Adriano Machado/Crusoé

Autofagia brasileira

Livro de Fernando Limongi atribui impeachment de Dilma Rousseff à tentativa desesperada dos integrantes da coalizão governista de sobreviver à Lava Jato
25.05.23

Fernando Limongi (FGV e USP) é um dos cientistas políticos mais importantes do Brasil. Pode-se dizer que foi ele o pioneiro no estudo do “presidencialismo de coalizão”, embora esse termo tenha sido cunhado por Sergio Abranches. Na semana passada Limongi lançou, pela editora Todavia, o livro Operação Impeachment, Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato. É um primeiro passo para entender um momento importantíssimo da história política não apenas pelo evento em si — a segunda vez que um chefe de Executivo é impedido pelo Congresso em menos de 30 anos de democracia —, mas principalmente por ter parido a conjuntura atual, desequilibrada e pressionada pela desconfiança.

A hipótese trabalhada por Limongi é a de que não houve um “golpe” contra Dilma em 2016, no sentido de que uma força se sobrepôs à outra, e nem ela caiu por ter inabilidade ou inexperiência. Mesmo que não tenha usado essa metáfora, o impeachment, segundo ele, foi mais obra de um esfarelamento do sistema político, ocorrido a partir da emulação de um processo de autofagia, palavra que indica uma autodestruição da célula, quando ela passa a se alimentar de si.

Limongi retrata o impeachment como uma tentativa desesperada dos integrantes da coalizão que governava o Brasil desde 2003 de sobreviver à operação Lava Jato. Num salve-se quem puder geral, com Curitiba mirando o PT e o os promotores de Brasília focando o PMDB, dar Dilma Rousseff aos leões seria uma tentativa de acalmar a opinião pública, satisfazer a sede de justiça e manter as estruturas de pé. Mas, àquela altura, o processo já havia ganho vida própria, atingindo em cheio Dilma, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o governo de Michel Temer, que chegou cambaleante até 2018, arrasando as chances do PSDB com investigações pesadas contra Aécio Neves e abrindo as portas para Jair Bolsonaro vencer a eleição sem nem sequer fazer campanha.

Dessa forma, ver a Lava Jato como um fator externo a desestabilizar o sistema mostra-se como um passo equivocado. Com tanta experiência em “operações abafa” no Brasil, é o caso de se perguntar por que as instâncias superiores não acalmaram as coisas quando perceberam a amplitude que as operações poderiam tomar. Há pelo menos dois caminhos para responder, que não são excludentes, e tornam o livro mais interessante.

A primeira, assombrosa, é a de que Dilma Rousseff tenha assentido com o clima de terror e apostado que poderia se beneficiar no final, usando a questão ética como insumo para construir uma marca própria e sair da sombra de Lula e do PT. A segunda, curiosa, foram ações do PSDB questionando os resultados das eleições de 2014, retirando legitimidade não apenas do PT, mas do processo eleitoral como um todo, fragilizando-o e plantando as sementes de movimentos antissistema, como o questionamento das urnas eletrônicas, e trazendo radicais para o centro do palco. Ou seja, as vítimas políticas da Lava Jato teriam trabalhado pela operação ou, no mínimo, teriam se omitido, entendendo que poderiam tirar alguma vantagem dos seus resultados.

Em resumo, chegou-se a um curto-circuito geral que tornou o ambiente propício para que a Lava Jato ganhasse força, driblasse os mecanismos tradicionais de proteção de elites (usando até expedientes questionáveis) e, quando o sistema político se deu conta, era tarde demais. Dilma pagou o preço, mas Temer e o PSDB também. O primeiro nem sequer tentou a reeleição e o segundo teve um desempenho pífio com Geraldo Alckmin em 2018.

Há críticas que se podem fazer à tese de Limongi. A primeira é que a inabilidade de Dilma, que ele refuta ao listar muitas vezes que ela enfrentou e venceu políticos experientes, como Eduardo Cunha, fica na verdade expressa quando ela assume a bandeira da ética sendo governo e fornece munição para a Lava Jato. Ingenuidade? Outra é a responsabilidade do PSDB na deslegitimação do sistema eleitoral a partir do questionamento dos resultados de 2014. Apesar de ser real, o autor não procurou entender as motivações dos tucanos e isso é importante porque talvez seja possível chegar ao vale tudo eleitoral do PT como um elemento de estímulo para que os adversários perdessem a fé nas regras do jogo da transição democrática. Por fim, Limongi não explorou a crise econômica (o Brasil viveu em 2015 uma retração econômica pior do que a de 2021, ano mais difícil da pandemia) como fator na anuência dos agentes econômicos para que o impeachment ocorresse.

O distanciamento histórico é bem-vindo e Limongi está correto ao apontar que o que houve nos anos de 2015 e 2016 foi um colapso de todas as forças políticas relevantes — e não uma simples circulação de elites — que ecoa até hoje. Bolsonaro, o protagonismo dos militares, o retorno de um Lula enfraquecido, a reação conservadora e garantista do STF com o enquadramento das instâncias inferiores e o fortalecimento do Legislativo refletem ora tentativas de restauração, ora de reformulação, sem que ainda tenha surgido um novo consenso, necessário para a saída dos múltiplos impasses criados nesse período. O que se tem, como dica para quem quer analisar, é que o passado define os limites e as oportunidades de ação que se tem no presente e no futuro.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br

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500
  1. Eu só gostaria de saber o que realmente aconteceu na eleição de 2014, porque até hoje não entendi aquele lapso de horas até o resultado final ser divulgado !!! Não confiei nada no resultado. Bastante plausível acreditar no vale tudo do PT . Infelizmente

  2. Desculpe, Limongi, mas não se pode fechar os olhos a que Dilma tem sérias deficiências e distorções de raciocínio, amplamente registrados em inúmeros vídeos e declarações à imprensa escrita. Tem uma visão turva e confusa de mundo, além de uma lógica deformada. Parece que tem déficit de atenção ou algo equivalente. Para piorar, se acha muito inteligente e sábia. Que perigo! Com uma liderança assim, e com as ideologias que a acompanham, o Brasil só poderia mergulhar na maior crise da história.

  3. Concordo plenamente com qualquer coisa que chamem de "expediente questionável". Foi por usá-lo em muitos momentos que se chegou aos nomes dos responsáveis pelo desvio de dinheiro e corrupção. Usassem os métodos seguidos pelo que se atribui "legal" nada aconteceria e não conheceríamos os nomes. Infelizmente, "graças às leis vigentes" e a juízes corruptos vemos a corja solta para voltar ao crime. E é o que temos visto depois do encerramento da verdadeira LAVA-JATO.

  4. Sou perseguido pelos "intelectuais" por conhecer estratégia saber focar e visualizar o futuro mas aí está mais uma prova da ignorância diplomada deste país sob fanatismo e muita insanidade, ninguém neste país bosteja mais asneiras que nossos doutores que em incomensurável insanidade acha que a solução para os problemas nacionais é universalizar a miséria ... imbecís, idiotas e seus diplomas não servem nem para limpar bundas.

  5. A Lava Jato levada a efeito em sua plenitude lavaria o sistema político e faria as vezes da Lava Toga. O sistema reagiu e o país voltou para a lama.

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