre os que detesta está lá: samba. Nelson Rodrigues, cuja obra sintetizou a brasilidade como ninguém, desprezou esse elemento da brasilidade – que na verdade não é essencial.

Bruno Tolentino, na famosa entrevista a Veja, com o título “Quero meu país de volta”, expressou como poucos a indignação por essa imagem criada sobre a cultura brasileira. Ele diz que ao chegar ao Brasil com esposa e filho depois de quase trinta anos morando no exterior, já estava conformado com sequestros e balas perdidas, mas ficou indignado com o que se ensinava ao filho na escola. “Se fosse estudar no Liceu Condorcert, em Paris, jamais seria confundido sobre os valores do poeta Paul Valéry e do roqueiro Johnny Hallyday, por exemplo”, disse ele.

Isso se reflete no cinema: vi certa vez uma lista de documentários musicais brasileiros. Tinha uns 40 filmes, todos sobre música popular, menos um: Nelson Freire, de João Moreira Salles. A música popular foi tão hipervalorizada no Brasil que praticamente se apagou a música clássica – até Villa-Lobos é sempre retratado no Brasil focado na sua relação com a música popular – sendo que é exatamente ali que está a principal contribuição brasileira, com nomes que nem mesmo se ouve falar hoje em dia, como Henrique Oswald (grande compositor da época de Ravel e Debussy).

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. A música tradicional nordestina para mim é muito mais encantadora e cativante do que qualquer samba que apareça na minha frente. E Villa-Lobos sequer é discutido nas escolas.

  2. Esse nivelamento por baixo da cultura, o desaparecimento da alta cultura, substituida pela cultura popular nao é exclusivo do Brasil. Varios escritores falaram disso: para começar T.S. Eliot (Notas para uma definição de cultura), Gerge Steiner, (Barba Azul), Huizinga (Nas sombras do amanhã) e mais recentemente Vargas Llosa ( A civilização do espetáculo). Até o marxista Guy Debird escreveu a "A sociedade do espetáculo " na década de 1960.

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