A história da fake news contra a Transparência Internacional
Como a narrativa foi plantada, vazada, refutada e requentada, na PGR e no STF, para retaliar a ONG anticorrupção
O método de Dias Toffoli, indicado por Lula ao Supremo Tribunal Federal, consiste em levantar “dúvidas” para, de um lado, anular provas e multas contra empresários que confessaram a prática de suborno e, de outro, para investigar quem – como a ONG Transparência Internacional, TI – aponta a corrupção e a impunidade garantida pelo ministro e por vários de seus colegas de STF, como Gilmar Mendes.
A entrevista de Crusoé com o diretor-executivo da TI, Bruno Brandão, publicada a seguir, precisa ser entendida nesse contexto, aqui detalhado com base nos fatos.
Para paralisar pagamentos bilionários da Odebrecht, por exemplo, Toffoli, citado por Marcelo Odebrecht em colaboração premiada, somou duas hipóteses jamais confirmadas pelo devido processo legal e sem conexão direta entre si: a do “conluio” que “teria havido” entre o então juiz da Lava Jato em Curitiba, Sergio Moro, e o então coordenador da força-tarefa anticorrupção, Deltan Dallagnol; e a da falta do “requisito da voluntariedade” dos executivos da empreiteira para confessar seus crimes, sobre o qual “há, no mínimo, dúvida razoável”.
Eis o trecho ilustrativo:
"Ora, diante das informações obtidas até o momento no âmbito da Operação Spoofing, no sentido de que teria havido conluio entre o juízo processante e o órgão de acusação para elaboração de cenário jurídico-processual-investigativo que conduzisse os investigados à adoção de medidas que melhor conviesse a tais órgãos, e não à defesa em si, tenho que, a princípio, há, no mínimo, dúvida razoável sobre o requisito da voluntariedade da requerente ao firmar o acordo de leniência com o Ministério Público Federal que lhe impôs obrigações patrimoniais, o que justifica, por ora, a paralisação dos pagamentos, tal como requerido pela autora”, escreveu Toffoli.
A primeira hipótese parte da interpretação informal, feita por detratores da Lava Jato, do conteúdo não autenticado de mensagens roubadas por hackers em violação criminosa de aplicativo de celulares. Como o único inquérito formal sobre o teor das mensagens, aberto a partir de ilações da mídia chapa-branca, resultou em arquivamento por falta de provas, a tática adotada para aliviar a barra dos alvos da força-tarefa é a da exploração imediata da hipótese eterna.
(Sobre o tema, ver meu artigo “Lava Jato x Vaza Jato”, de 17/02/2022, considerando também que a autora da matéria de 2021 – usada por Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, para justificar a abertura do referido inquérito – virou, em 2024, assessora de comunicação do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Lula, agora comandado por sua antiga fonte, o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski.)
Já a “dúvida” sobre a voluntariedade dos delatores parte da narrativa de “tortura psicológica”, usada para acobertar o fato de que criminosos em geral não querem confessar seus crimes e somente recorrem aos acordos previstos em lei quando sentem que o volume de provas coletadas contra eles já é comprometedor o bastante do ponto de vista penal, de modo que obter a redução das prováveis penas por meio de confissão e entrega de cúmplices torna-se mais interessante que cumpri-las integralmente.
O desconforto dos alvos da Lava Jato diante da descoberta de seus atos ilícitos não é fruto de violência contra eles, mas do mérito dos investigadores da Polícia Federal e do Ministério Público Federal na proteção da sociedade contra esquemas criminosos que desviam dinheiro dos brasileiros e pervertem a democracia, gerando concorrência desleal e monopólio de mercado. Ainda assim, basta assistir ao trecho do depoimento em que Emílio Odebrecht dá gargalhadas, ao relatar como os petistas passaram de jacarés a crocodilos em exigência de propinas, para atestar o ridículo da hipótese de tortura.
Toffoli já havia suspendido a multa de 10,3 bilhões de reais da J&F – onde atua a própria esposa do ministro, Roberta Rangel –, alegando que “há, no mínimo, dúvida razoável sobre a voluntariedade dos irmãos” Joesley e Wesley Batista ao firmar a leniência, quando, na verdade, Joesley, a fim de lavar sua imagem e evitar maiores prejuízos derivados do envolvimento em suborno, antecipou-se em 2017, decidiu virar colaborador sem estar preso, gravou conversa com o então presidente Michel Temer e assinou delação junto com Wesley.
Curiosamente, enquanto umas “dúvidas” aliviam o empresariado amigo, outras são aventadas para constranger vozes independentes. Ao determinar a expedição de documentos para investigar a unidade brasileira da Transparência Internacional, com base em pedido feito pelo deputado federal petista Rui Falcão, Toffoli usou uma “dúvida” de segunda mão, emprestada do colega Alexandre de Moraes, que “registrou ser ‘duvidosa a legalidade de previsão da criação e constituição de fundação privada para gerir recursos derivados de pagamento de multa às autoridades brasileiras’”.
Mas quem alegou que a TI estaria possivelmente envolvida na gestão de recursos pagos pela J&F? Tal premissa foi plantada pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, em ofício de 4 de dezembro de 2020, dirigido à coordenadora da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Maria Iraneide Olinda Santoro Facchini: “Evidente que uma organização privada irá administrar a aplicação dos recursos de R$ 2,3 bilhões” da empresa dos irmãos Batista, concluiu Aras, referindo-se não exatamente à Transparência Internacional, mas à hipótese de criação de uma entidade cuja equipe poderia ser treinada com conteúdos produzidos pela TI.
O então PGR afirmou, sem maiores detalhes, que “ontem, 3/12/2020, foi depositada a vultuosa quantia de 270 milhões” e pediu “adoção das providências cabíveis” em razão “da possibilidade de repasse de recursos expressivos oriundos do Acordo de Leniência à mencionada ONG a ser criada”. Foi nesse momento que a narrativa conveniente vazou aos blogueiros amigos, gerando ainda mais distorções e teorias conspiratórias sobre o papel da TI, como veremos em detalhes na entrevista com Brandão.
Toffoli, no entanto, simplesmente desprezou a refutação de 13 páginas, feita pela subprocuradora Samantha Chantal Dobrowolski, da narrativa sobre o envolvimento da TI em qualquer gestão ou recebimento de valores da J&F.
Como atestou ela na ocasião, ao ser questionada pela coordenadora Maria Iraneide, “a Transparência Internacional não recebeu e tampouco receberá qualquer tipo de remuneração pela assistência prestada”. O acordo entre J&F e MPF previa que, além de 8 bilhões de reais pagos diretamente às entidades lesadas (União, BNDES, Funcef, Petros, CEF e FGTS), 2,3 bilhões fossem gastos em projetos sociais, tendo a TI participado exclusivamente na orientação técnica de boas práticas. “Assim, qualquer informação que trate de supostos pagamentos à TI nesse contexto é inverídica (seja no que toca ao valor de R$ 270 milhões, desconhecido dos colegas então oficiais da força tarefa de Greenfield), ou a qualquer outro valor”, reiterou Dobrowolski.
Segundo ela, “buscou-se estudar fórmulas que ensejassem ampla participação social, com controle público das providências necessárias ao cumprimento” da cláusula que previa a aplicação dos recursos nas “áreas da educação; da saúde; do meio ambiente; do fomento à pesquisa; da cultura; todas categorias de direitos humanos”, mas “jamais caberia papel de gestor, tampouco havia nem haveria poder decisório para a TI, como tampouco para o MPF, o qual, frise-se”, “manteria apenas sua função de fiscal da lei”.
Segundo Dobrowolski, a “vigência de ambos os Memorandos já está esgotada” e “não há que se dizer, portanto, que o depósito” aludido por Aras “seria referente a qualquer previsão contida” neles, “menos ainda que seria destinado à TI, a qual, repita-se, não foi beneficiária de quaisquer recursos na hipótese”.
“Também é preciso ressaltar, outra vez, que é desconhecido qualquer depósito de R$ 270.000.000,00 (duzentos e setenta milhões de reais) a título de repasse à TI ou a qualquer outra entidade criada ou que venha a ser criada para fins de aplicação de recursos da J&F em projetos sociais”, afirmou a subprocuradora.
Como mostramos no Papo Antagonista de terça-feira, 6 de fevereiro, o guia da Transparência Internacional materializou-se em um relatório final de 119 páginas, com capa colorida, índice temático e capítulos organizados, incluindo “propostas de desenho geral e recomendações de governança para as ações de reparação social da J&F”. Na introdução, lê-se, por exemplo:
“Poucos meses após esse acordo, em dezembro de 2017, MPF, J&F e TI firmaram um Memorando de Entendimento, pelo qual a TI se compromete a recomendar um sistema de governança com os melhores padrões de transparência e salvaguardas anticorrupção para os recursos destinados ao financiamento de organizações da sociedade civil.
A TI ofereceu sua contribuição pro bono, sem cobrança de honorários ou taxas de qualquer natureza. Além disso, para sanar quaisquer conflitos de interesses, a TI propôs e acordou-se que a organização estaria vedada a pleitear recursos do investimento social provenientes do Acordo de Leniência durante todo o período em que estiver apoiando a iniciativa das partes que o celebraram.
(...) O objetivo deste relatório é, portanto, apresentar um guia de boas práticas de governança de recursos compensatórios resultantes da punição em casos de corrupção, como meio de reparação de danos à sociedade e promoção de seu engajamento na luta contra esse tipo de crime.”
De fato, consta na página 9 do citado Memorando, também exibido no Papo, a seguinte “Cláusula 3ª: “O presente Memorando não prevê nenhum tipo de remuneração, sendo vedada a transferência de recursos para que a TI realize as atividades nele previstas.”
Logo em seguida, ainda no Memorando, o inciso 1º deixa claro que “as atividades constantes no Plano de Trabalho, correspondentes ao apoio oferecido pela TI derivado do presente acordo, deverão ser custeadas com recursos próprios da organização já previstos a suas atividades naturais e regulares e que se relacionem estritamente com os objetos e propósitos deste acordo, sem qualquer cobrança de honorários ou taxas administrativas”.
O Memorando traz a assinatura de todas as partes — MPF, J&F e TI — em cada uma de suas páginas. Em mais um episódio característico do bolsolulismo, no entanto, Rui Falcão, ex-presidente do PT, preferiu turbinar a narrativa de Augusto Aras, indicado por Jair Bolsonaro à PGR, em seu pedido de investigação feito originalmente ao Superior Tribunal de Justiça, mas encaminhado pela própria equipe de Aras a Toffoli, a despeito do posicionamento contrário da procuradora-geral interina Elizeta Ramos.
“Essa organização engendrada para administrar os recursos em clara afronta à Constituição Federal e à própria soberania nacional perdurou até ser questionada pelo I. [Ilustríssimo] Procurador-Geral da República AUGUSTO ARAS, em Memorando datado de 04 de dezembro de 2020”, escreveu Rui Falcão no item 25 do documento original, que consta em sua página 9. “A intervenção” de Aras “trouxe luz ao fato”, afirmou também o petista, no item 26, usando a alegação do PGR de Bolsonaro como base factual.
Toffoli aderiu, claro. Quanto mais dúvidas, melhor – mesmo que já dirimidas.
Leia a seguir a entrevista com Bruno Brandão na íntegra.
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Após ter anulado provas e suspendido multas dos acordos de leniência de empresas que confessaram suborno, como J&F e Odebrecht, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, deu início em 5 de fevereiro a um processo para investigar a unidade brasileira da Transparência Internacional. Essa série de decisões de Toffoli – conhecido na Odebrecht como “amigo do amigo do meu pai”, ou seja: amigo de Lula, que é amigo de Emílio, pai de Marcelo – deixou o ministro no foco do debate público; mas três dias depois, em 8 de fevereiro, uma operação policial contra Jair Bolsonaro e seus aliados desviou a atenção da imprensa. Qual foi o efeito desse desvio para a TI? Algo mudou, na prática?
O Carnaval e a operação contra os conspiradores do governo Bolsonaro podem ter mudado o foco da imprensa e a atenção de muita gente, mas tenho certeza de que as vítimas diretas da corrupção da J&F (dona da JBS) e da Odebrecht, agora Novonor, ainda estão muito atentas ao assunto. Entre essas vítimas diretas estão os aposentados da Caixa e da Petrobras que têm seus contracheques descontados em até 25%, todos os meses, para cobrir o rombo deixado pela corrupção da J&F nos fundos de pensão Funcef e Petros. São milhares de trabalhadores aposentados, literalmente, pagando a conta da corrupção. Uma conta que evidentemente não é deles e, pior, ainda têm que ouvir gente falando que essa corrupção nunca existiu, que os empresários confessaram sob tortura. Além dessas vítimas diretas há milhões de outras vítimas da corrupção dessas empresas, em mais de uma dezena de países. Se o mundo se chocou com a exportação de corrupção brasileira, agora se choca com a exportação de impunidade.
Toffoli requentou a narrativa criada pelo então procurador-geral da República indicado por Jair Bolsonaro, Augusto Aras – depois citado pelo petista Rui Falcão em notícia-crime –, de que a Transparência Internacional teria gerido ou recebido recursos do acordo de leniência da J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Como detalhamos no portal O Antagonista e no programa Papo Antagonista, a subprocuradora Samantha Dobrowolski refutou em 2020 a narrativa, isentando a TI, e o Memorando de Entendimento firmado em dezembro de 2017 pelas três partes do acordo – Ministério Público Federal, J&F e TI – veda expressamente essas hipóteses, também descartadas por escrito no relatório de 119 páginas da ONG. Mas qual é, afinal, a história do citado depósito de 270 milhões de reais da J&F? Ele foi pago? Para quem? Onde? Alguma eventual lacuna deixada pelo MPF prejudica a TI?
Em primeiro lugar, nunca é demais repetir que a Transparência Internacional jamais recebeu e jamais receberia um centavo desse depósito. Isso está explícito no Memorando de Entendimento assinado em 2017, que previa o apoio da TI para garantir melhores práticas de governança e transparência na destinação desses recursos e vedava qualquer repasse financeiro ou controle da TI sobre esse dinheiro. Mas há uma história nebulosa por trás desse depósito que precisa ser explicada pelas autoridades, porque foi daí que surgiu essa fake news que, há quase cinco anos, é repetida por quem quer atacar e silenciar a TI. Segundo o que consta de documentos do MPF, esse depósito de 270 milhões de reais foi feito, pela J&F, em 3 de dezembro de 2020, uma quinta-feira, como parte do pagamento da multa total de 10,3 bilhões de reais. Supostamente, o depósito foi feito em uma conta judicial vinculada ao acordo de leniência da empresa. Muito estranhamente, o procurador titular do acordo, Anselmo Lopes, da Operação Greenfield, não tinha qualquer informação de que um depósito seria feito nesse valor e nessa data. Apesar de o procurador titular do acordo, que era a pessoa que deveria ter sido avisada desse depósito, não ter sido comunicado a seu respeito, o depósito "surpresa” aparentemente era de conhecimento do ex-PGR Augusto Aras – ou ele tomou conhecimento antes de todo mundo –, já que, no dia seguinte, sexta-feira, 4 de dezembro, ele já tinha um ofício pronto sobre esse depósito, sendo encaminhado à 5ª Câmara de Coordenação e Revisão na PGR, que supervisiona os acordos de colaboração em casos de corrupção, citando a TI e pedindo providências. Apesar de fazer o curtíssimo trajeto de uma sala a outra dentro da PGR, esse ofício, contendo informações inverídicas e ilações sobre a participação da TI, foi vazado no mesmo dia ou no dia seguinte, pois, em menos de 48 horas, no domingo, virou manchete de blogs e colunistas alinhados à PGR. A partir disso, disseminou-se a fake news de que a TI havia recebido ou receberia esses recursos (depois, quando viram que não recebemos nem receberíamos nada, as fake news foram mudando de forma; agora distorcem a verdade para dizer que seríamos gestores desse recurso). Essas fake news não apenas causaram enorme dano à imagem da TI no Brasil, como vêm sendo utilizadas como munição para assédio judicial, em diversas instâncias. Em todas elas, o ofício da subprocuradora-geral Samantha Dobrowolski, respondendo e corrigindo detalhadamente o ofício vazado do ex-PGR Aras, é ignorado.
A notícia-crime apresentada pelo petista Rui Falcão contra a Transparência Internacional tramitou no Superior Tribunal de Justiça, até o time de Augusto Aras, em fim de mandato, requerer o seu encaminhamento a Toffoli, por suposta conexão com outros casos que estão na alçada do ministro. Quando Aras e sua aliada Lindôra Araújo deixaram a PGR, a procuradora-geral interina Elizeta Ramos pediu vista do processo, porque estranhou a manobra que levou o caso para a mesa do ministro do STF. Como o senhor avalia a indiferença de Toffoli aos posicionamentos de duas mulheres: Samantha Dobrowolski e Elizeta Ramos?
É estarrecedor que um procedimento que visa esclarecer fatos inclua o ofício de Aras levantando questionamentos e informações incorretas e omita o ofício de Dobrowolski, despachado apenas cinco dias depois, com todas as respostas detalhadas e correções. Ou seja, inclui-se a pergunta e exclui-se a resposta. É muito preocupante e difícil compreender a ausência desse documento fundamental. Mesmo que se argumente que ele não tenha sido encontrado – o que já seria algo grave, já que ele deveria estar anexado ao mesmo procedimento do ofício original de Aras –, o documento já era público e havia sido noticiado pela imprensa. Foi O Antagonista o primeiro a noticiar na matéria “Subprocuradora expõe mentiras de Augusto Aras”, em 10 de dezembro de 2020. Soma-se a tudo isso o fato da manifestação da PGR em ofício, Elizeta Ramos, ter sido desautorizado e preterido em favor da manifestação anterior do PGR Augusto Aras, que já havia deixado o cargo.
O fundador do grupo Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, aliado de Lula, também assinou a notícia-crime apresentada pelo petista Rui Falcão e deu entrevistas em emissoras de TV em defesa da decisão de Toffoli contra a TI. Como o senhor avalia o papel dele e do Prerrogativas neste caso e nos temas relacionados à pauta da corrupção em geral?
Não quero personalizar a discussão porque me importam – e me preocupam – muito mais os graves problemas institucionais e sistêmicos presentes nessa situação toda. Em primeiro lugar, o fenômeno do assédio judicial, que vem se tornando uma prática cada vez mais comum para silenciar quem denuncia corrupção. Ao ponto de estar em discussão avançada, no Parlamento Europeu, uma diretiva para proteger ativistas contra denúncias sem fundamento ou processos judiciais abusivos. Nesse contexto, vale refletir sobre o conteúdo da notícia-crime do deputado Falcão do PT, assinada pelo advogado Carvalho, contra a TI. A peça traz como fundamento principal o ofício do ex-PGR Augusto Aras com informações inverídicas e ilações sobre destinação de um misterioso depósito de 270 milhões de reais. Mas omite completamente o ofício da subprocuradora-geral Samantha Dobrowolski, que responde e corrige detalhadamente as informações do ofício original de Aras. Se o intuito é esclarecer os fatos, por que incluir a pergunta e omitir a resposta, que era pública? Outro problema grave no contexto atual brasileiro – mas também discutido internacionalmente – é o lobby da advocacia. É cada vez mais comum, no Brasil, advogados, muitas vezes advogados professores, manifestarem-se na imprensa e nas redes sociais sobre temas diversos do debate público. Isto é saudável, desde que sejam adotadas práticas de transparência e prevenção de conflito de interesses. O problema ocorre quando advogados se manifestam publicamente como se fossem vozes técnicas isentas, quando na verdade estão opinando sobre causas nas quais estão envolvidos e têm grandes interesses comerciais. Nos principais jornais do mundo, há vedações a que advogados ou outros profissionais usem espaços de opinião para se manifestarem sobre assunto no qual têm interesses comerciais, a não ser que sejam ouvidos explícita e especificamente como representantes dessas causas e interesses, com total transparência e dever de disclosure. No Brasil, infelizmente, pouquíssimos veículos têm esse cuidado. Vimos isso acontecer ao extremo na Lava Jato, em que exércitos de advogados envolvidos nas causas eram ouvidos diariamente sem qualquer transparência sobre seus vínculos com as causas e interesses comerciais. Não que a advocacia não possa se manifestar e que a Lava Jato não pudesse ser debatida. O debate é fundamental, mas com transparência, principalmente quando advogados se institucionalizam em grupos de interesses.
Na semana anterior à decisão de Toffoli contra a unidade brasileira da Transparência Internacional, a ONG havia divulgado um ranking mundial, o Índice de Percepção da Corrupção, IPC, em que o Brasil piorou dez posições em matéria de corrupção, incluindo críticas ao próprio Toffoli. A sede da TI em Berlim então divulgou uma nota, com declarações do presidente francês da ONG, François Valérian, dizendo que vocês não serão intimidados com retaliações injustas. Em que medida os episódios posteriores à divulgação do ranking confirmaram os argumentos da TI para a queda do país? O senhor já os esperava, ou foi surpreendido?
Não é exatamente coincidência que o tema do lançamento global do IPC neste ano foi a captura da Justiça para blindar corruptos e perseguir quem luta contra a corrupção. Esse é um fenômeno gravíssimo ocorrendo em diversas partes do mundo. Em nossa região, a Guatemala teve a PGR completamente capturada pelo chamado “pacto de corruptos”, perseguindo procuradores e jornalistas investigativos e sendo instrumento central para impedir a posse do presidente eleito Bernardo Arévalo. Em nosso caso específico no Brasil, não posso fazer afirmações sobre as intenções das autoridades. Mas é evidente o processo de desinstitucionalização da Justiça que ocorreu a partir da nomeação de Aras na PGR e de outros tantos magistrados durante o governo Bolsonaro. A consequência não é só o desmonte da luta contra a corrupção, mas da Justiça como um todo, normalizando abusos, privilégios e impunidade. Talvez não haja risco maior hoje à democracia brasileira que o domínio crescente do Centrão do Judiciário. Não há surpresa, não há coincidência, há um processo de desinstitucionalização a olhos vistos.
Do ministro indicado por Lula para a Controladoria-Geral da União, Vinícius de Carvalho, ao ministro Gilmar Mendes, do STF, passando pelos porta-vozes do governo do PT e do Supremo no mercado da comunicação, nas redes sociais e no meio jurídico, houve uma ampla tentativa de desqualificar o IPC de 2023, divulgado pela TI. Alguns chegaram até a divulgar um ranking paralelo, no qual o Brasil estaria em posição melhor no tema. O senhor tem tentado rebater tecnicamente as alegações, ponto a ponto, mas não é evidente que toda essa gente precisa dar ares de legitimidade à impunidade que promoveu, para que ela não seja percebida por ninguém?
Há diferenças grandes nas reações. Uma coisa é uma resposta crítica, mas com argumentos e não ataques, como foi, por exemplo, a resposta do ministro Vinícius de Carvalho e da CGU. Isso é legítimo e até bem-vindo. O IPC é debatido no mundo há 25 anos e há toneladas de estudos acadêmicos sobre ele. É óbvio que ele tem limitações, afinal ele busca medir, anualmente e em 180 países, um fenômeno invisível. Mas ele traz atenção para o problema e provoca debates sobre ações concretas. Infelizmente, haverá sempre quem prefira atacar o IPC e a TI a atacar a corrupção.
Os representantes da Transparência Internacional apontam corretamente o desmonte do combate à corrupção no governo de Jair Bolsonaro, mas, em relação ao governo Lula, utilizam palavras como “erros”, “abandono” e, quando muito, “retrocessos”. Considerando o histórico petista de mensalão, petrolão e outros escândalos, o senhor realmente acredita que esses “retrocessos” são apenas “erros” e “abandono”? O senhor não enxerga uma intenção deliberada de sabotar o combate à corrupção e, ainda mais agora, perseguir indivíduos e grupos que a apontam?
Trata-se de um governo de pouco mais de um ano, que teve início numa terra arrasada no que diz respeito ao controle da corrupção e que tem de enfrentar um Centrão anabolizado, alimentado por quatro anos com os bilhões do orçamento secreto de Bolsonaro. Hoje, o Centrão controla o Legislativo, o Executivo e, em grande medida, o Judiciário. Mas o governo Lula, ao invés de enfrentá-lo, se associou ao Centrão. E à dieta gorda de emendas, está preparando novos acompanhamentos, como cargos com controle de orçamentos bilionários nas estatais e o novo PAC. Fomos extremamente críticos a tudo isso e alertamos sobre o efeito desastroso que isso terá nas eleições municipais em outubro, de onde sairá, mais uma vez, um Centrão ainda mais poderoso. Qualquer um que veja as reações violentíssimas da militância petista contra a TI vai perceber que não estamos deixando de cumprir nosso papel crítico.
Em quais outros países a Transparência Internacional está acostumada a enfrentar retaliações a seu trabalho anticorrupção? Que tipo de regime costuma retaliar?
Quanto mais autoritário o país, mais violentas as reações. Tentam nos deslegitimar de todas as formas, a esquerda diz que somos agentes da CIA, a direita diz que somos agentes do globalismo. Esse tipo de coisa tem menos importância quando não envolve ações concretas de autoridades. Mas retaliações de autoridades não são raras. Neste ano, o governo de Honduras publicou decreto exigindo “as fontes” do IPC (que são públicas). Apesar de tudo isso, o IPC continua sendo publicado ano a ano, de maneira independente, assim como nossas equipes continuam fazendo suas denúncias, mesmo nos lugares mais hostis. Em El Salvador e no Marrocos, nossos colegas foram alvo de espionagem estatal com o software Pegasus, mas não se amedrontaram e continuam cumprindo sua missão. Na Venezuela, colegas foram sequestrados pelo Serviço Nacional de Inteligência Bolivariano, apesar disso, continuam firmes incomodando o governo em Caracas. Na Rússia, fomos expulsos do país, mas o time russo continua fazendo seu trabalho no exílio. Quanto mais tentam nos calar à força, mais certeza nos dão da importância do nosso trabalho.
Qual será a estratégia da Transparência Internacional para se defender juridicamente das acusações no Brasil?
Mostrar a verdade e seguir lutando contra a corrupção.
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Comentários (10)
Carlos Renato Cardoso Da Costa
2024-02-20 06:17:32Excelente trabalho. O depósito de 270MI para minar a credibilidade da TI e anular o acordo é maquiavélico. Ver que essa estratégia é criada pelo cunho do próprio PGR e legitimada por um ministro do STF é uma aberração aterradora.
Jonathas Silva Campos
2024-02-18 23:27:51Entrevista sensacional! Parabéns!
Gildo
2024-02-18 21:47:57Um sujeito desss quilate ser ministro do STF só revela o nível de podridão que assola esse País
Manolo
2024-02-18 11:31:52Suspeitos - pra dizer o mínimo- usam da toga pra "justiçar" quem ousa confrontá-los e os seus comparsas. Não vi coisa igual nem nos anos sombrios do regime militar. Jamais foi o país que sonhei deixar pra minha filha.
luiz antonio - rj
2024-02-18 10:57:57Vcs são cruéis. Nunca vi uma foto que mostrasse tão bem o quanto um sujeito tem cara de b1 dão. Mas nunca poderiam esquecer de lembrar que o amigo do amigo do meu pai é marido da advogada dele e de outros corruptos julgados nos tribunais superiores. A pouca vergonha é generalizada
Annie
2024-02-18 12:02:36Excelente entrevista.
Orestillo Meliani Simone
2024-02-18 11:39:42Excelente trabalho
agi
2024-02-18 09:27:18Jornalismo de verdade!! Parabéns FMB e Crusoé por esta reportagem excelente! Força TI e obrigado pela coragem e honradez!
ALDO FERREIRA DE MORAES ARAUJO
2024-02-17 18:58:16Na hora de atacar o cofre a mão direita sempre trabalha junto com a mão esquerda.
ANDRÉ MIGUEL FEGYVERES
2024-02-17 18:11:40Excelente reportagem. Parabéns Crusoé e parabéns Felipe Moura Brasil!