CrossnessEstação de bombeamento de Crossness, em Londres, construída em 1865: arquitetura vitoriana

Saneamento, uma agenda do século 19

O setor privado é parte essencial para levar saneamento para metade da população que convive com esgoto a céu aberto, enquanto fala no celular
25.05.23

Após duas medidas provisórias e amplo debate no Congresso, foi aprovado em 2020 o novo marco do saneamento. Uma saga que vinha desde 2016, culminando com a aprovação da Lei 14.026/2020.

Conforme previsto, ainda que houvesse muito a ser feito para a implementação dos mecanismos estabelecidos no novo arcabouço regulatório, sua aprovação animou o setor e os investidores. Isso se deu pela sinalização de um ambiente de previsibilidade e estabilidade jurídica e regulatória, aliada ao fomento à competição para a prestação dos serviços.

Assim como ocorreu há duas décadas, após a aprovação de uma nova regulamentação para o setor de telecomunicações, que possibilitou a eliminação das filas de espera por telefonia e fez a declaração de telefones fixos no imposto de renda soar absurda, foi aberta a oportunidade para a universalização e modernização do setor de saneamento no Brasil.

Os resultados foram sentidos logo após a promulgação do novo marco. Projetos que já estavam sendo gestados pelo BNDES desde 2016 chegaram ao mercado e foram um sucesso retumbante. Mesmo com um prazo que vai de dois a três anos para elaborar um bom projeto, foram 23 leilões de água e esgoto desde a aprovação da lei. Ao todo, mais de 88,6 bilhões de reais foram comprometidos entre investimentos e outorgas, envolvendo 562 municípios e beneficiando mais de 30 milhões de brasileiros.

No leilão da Operadora de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro, Cedae, que foi o maior já realizado, envolvendo entre outorgas e investimentos recursos da ordem de 56 bilhões de reais, observou-se um esforço do BNDES em busca de investidores estrangeiros, o que não aconteceu. O leilão foi um sucesso mesmo assim, extremamente competitivo, com outorgas muito superiores (R$ 25 bilhões) às mínimas previstas pelo edital (R$ 10 bilhões). A competição se deu entre os operadores atuais, que conhecem o ambiente no qual atuam, suas oportunidades e seus riscos.

A relutância dos investidores internacionais em comprometer bilhões de reais em ativos do setor, mesmo considerando a nova lei um avanço positivo, pode ser explicada pela cautela. Os estrangeiros preferiram esperar que o complexo ambiente regulatório brasileiro amadurecesse.

Portanto, é preocupante constatar que, pouco mais de dois anos após a aprovação da lei em junho de 2020, estamos testemunhando tentativas de realizar alterações significativas em sua essência, por meio de decretos. Outrossim, também com a revogação desses novos decretos por meio de PDL (Projeto de Decreto Legislativo), que foi aprovado na Câmara dos Deputados em abril e está em processo de apreciação pelo Senado Federal em maio deste ano, tornam-se incertos os elementos de previsibilidade e estabilidade jurídica e regulatória.

Saneamento é qualidade de vida, meio ambiente, saúde, educação e gera emprego nas cidades que recebem o investimento. Serão necessários para a universalização, até 2033, 890 bilhões de reais, podendo gerar 1,5 milhão de postos de trabalho.

O setor público tem dificuldades significativas para fazer frente a esse volume de recursos, o que está evidenciado tanto na crítica situação do saneamento no Brasil, como pelo resultado da comprovação da capacidade econômica financeira das empresas estaduais. Essa comprovação foi um dos avanços do novo marco, exigindo que as companhias demonstrassem que têm como cumprir a meta de universalização, como condição para renovar seus contratos. Das 24 empresas estaduais (os estados do Amapá e Rio Grande do Sul concederam suas operações ao setor privado entre 2021 e 2022 respectivamente), apenas 16 atenderam aos requisitos, conforme dados da Agência Nacional das Águas (ANA).

Nesse cenário, o setor privado é parte essencial na solução em levar saneamento para metade da população que hoje convive com esgoto a céu aberto, enquanto fala no celular. Faz-se necessário que o país possa atrair mais operadores com capacidade de execução e comprovada experiência operacional para seguirmos em frente e sairmos do atraso superado em diversos países há tanto tempo.

Certa vez, conversando com um executivo inglês sobre uma viagem que faria a Londres em dezembro de 2022, ele me dizia que a região para qual eu iria estava em obras. O motivo era a troca da rede de água e esgoto. As perdas de água haviam aumentado em função de vazamentos causados pela idade da rede, feita na era vitoriana, ainda no século 19 (1837 e 1901).

Enquanto gastamos energia dando passos para trás num setor que já está atrasado, mas que estava caminhando com a nova lei, a pentavó do Rei Charles III já o havia superado.

 

Teresa Vermaglia é executiva com carreira nos setores de telecomunicações, energia e saneamento. É formada em engenharia com MBA em Gestão de negócios e atuação em conselhos de administração

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  1. A imagem de brasileiros falando no celular ao lado de córregos de água não tratada é perfeita, especialmente considerando o avanço conseguido na área da telefonia após a decisão de matar as estatais da área nesse momento que se pretende fazer o mesmo com as estatais de saneamento.

  2. Acabar com a miséria, a pobreza, a desgraça e trazer qualidade de vida e Civilização aos pobres seria um completo desastre pro PT e assemelhados. Como parasitas que são, eles dependem da miséria pra ganhar votos prometendo melhorar as coisas.

  3. Desse desgoverno o que se pode esperar é o retrocesso pois é favorável ao cabide de emprego e à fonte de propinas. Privatização é evolução portanto uma heresia.

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