Reprodução/TwitterFila de aposentados para receber benefícios na província de Jujuy: dependência

A armadilha do assistencialismo

Expansão dos gastos governamentais com fins eleitoreiros cria ciclo de pobreza, do qual depois é difícil sair. Vale para o Brasil, vale para a Argentina
27.10.23

A quatro dias das eleições presidenciais na Argentina, sindicalistas ligados à situação instalaram cartazes em estações de trens de Buenos Aires afirmando que os candidatos da oposição cortariam os subsídios para o transporte público. Segundo essa propaganda, ilegal, o preço da passagem iria de 56,23 pesos a 1.100 pesos caso a oposição chegasse ao poder. Nos ônibus, quem passava o bilhete eletrônico nas catracas eletrônicas lia que o valor da passagem poderia custar 14 vezes mais em um outro governo (assista à entrevista com Orlando D’Adamo nesta edição da Crusoé). A propaganda, que foi parte de uma “campanha do medo”, teve um impacto fundamental na reta final do primeiro turno e ajudou o presidenciável peronista Sergio Massa a chegar a 36% dos votos. “Aquilo me pareceu uma jogada um pouco suja”, diz a jovem argentina Pathe Dominguez, de 18 anos, que usa o transporte público em Buenos Aires. O episódio marcou o ápice de uma tradição peronista que vem de décadas: o assistencialismo com fins eleitorais. A prática, contudo, é um perigo porque, uma vez instaladas, essas medidas acrescentam um peso no orçamento público difícil de cortar.

Hoje, na Argentina, onde mais de 40% da população está abaixo da linha da pobreza, quase 15 milhões de pessoas recebem dinheiro direto do Estado. São aposentados ou beneficiários de programas de assistência social. E há mais 4 milhões que são funcionários públicos, os quais constituem uma parte importante do maquinário eleitoral peronista. Considerando uma população de 46 milhões, percebe-se que dois a cada cinco argentinos dependem da ajuda direta do Estado. Quando se consideram outros subsídios, como aqueles que reduzem os preços das passagens de ônibus, de trem, as contas de energia ou de gás, o número de pessoas impactadas é ainda maior.

O exemplo da Argentina também mostra como, uma vez instituídos, os subsídios são muito difíceis de retirar. Primeiro, porque qualquer candidato que fale nisso tem suas chances eleitorais reduzidas. É o caso agora de Milei, que já desfilou com uma motosserra para pregar o corte de gastos públicos. Depois, essa dificuldade em voltar ao normal existe porque essas despesas acabam sendo institucionalizadas em algum momento. Muitos dos gastos que Milei fala em cortar constam como despesa obrigatória ou são aprovados pelo Congresso, o que quase impossibilita a redução orçamentária.

Não existe um número mágico para definir o quanto um governo deve gastar em assistência social e ainda manter a disciplina fiscal. “O tamanho do Estado depende do que o governo arrecada e gasta”, diz Juan Luis Bour, economista-chefe da Fundação de Investigações Econômicas Latinoamericanas (Fiel). Segundo dados do Tesouro Americano, os Estados Unidos gastam 40% do orçamento com assistência social, incluindo o sistema previdenciário e benefícios a veteranos das forças armadas. Na França, um exemplo de setor público inflado mas com economia forte, esse índice está acima dos 40%, segundo os números do orçamento nacional. O governo da Argentina, que mal tem dinheiro para pagar suas dívidas e costuma dar calote mesmo em dívidas pequenas, gasta 50% do orçamento com assistência social. O inchaço do Estado argentino começou nos anos 2000, após a crise econômica de 2001-2. A penúria da população durante essa crise, que foi a maior de todas, levou os governos a ampliarem os programas de assistência. Nas províncias, governantes regionais ainda contrataram mais funcionários, para tentar reduzir o desemprego. “Durante a alta das commodities, nos anos 2000, o governo até conseguia arcar com esse peso extra. Hoje, isso não é mais possível”, diz Bour.

No Brasil, o governo gasta cerca de 30% do orçamento com despesas ligadas à seguridade social. A porcentagem pode até parecer baixa se comparada com outros países, mas o caso brasileiro torna claro o potencial populista e a influência desse tipo de dispêndio nas escolhas eleitorais. No ano passado, Jair Bolsonaro foi o primeiro candidato a defender um Bolsa-Família (à época, Auxílio-Brasil) mais encorpado, no que foi seguido, rapidamente, por todos os adversários. Tal qual os argentinos, os políticos brasileiros também não se cansam de plantar rumores sobre as intenções dos adversários de acabar com os benefícios, se eleitos.

Um estudo publicado em 2020 pelos economistas Manuel Funke, Moritz Schularick e Christoph Trebesch indica que mesmo quando suas políticas resultam em desastre econômico e social, com déficits fiscais seguidos e descontrole inflacionário, políticos populistas tendem a ficar o dobro do tempo no poder quando comparados a não populistas. No levantamento, os pesquisadores afirmam que mesmo alegando perseguir os interesses dos “mais necessitados” contra as elites, os modelos populistas não melhoram a distribuição de renda e provocam cerca de 10% de queda na renda per capita ao longo de 15 anos. Não por acaso, exemplos latino-americanos figuram entre os destaques do estudo, com a lembrança de Getúlio Vargas, no Brasil, e Juan Domingo Perón, na Argentina, para citar os mais antigos.

A dificuldade maior, no entanto, é quebrar a cadeia de interesses que afunda a economia nacional em países que abraçam o populismo e sua principal arma, o assistencialismo. Como os resultados das políticas temerárias de gastos e endividamento só serão sentidos pela população após anos de depredação, poucos são os populistas que deixam o poder pela via eleitoral. A maioria, de acordo com o estudo, acaba por ser afastado por processos que vão desde impeachment até golpes de Estado.

A expectativa para as eleições argentinas é que Massa continue a abusar da máquina pública para captar votos, o que o ajudou a ganhar 3 milhões de eleitores desde as primárias. Não se trata apenas do cartaz nas estações de trens de Buenos Aires ou das mensagens nas catracas dos ônibus. Massa tem anunciado uma série de políticas econômicas eleitoreiras, que a imprensa chama de Plan Platita, o “Plano Dinheirinho”. Custando 2,5 trilhões de pesos até o final de dezembro, o Plan Platita envolve até mesmo sorteios de carros e eletrodomésticos. Massa ganha duas vezes com o assistencialismo. Ele gera lealdade no eleitorado e instiga o temor a Milei, acusando o libertário, com razão, de querer cortar os benefícios sociais. E o libertário não tem como reagir. “É difícil para Milei amenizar o discurso, porque o seu principal capital político é a sua personalidade. Se ele abandonar propostas radicais, como a dolarização, o que sobra?”, diz o cientista político Marcos Novaro, da Universidade de Buenos Aires. Para este segundo turno, devemos esperar mais platita e menos motosserra.

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  1. Os argentinos já erraram em colocar esses dois no segundo turno. Um, por motivos há muito conhecidos. O outro, por maluquice, que nós aqui temos experiência que não combina com governar.

  2. Porquê nenhum dos candidatos estimula a legalização dos 200 bilhões de dólares que os "hermanos" mantêm debaixo do colchão? Isentando de impostos poderia ser uma excelente fonte de reforçar as reservas em dólar da Argentina.

  3. Esse episódio do preço das passagens em Buenos Aires lembra bastante a campanha IMUNDA da DilmANTA em 2014. Aliás, aquele foi o perfeito exemplo de roubo da democracia, com uma campanha BILIONARIA, e abuso de poder, com dinheiro ROUBADO da PETROBRAS. Essa Dilma não devia ter sido apenas impichada. Deveria ter ido pra cadeia, onde o Nine deveria estar até hoje também.

  4. O que preocupa nisso tudo é o fato de a corja ptralha, sob o comando do Descondenado, está fazendo os mesmos erros o que levará a uma argentinização do nosso país.

  5. Populismo é infelizmente um câncer que Democracias tem falhado em resolver, e isso ainda irá custar uma reversão global em direção modelos mais autoritários como o Chinês.

  6. O PIB anual da Argentina é aproximadamente 600 bilhões de dólares. Que história é essa do "Plan Platita" custar 2,5 trilhões de dólares até dezembro?

    1. Bom dia, João. Obrigado pela observação. Não são 2,5 trilhões de dólares, mas sim de pesos. Já corrigimos o texto.

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