Foto: Os Encanadores da Casa Branca/HBO MaxOs Encanadores da Casa Branca: patetices que lembram o golpismo à brasileira

Encanadores da Casa Branca vs. Conspiradores do Planalto

Uma série cômica sobre os agentes que detonaram o escândalo de Watergate guarda paralelos curiosos com os planos golpistas de Mauro Cid
23.06.23

Alguém aí viu Os Encanadores da Casa Branca (White House Plumbers)? A minissérie da HBO não conquistou muitos fãs. Tem mesmo problemas de roteiro e direção, mas eu me diverti com ela.

Trata-se de uma comédia sobre o escândalo de Watergate, que levou o presidente Richard Nixon a renunciar. Nenhum ator foi escalado para fazer Nixon, que só aparece em imagens reais da época. Os protagonistas são os dois meganhas que planejaram a malograda invasão do comitê do Partido Democrata no complexo predial de Watergate, em Washington: Howard Hunt (interpretado por Woody Harrelson), um ex-agente da CIA que caiu em desgraça com o fiasco da Baía dos Porcos, e Gordon Liddy (Justin Theroux), um esquisitão fascinado por Hitler que trabalhou no FBI.

A série apresenta seus personagens principais como uma dupla de patetas – o que parece estar próximo da realidade, a julgar pelo amadorismo de suas ações. No primeiro episódio, achei que o roteiro pesou a mão na caricatura. No decorrer da série, porém, os personagens vão ganhando contornos quase trágicos: na linha de frente de ações criminosas, acabam abandonados pelos líderes em quem confiavam – e que os induziram a agir fora da lei.

Na semana passada, quando vieram à luz as tramas do tenente-coronel Mauro Cid no WhatsApp, pensei imediatamente nos encanadores da Casa Branca (que nunca mexeram em pias e privadas: o nome era um despiste ruim). Pois também a conspiração armada pelo ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro foi uma completa patetice. Os golpistas urdiram planos para instaurar o estado de sítio com amparo em uma tese constitucional furada de Ives Gandra Martins. Cid conquistou o apoio entusiasmado do coronel Jean Lawand Junior e de militares da ativa que conversavam sobre amenidades em um grupo de WhatsApp. De acordo com o relato de Veja, teve até milico falando em arrastar “o careca” pelas ruas, amarrado a um blindado. No fim das contas, nenhum tanque arrebentou as portas do STF.

As mensagens trocadas pela turma do Cid não são comparáveis àquelas conversas feias entre empresários bolsonaristas que vazaram durante a campanha eleitoral. No grupo de WhatsApp de Luciano Hang, o popular “véio da Havan”, não havia ninguém efetivamente planejando um golpe de Estado. Houve quem desejasse um golpe – ou, na verdade, quem declarasse preferir um golpe à eleição de Lula. Nada disso constitui crime, e que o “careca” tenha mandado a Polícia Federal bater na porta dos empresários não é menos que uma arbitrariedade. O material apreendido pela mesma PF no celular de Cid parece ser de outra ordem: planos efetivos para impedir a posse do presidente eleito e para tirar Alexandre de Moraes – cujo apelido entre a milicada bolsonarista vocês já conhecem – do STF. Não é porque o plano era mal-ajambrado que ele deixa de ser criminoso.

A Horda Canarinha não foi chamada para garantir o estado de sítio. Menções à mobilização popular são esparsas e vagas nas mensagens já divulgadas. O mesmo milico que falava em esfolar Moraes no asfalto de Brasília diz que ninguém pode parar a “revolução do povo” (que linguagem mais bolchevique, meu general!). No contingente feminino do golpe que não houve, a mulher de Cid, em mensagem enviada à filha do general Villas Bôas (!), sugere que uma grande manifestação de caminhoneiros na capital da república convenceria o presidente hesitante a agir (e pensar que, em Os Encanadores da Casa Branca, a mulher do ex-agente Howard Hunt é a metade sensata do casal…). Mas o bolsonarismo aguerrido e agressivo que vimos nas ruas não chegou a dar as mãos ao bolsonarismo militar. O coronel Lawland foi chamado a depor na CPI dos atos golpistas, mas duvido que se descortine a partir daí qualquer conexão direta entre os milicos áulicos e a turba do 8 de janeiro.

Que conhecimento Bolsonaro tinha da conspirata? Já se perguntou o mesmo sobre Nixon e Watergate. Em Liderança (Ed. Objetiva), lançado há pouco no Brasil, Henry Kissinger conta que Nixon tinha o hábito de dar ordens perigosas e extravagantes a seus subordinados, como que para testá-los. Depois, a ordem era suspensa (gravações de conversas no Salão Oval documentam que Nixon sugeriu ao próprio Kissinger o uso de armas nucleares na Guerra do Vietnã, mas esse episódio não aparece no livro). Kissinger deixa casualmente a insinuação de que a tentativa de espionar o Partido Democrata em Watergate nasceu de uma inconfidência que algum acólito ingênuo e diligente levou a sério.

Bolsonaro é um tipo diferente de Nixon. O brasileiro não se limitava a aventar ideias ultrajantes para os assessores mais próximos: ele as bravateava em público – para depois negar o que dissera. Como falastrão que é, Bolsonaro não deve ter tido capacidade (ou coragem) de levar suas intenções declaradas a termo. E ainda há quem diga que ele não deu sinal verde para o projeto golpista de seus aloprados porque é um verdadeiro democrata. Janaína Paschoal, com aquela lucidez que é só dela, defendeu essa tese no Twitter.

Cid, o leal escudeiro bolsonarista que planejava uma intervenção militar para anular as eleições e assim salvar a “ordem constitucional”, daria um personagem cômico como os dois agentes que executaram (mal) a invasão do comitê democrata em Watergate? Talvez sim. Roteirista e diretor dessa comédia brasileira levariam uma vantagem sobre os realizadores de Os Encanadores da Casa Branca: quando se trata do bolsonarismo, não há como pesar a mão na caricatura.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista

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  1. Perfeito!!! O Brasil tem tanto know-how em incompetência e burrice, que até os fracassos brasileiros superam quaisquer outros similares estrangeiros. É impossível um país dar certo desse jeito.

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