Tânia Rego/Agência BrasilImagem da mostra “Presenças Invisíveis”, no Museu da Justiça do Rio de Janeiro

Como o empreendedorismo liberta mulheres da violência doméstica

A dependência financeira aprisiona a mulher na condição de vítima
26.05.23

No Brasil, a Lei Maria da Penha — que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher — assegura a concessão de medidas protetivas de urgência às vítimas de violência doméstica. Quem concede é um juiz, a partir da análise do caso, e o deferimento independe de processo instaurado. Isso significa que a vítima pode requerer uma medida de proteção diretamente em uma delegacia, que encaminhará o pedido para o juízo dentro de 48 horas.

A concessão de medida protetiva de urgência tem como principal objetivo a proteção da integridade da mulher, sempre que estiver em risco ou após já ter sido violada. As medidas podem tomar diversas formas, que são elencadas na própria lei — afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima, proibição de aproximação física da vítima, proibição de qualquer tipo de contato com a vítima por qualquer meio de comunicação, dentre outras.

Durante os meus dois anos de experiência trabalhando em um dos Juizados de Violência Doméstica do Rio de Janeiro, onde eu atendia vítimas diariamente, percebi que pedidos de desistência do requerimento de medidas protetivas eram recorrentes. Dias depois de recebermos o pedido, compareciam diante de nós para informar que estavam enganadas ou que “já tinham resolvido a situação”. Logo, nós as encaminhávamos para a equipe de atendimento multidisciplinar, onde as psicólogas observavam que as causas mais comuns da desistência eram as dependências financeira e emocional do agressor.

Corroborando a minha experiência pessoal, um estudo do DataSenado de 2021 concluiu que depender financeiramente do agressor é o segundo motivo pelo qual as mulheres deixam de denunciar. A dependência financeira aprisiona a mulher na condição de vítima de violência doméstica. O medo de abandonar o lar e não ter para onde ir, o que comer ou como sustentar os filhos é a mola propulsora da perpetuação do ciclo de violência.

Nesse sentido, apesar da medida protetiva estatal ter um papel excepcional na preservação da integridade de determinadas mulheres, esse mecanismo não é capaz de solucionar o problema na realidade de muitas outras. E isso fica pior quando a violência chega ao ponto de torná-las vítimas não só de agressão, mas também de feminicídio. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde OMS, no Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres — a quinta maior no mundo. A certeza de que essa estatística é influenciada pelo fato de que as mulheres não têm liberdade financeira para abandonar o lar que vivem junto ao agressor é inquestionável.

Encontramos, nesse ponto da reflexão, uma solução para a questão: precisamos tornar possível que mulheres conquistem a sua independência financeira para terem condições de deixar o ambiente violento. Claro que a primeira alternativa a ser pensada é buscar um emprego. Entretanto, o trabalho formal é uma realidade distante para muitas mulheres, especialmente para as moradoras de favelas e comunidades.

No início deste ano, quatro mulheres foram vítimas de feminicídio na Rocinha, Rio de Janeiro, em um período de 12 dias. Esse dado nos faz refletir sobre qual é a saída para as mulheres em uma situação específica: são dependentes financeiramente de seus agressores e não encontram oportunidades com carteira assinada no mercado formal. Nesse sentido, as próprias pesquisas mostram a solução: o empreendedorismo.

No contexto das favelas, segundo o instituto Data Favela, metade dos moradores de comunidades no Brasil se consideram empreendedores. Ainda, 76% dos moradores têm, tiveram ou pretendem ter um negócio próprio. A informalidade acaba freando que tais negócios prosperem ainda mais, mas a verdade é que, para suprir momentos de emergência e sobrevivência, abrir o próprio negócio proporciona autonomia, flexibilidade, empoderamento, autoconfiança e liberdade individual. São diversas as manicures, cabeleireiras e doceiras que impulsionam o comércio dentro das favelas e que mudam a sua realidade.

A partir de uma perspectiva geral, o Instituto RME, em parceria com o Instituto Locomotiva, em sua 6ª edição da Pesquisa Anual sobre Empreendedorismo Feminino no Brasil, trouxe dados que mostraram que 48% das entrevistadas conseguiram terminar relacionamentos abusivos e violentos ao abrirem o seu próprio negócio, no ano de 2021. O estudo mostrou, ainda, que 72% das mulheres empreendedoras alegam que possuem independência financeira total ou parcial e 81% concordam que empreendedoras têm mais autonomia na vida.

Conclui-se que a atuação estatal é importante para reprimir a violência, mas o empreendedorismo e a liberdade econômica são os artefatos que resgatam a essência autônoma da mulher como indivíduo, e que a capacita a seguir o caminho que melhor lhe servir. Segundo levantamento recente do Global Entrepreneurship Monitor (GEM) junto ao Sebrae, são mais de 30 milhões de mulheres donas de negócios no país, estando o Brasil em 7º lugar no ranking de países com mais mulheres empreendedoras. Aos poucos, vamos conquistando o nosso espaço e, principalmente, a nossa liberdade.

 

Letícia Barros é advogada e vice-presidente do LOLA Brasil

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