Manifestação socialista pró-PalestinaManifestação socialista pró-Palestina: vão mandar estudantes para lutar? - Foto: Reprodução/Lina Rahal

O que seria de Gaza sem o nosso DCE?

Quando fiz faculdade, as chapas para o Centro Estudantil se dividiam entre as de esquerda, as muito de esquerda, as de extrema esquerda, e as de esquerda até onde é possível ser de esquerda
02.11.23

Eu fiz faculdade de ciências humanas, mais precisamente de letras, e lá aprendi, entre outras coisas de importância igualmente fundamental, que esse negócio de “dois mais dois é igual a quatro” é uma construção social feita para espalhar preconceitos, doenças, pobreza, falta de saneamento básico e votos na direita. Sim, aprendi que a matemática é sádica e reacionária. Sim, aprendi que a matemática é uma das formas veladas da opressão (eu disse que aprendi isso na faculdade, mas, pensando bem, eu já sabia disso desde o primário: as tabuadas do sete e do oito me oprimiram deveras, e esse negócio de frações, então, só pode ser genocídio).

Lá também, não digo que aprendi, mas tive o solo da minha consciência arado e semeado para que depois brotasse, espontânea, a percepção de que o bom governo – o governo justo, o governo que é só amor, o governo que constrói o inexistente e reergue o destruído, em suma, o governo que está aí – faz dois mais dois ser igual a cinco, a sete, a onze, a dezessete. Porque é bom, porque quer o bem, porque não oprime nem é preconceituoso nem nada.

Por isso, é claro, eu não tenho a mais mínima capacidade de avaliar as declarações do jamais assaz louvado, do mais excelso dos homens, o senhor que nos preside, acerca de economia, meta fiscal, essas bossas. Nem avaliar nem contestar. Se ele, ao contrário do seu ministro do ábaco, diz que nós já não podemos mais somar dois mais dois sem que dê cinco, então que dê cinco. A parte que me cabe é a da fé: continuar todos os dias levando flores e incenso para diante do seu retrato e cultuar a personalidade orando e crendo que aquele rosto benigno não pode ser o de um homem que erra nas continhas de somar.

Mas eu quero falar de outra coisa, ainda dos meus tempos estudantis, não muito risonhos e nem sempre francos. A faculdade de letras tinha e tem ainda um Centro Estudantil ou Acadêmico, o célebre DCE, entidade basilar do regime democrático para a consecução de três tarefas imprescindíveis ao âmbito discente: fumar maconha, organizar assembleias e apoiar, quando não promover, greves. Todo ano uma leva nova de fumetas, festeiros e grevistas era eleita para mandato novo e idêntico a todos os anteriores, só percebido justamente em dias de assembleia e em tempos de greve. Todo ano, portanto, havia eleições. E havia chapas. E as chapas tinham lá suas, digamos assim, plataformas.

Acompanhar as campanhas era muito mais interessante do que ler Antonio Candido, Saussure, Blanchot ou Barthes. As chapas se dividiam assim: 1) as de esquerda; 2) as muito de esquerda; 3) as de extrema esquerda, e 4) as de esquerda até onde é possível ser de esquerda, uma esquerda que, quando olha para trás, vê tudo à sua direita, uma esquerda quase na fronteira entre as dimensões do multiverso – a esquerda quintessencial.

As plataformas acompanhavam essa divisão. Se todas se queixavam do ensino, a variação ia do “não é de qualidade” (esquerda) ao protesto contra a “universidade shopping center” (esquerda quintessencial). Se todas achavam que promover a revolução era seu dever, a variação ia do “apoiemos a UNE” (esquerda) até “devemos unir a nossa luta à do proletariado e à do campesinato” (extrema esquerda), de preferência luta armada (esquerda quintessencial).

E, claro, todos os antagonistas se acusavam entre si de peleguismo, de direitismo, de neoliberalismo, de fumar charutos caros, usar Rolex e ter iates cheios de loiras nuas em Mônaco. Era mais ou menos como se, num conclave, os cardeais acusassem uns aos outros de luteranos, de neopentecostais, de muçulmanos, e cada qual batesse no peito dizendo que católico era ele e só ele.

Ora, certa vez, uma chapa, uma da esquerda quintessencial, se excedeu no zelo revolucionário e incluiu, entre as pautas da sua plataforma, esta: o apoio incondicional, irrestrito, e até material, à causa palestina. (Não sei bem qual poderia ser o apoio material: mandar dinheiro? Mandar estudantes clandestinamente para lutar?) Isto foi por volta de 2004 ou 2005, há quase vinte anos portanto. Que me lembre, essa chapa não ganhou, e a decepção deve ter sido grande em Gaza. Mas esse tipo de proposta explica direitinho o lado em que os nossos docentes e discentes universitários formam na guerra atual.

Isto foi, repito, há quase vinte anos. Aproveitei estes dias de Halloween para tentar imaginar o que sairá de lá daqui a vinte anos, mas parei quando vi Jason, Freddy Krueger, Michael Myers e o Chucky fugindo pela janela. Como dizia a tia do Engels no zap-zap: t’esconjuro.

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  1. Se ao menos fossem universidades particulares, já seria um absurdo. Nós, pagadores de impostos, pagar as contas esse lixo humano docente, discente e indecente, me revolta..

  2. Ótimo artigo. E todas essa galera seria jogada pela janela de algum prédio em Gaza pelo Hamas ou fuzilada na rua, porque são drogados, não binários ou não cultuam o deus que o Hamas cultua, que é o deus do fuzilamento e da aniquilação.

  3. Lembro quando estava na escola técnica, participava do DCE do ensino médio e vi que teve uma galera da biblioteconomia da universidade, trotskistas segundo eles (um deles era ex-aluno), se chegando e na nossa chapa para a eleição. Foi aí que me dei conta da coisa toda e pulei fora. Depois, só ia lá dar um oi pra galera e jogar truco.

  4. Vi que "Intelectuais, artistas e movimentos" estão a assinar novo manifesto. Agora contra o genocídio em Gaza. Lançamento será na próxima quinta, na USP. A idéia deve ter nascido em um desses DCEs...

  5. Olá Tosetto. Escolhi começar a ler a Crusoé pela sua coluna. Gosto de ler e falar sobre DCEs, estudantes e professores especialmente de Universidades públicas. Lecionei por 35 anos em uma universidade privada, mas tive o "privilégio" de ver (de longe) como funciona a lógica das UPs. E até hoje não entendi por que rotulam universidades públicas como de maior qualidade? Conheci excelentes profissionais formados nessas escolas, mas só eram bons porque sempre foram, não porque se formaram nelas.

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