XinhuaA Rússia neoczarista ou a China novamente imperial e com pretensões hegemônicas seria parte desse tal grupo?

O Sul Global não existe

O conceito, que é uma criação de ideólogos, não apresenta consistência suficiente a ponto de poder ser entendido como um grupo político
27.10.23

Ideias contam, afirmam os historiadores, o que parece ser confirmado pela própria história.

Pensem, por exemplo, no conceito de “luta de classes”, um corriqueiro lugar-comum dos historiadores franceses no seguimento imediato da grande revolução de 1789. Dois jovens ideólogos alemães — Karl Marx e Friedrich Engels — puseram essa ideia no centro de suas análises sobre os arranjos políticos e sociais. As lutas de “proprietários e escravos”, “senhores feudais e servos de gleba”, “burgueses e proletários” seriam o verdadeiro “motor da história”. Era uma abordagem simplista, mas que teve um extraordinário sucesso nos 150 anos seguintes. Considerem, igualmente, o conceito de “complexo de Édipo”, que Freud generalizou a partir da literatura grega clássica e que passou a ser um dos eixos centrais das interpretações psicanalíticas desde então.

Marx e Freud foram dois grandes pensadores, que marcaram de forma indelével o século 20, não por disporem de poder político concreto, mas pela simples força de suas ideias, que impregnaram as mentes e as ações de milhares de outros personagens dotados de influência social. Mais do que o freudismo no mundo psicanalítico, o comunismo de base marxista foi, de fato, um grande “motor da história” no século passado, podendo ser considerado como parcialmente responsável pelos movimentos fascistas que surgiram no seguimento do “primeiro Estado proletário” que se instalou com o putsch bolchevique de 1917. Pode-se dizer que ele conquistou “corações e mentes” muito além do alcance do Exército Vermelho, seduzindo grandes intelectuais no coração das democracias de mercados capitalistas.

A maior parte dos conceitos predominantes em certas épocas não possuem, todavia, tal influência decisiva sobre o curso da história. A maior parte costuma ter trajetórias mais prosaicas, e apenas por períodos limitados, sendo geralmente o produto de reflexões acadêmicas que passam a ser utilizadas nos meios políticos. Esse parece ser o caso do tal “Sul Global”, conceito que se converteu numa espécie de mantra naquele ambiente mais retórico do que prático. Tendo sido usado e abusado por líderes desse “Sul” indefinido, ele passou a ser referido até por acadêmicos e líderes políticos de um “Norte” também indefinido. Ultrapassado a barreira das alucinações coletivas, o conceito é tido como refletindo uma realidade política, ou até geopolítica, concreta.

Assim como o século 20, ou pelo menos a sua segunda metade, foi marcado pela divisão e até pelo confronto Leste-Oeste, este início de século 21 parece querer dar um status de grande dimensão histórica ao conceito de “Sul Global”. A proposta é equivocada em todas as suas dimensões.

O mundo sempre foi assimétrico, com populações paupérrimas e grandes impérios poderosos, divididos geograficamente, mas que nunca se excluíram mutuamente: opressão colonial, exploração de recursos e do trabalho humano de comunidades dominadas por sociedades militarmente poderosas, progressos tecnológicos de um lado, atraso persistente de outro, marcaram a história de toda a humanidade, como demonstrado pelas pesquisas do naturalista Jared Diamond, cobrindo mais de 50 mil anos de história humana (ver, por exemplo, o seu Armas, Germes e Aço). A transmissão de conhecimentos, de novas espécies de vegetais alimentícios e de animais domesticados se deu, geralmente, no sentido Leste-Oeste, avançando nos meridianos do hemisfério setentrional.

Considere-se, também, uma história “mais curta” de apenas 5 mil anos, enfeixada no livro de David Landes, de título claramente inspirado em Adam Smith: A Riqueza e a Pobreza das Nações: por que algumas são tão ricas e outras tão pobres?. Em lugar de uma história “ecológica”, como em Diamond, temos aqui uma história cultural ou institucional.

Riqueza e pobreza estão igualmente disseminadas em todo o planeta, mas fatores ecológicos, ambientais ou de propagação de inovações tecnológicas ao longo do hemisfério setentrional fizeram com que sociedades mais avançadas se concentrassem acima da faixa tropical, bem mais unificada topograficamente (vejam a Eurásia) do que a dispersão de continentes e de ambientes na parte meridional do planeta. É um fato, não uma fatalidade.

Um Norte dominante e dominador, de um lado, e um Sul dominado e explorado, do outro, nada mais fazem do que refletir realidades concretas das geografias multimilenares ou trajetórias históricas diferenciadas, analisadas por Diamond e Landes, em suas respectivas dimensões de produtividades desiguais derivadas dos recursos naturais ou da qualidade do capital humano. Um “Sul” mais pobre, ou regiões periféricas, geralmente meridionais, sempre existiram, em função de disparidades fundamentais, que determinaram, muito mais do que o equívoco metodológico da “luta de classes”, o verdadeiro motor da história humana. A história sempre foi feita de assimetrias, dentro dos países e entre eles.

Não foi a “exploração” do “Sul” que tornou o “Norte” rico, tanto porque para dominar e explorar é preciso, antes, ser mais avançado material e  militarmente. Nem sempre foi assim, pois do contrário nômades mongóis não poderiam ter conquistado e dominado durante alguns séculos uma China bem mais avançada tecnologica e culturalmente.

O diferencial de produtividade humana – determinado em grande medida pela cultura letrada – é o que determinou, desde alguns séculos, a divisão entre um “Norte” e um “Sul”, e que ainda persiste, mas de forma totalmente fragmentada em ambos os hemisférios. Aliás, o outrora poderoso Celeste Império chinês, em declínio durante mais de dois séculos, pode ser realmente considerado como fazendo parte, hoje, desse “Sul Global” imaginado?

Esse conceito, tomado de forma unificada para somente um dos lados, é um completo equívoco acadêmico, político e geográfico, o que não o impede de ser utilizado de forma oportunista por políticos populistas. Mas, de forma alguma, a diversidade de nações nele incluídas e a multiplicidade de interesses nacionais agregados aleatoriamente nos Estados hoje componentes podem ser considerados a expressão de um grupo coeso em suas vontades e disponível para uma ação conjunta em face de um Norte hegemônico e dominador.

Existe alguma possibilidade de que a Rússia neoczarista da atualidade ou de que a China novamente imperial e com pretensões hegemônicas, possam ser os aliados de um inexistente “Sul Global” na luta pela construção de uma “nova ordem” que não mais seria dominada pelo “Norte”? A hipótese é inverossímil. Aliás, considerar que o Brics possa representar o tal de Sul Global é mais inverossímil ainda.

Para os saudosistas de um antigo terceiro-mundismo político retardatário, o tal de “Sul Global” já não é mais um simples expediente acadêmico equivocado, e sim uma entidade homogênea capaz de ajudá-los em suas pretensões oportunistas de liderar um suposto “bloco” unificado, mas que é tão diáfano quanto inexistente, para todos os efeitos práticos.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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  1. O termo "sul global" parece mais uma definição marketing para definir ym grupo de ditaduras e pseudodemocracias, lideradas pela China com objetivo de enfraquecer os países democráticos.

  2. "Sul Global", qual seria (ou seriam) as grandes mentes brilhantes e idealistas que por força de fatos e argumentos poderiam se opor às grandes e poderosas democracias ocidentais e às demais como Japão, Índia, etc. e liderar o Sul Global, Lula?, Putin? O Sul Global, bem como Lula, não são levados a sério. Não têm estofo para tal!

  3. Os autocratas e ditadores, e parceiros como o Lula, por exemplo, gostam de impor narrativas que lhes favoreça. O termo Sul Global ajuda a materializar essa narrativa da hora

  4. O ridículo do chamado "Sul Global" começa com a geografia. China e Rússia, dois dos principais países desse "Sul Global" ficam no hemisfério norte. Mas isso não impede a cultura woke de tentar redefinir a geografia mundial. Eles querem redefinir tudo segundo suas mentes doentias. A cultura woke defende com radicalismo a precisão dos termos. Agora escravo passou a ser escravizado. E os índios são os "povos originários". Mas a preocupação com precisão desmorona quando lhes convém. Hipocrisia pura.

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