A mamata voltou

Uma das principais ferramentas do poder é a distribuição de empregos públicos. Ao vencer as eleições em 2022, Lula tornou-se senhor de mais de 9,5 mil cargos comissionados, que podem ser preenchidos livremente pelo governo. Em dois meses, o Poder Executivo mal começou a ocupar essas vagas. Segundo dados do Ministério do Planejamento, ainda há 7.588 postos de direção e assessoramento superior aguardando um titular. É bastante? Claro que sim. Mas as demandas são ainda maiores.

Lula precisará dos cargos para ajudar a consolidar sua base, contemplando legendas como União Brasil, que sem isso não lhe dará votos no Congresso. Ele terá também de recompensar os partidos que o apoiaram na campanha, como PSB e PCdoB. O presidente receberá demandas de grupos da velha esquerda sindical e da nova esquerda identitária, passando por movimentos como o MST — que reclama espaço no Incra e já promove invasões de terra para fazer chantagem.

Uma das maiores pressões devem vir do próprio PT. O partido tem muitos filiados e estimula internamente a formação de quadros para a administração pública. O impeachment de Dilma, que tirou o PT do poder depois de 14 anos, interrompeu abruptamente muitas carreiras. “A legenda está repleta de especialistas em ciências sociais, economia, relações internacionais”, diz o cientista político Sérgio Praça, professor da Fundação Getúlio Vargas. “Com a volta ao Planalto, é inevitável que haja uma correria por cargos.” 

Os números demonstram que o PT não deixa os companheiros na fila do desemprego. Um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas mostrou que no final de 2015, pouco antes do impeachment de Dilma, 25% dos cargos comissionados de natureza especial (os mais importantes e mais bem remunerados) eram ocupados por petistas. Já em dezembro de 2021, na metade do governo Bolsonaro, apenas 9% dos postos de mesma classificação estavam nas mãos de gente vinculada a quaisquer dos partidos políticos.

Isso não significa que Bolsonaro tenha deixado de privilegiar um grupo específico nas suas nomeações. “O ex-presidente jamais encontrou seu lugar no sistema partidário”, diz Sérgio Praça. “Por isso, no Planalto, ele buscou suas alianças dentro das Forças Armadas.” Uma nota técnica publicada pelo IPEA no ano passado detectou, entre 2013 e 2021, um crescimento de 193% na ocupação de funções gratificadas civis por agentes militares. No final de 2021, quase 16% dos cargos de natureza especial eram controlados pelo “partido militar”. Uma proporção considerável, mas ainda inferior àquela que o PT atingiu.

Algo que tem chamado atenção neste começo de governo Lula é como políticos que não passaram pelo crivo dos eleitores no ano passado foram rapidamente aninhados em ministérios e estatais. Só no Ministério da Justiça de Flávio Dino, a justiça esquerdista contemplou cinco candidatos que foram rifados pelos seus respectivos eleitores: Augusto de Arruda Botelho (PSB-SP), Elias Vaz (PSB-GO), Tadeu Alencar (PSB-PE), Marivaldo Pereira (PSOL-DF) e Wadih Damous (PT-RJ). Todos assumiram posições estratégicas na pasta. Botelho é Secretário de Justiça; Vaz, de Assuntos Legislativos; Alencar, de Segurança Pública; Pereira, de Acesso à Justiça; Damous, de Defesa do Consumidor.

Há outros exemplos. Edegar Pretto (PT-RS) não passou para o segundo turno na disputa pelo governo de seu estado, no ano passado, e foi escolhido para presidir a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), com apoio do MST. Leonardo Picciani (MDB-RJ) não conseguiu um assento na Câmara dos Deputados, mas comandará a Secretária Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, que tem à frente o seu correligionário Jader Filho. Picciani foi condenado a 21 anos de cadeia na Lava Jato do Rio de Janeiro, mas a anulação das sentenças do juiz Marcelo Bretas, no ano passado, retirou seu caso da Justiça Federal e o remeteu para a Estadual.

As nomeações fazem muito mais que salvar esses políticos do ostracismo: dão a eles poder, bons salários e benesses. Nada mal.

A distribuição de cargos políticos não é um pecado por si só. Ela é incontornável no sistema brasileiro, que obriga os partidos vitoriosos em eleições a formar coalizões para governar. O enxugamento da máquina pública também não deve ser visto como panacéia. Ao longo de seu mandato, Bolsonaro reduziu em 47 mil os números do funcionalismo (aí estão incluídas tanto as vagas concursadas quanto as de  indicação política). Mas  isso paralisou setores da administração, como aqueles de fiscalizar o meio ambiente, e precarizou serviços de saúde e educação. As discussões mais sérias sobre reforma administrativa põe ênfase atualmente em temas como avaliações periódicas de desempenho e métricas de eficiência do que simplesmente no número de servidores. Cortes no funcionalismo devem ser resultado desses processos.

Uma reforma administrativa, no entanto, não está nos planos do PT. É mais fácil imaginar o contingente de empregados do governo sendo ampliado nos próximos anos, assim como aconteceu no primeiro mandato de Dilma e nos dois mandatos anteriores de Lula: em cada um deles, houve a abertura de mais de 40 mil novas vagas na máquina pública. Além disso, ideias como avaliação de desempenho do funcionalismo despertam ira no partido.

A distribuição de cargos públicos pelo PT mal começou. “Estamos fiscalizando diariamente as nomeações para o alto escalão dos ministérios, fundações, autarquias e estatais. Existem normativos que estabelecem critérios técnicos para as nomeações e também algumas vedações relacionadas à vida pregressa dos postulantes aos cargos”, disse à Crusoé a deputada Adriana Ventura (Novo-SP). O loteamento da administração pública pode ser uma ferramenta para o pior tipo de cooptação política e um passaporte para grandes mamatas. Se a mentalidade é essa, só resta mesmo vigiar.