Foto: Serviço de Emergência da Ucrânia/Wikimedia CommonsBombeiro apaga incêndio em Kiev após ataque russo; isolacionismo dos EUA teria graves consequências para a Ucrânia

O perigoso pacifismo da direita americana

Conservadores desiludidos com fiascos militares dos EUA se inclinam para o isolacionismo, e há republicanos que falam em abandonar a Ucrânia
17.03.23

John Robert Gallagher morreu aos 32 anos, na Síria, lutando contra o Estado Islâmico, em 2015. Ele era veterano do Exército canadense, mas não perdeu a vida a serviço de seu país. Gallagher voluntariou-se para lutar ao lado de um povo sem pátria, os curdos. Acreditava na causa de um Curdistão livre — e acreditava sobretudo que a teocracia ambicionada pelos terroristas do Estado Islâmico tinha de ser derrotada, pois ameaçava o princípio fundamental de que os seres humanos são todos iguais em dignidade. Na visão de Gallagher, o Ocidente, berço dessa “ideia radical”, teria o dever moral de apoiar a luta curda por seu próprio país e contra o fanatismo islâmico.

O soldado voluntário lamentava que os governos ocidentais percebessem a luta curda como uma guerra que não lhes dizia respeito. Também criticava a esquerda por adotar uma inaceitável política de apaziguamento em relação ao fundamentalismo islâmico. “Como a Guerra Civil Americana, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, esta guerra envolve ideias tanto quanto exércitos”, escreveu Gallagher. “A escravidão, o fascismo e o comunismo eram todos ideias ruins que exigiram grandes sacrifícios até serem finalmente destruídos. Em nosso tempo, temos uma nova ideia ruim: a teocracia.”

John Gallagher deixou essas considerações em um texto alentado no Facebook, quando se preparava para ir à Síria, em maio de 2015. Em novembro, foi morto nos arredores de Al-Hasakeh, cidade ocupada pelo Estado Islâmico que os curdos lutavam para retomar.

Lembrei-me de Gallagher quando li uma reportagem sobre o novo pacifismo americano. O texto saiu no início do mês em The Free Press, excelente site criado por Bari Weiss, ex-jornalista de The New York Times. O novo pacifismo de que o site fala deitou raízes no mais improvável dos ambientes: o Partido Republicano.

“A ascensão do pacifista de direita” é o título da reportagem assinada por Isaac Grafsten. O autor documenta uma virada na postura do conservadorismo americano. Um personagem representativo é Rod Dreher, editor de The American Conservative. Em 11 de setembro de 2001, ele estava na ponte do Brooklyn quando a torre sul do World Trade Center ruiu. “Tomado de raiva”, segundo suas próprias palavras, apoiou as invasões do Afeganistão e do Iraque. Desiludiu-se quando se confirmou que o Iraque não possuía as armas de destruição em massa denunciadas pelo governo de George W. Bush. E desiludiu-se ainda mais quando a guerra no Afeganistão se revelou um atoleiro moral e militar. O país que ele amava fora colocado no “caminho da destruição” por um governo de “incompetentes e ideólogos”, concluiu Dreher.

Da perspectiva melancólica desses republicanos históricos, vidas e recursos americanos foram desperdiçados no esforço vão de “construir democracias” no Oriente Médio, enquanto a situação doméstica se deteriorava. “Olhamos ao redor e encontramos uma sociedade com uma crise de opioides, com uma crise de matrimônios, uma crise de fertilidade, uma crise de solidão, uma crise de desindustrialização, uma crise de precarização da classe operária e da classe média”, avalia Sohrab Ahmari, co-fundador da revista on-line Compact e ex-neocon.

O pacifismo americano costumava ser de esquerda, como bem lembra a reportagem do Free Press. O movimento contra a Guerra do Vietnã — conflito que se arrastou ao longo de sucessivos governos, democratas e republicanos — foi inflamado pela esquerda radical e, digamos, alternativa (“malditos hippies fedidos”, grita Cartman, o gordinho desbocado de South Park). O pacifismo republicano é de outra natureza. Com mais propriedade, pode ser chamado de isolacionismo. Para recuperar sua grandeza, acreditam os conservadores desencantados, os Estados Unidos devem abandonar a postura de polícia do mundo e se voltar mais para si mesmos.

Uma política externa isolacionista teria consequências para a luta da Ucrânia contra o invasor russo. A reportagem do Free Press começa lembrando que Ron DeSantis, governador da Flórida e possível candidato à presidência pelo Partido Republicano no ano que vem, manifesta opiniões cambiantes sobre o tema. Em 2015, quando integrava a bancada de oposição da Câmara, ele defendeu que os Estados Unidos armassem a Ucrânia contra as investidas de Vladimir Putin nos territórios separatistas do sudeste. Já em fevereiro deste ano, DeSantis, em entrevista à Fox News, criticou o presidente Joe Biden pelo empenho em defender as fronteiras de um país distante enquanto as fronteiras dos Estados Unidos continuavam porosas à imigração ilegal. Isolacionismo em dose dupla: contra a defesa da soberania de um país estrangeiro e contra a entrada de estrangeiros nos Estados Unidos.

Entre os dois pronunciamentos de DeSantis está o governo Trump. Também de olho na Casa Branca, Donald Trump tem dito que, se estivesse no lugar de Biden, a guerra da Ucrânia já teria acabado. Lula bravateou coisa parecida durante a campanha eleitoral do ano passado: resolveria a parada em volta de uma mesa de boteco, com todos as partes do conflito apreciando o malte apaziguador da Ambev. Como presidente, Lula vem insistindo na ideia de um clube de países encarregado de mediar as diferenças entre o país invadido e o país invasor. Quando falam em paz, Trump e Lula querem dizer a mesma coisa: a submissão da Ucrânia.

Lembrei-me de John Gallagher porque imagino que ele discordaria veementemente de conservadores como Dreher e Ahmari (para nem falar de Trump e DeSantis). Em seu “textão” no Facebook, Gallagher reconhecia abusos e erros do intervencionismo militar ocidental (vale dizer, americano). Dizia que as invasões do Afeganistão e do Iraque causaram danos ao já instável Oriente Médio e possibilitaram a ascensão do Estado Islâmico. Mas acredito que o soldado canadense entenderia o apoio à resistência ucraniana na mesma perspectiva com que viu a luta curda. Diria que o Ocidente deve apoiar a Ucrânia até o fim, pois a soberania de um país que, com todos seus problemas, elege democraticamente o seu governante tem de ser protegida do ataque imperialista de um autocrata reacionário e mafioso.

Isso tudo é especulação minha, bem entendido. As pessoas mudam, às vezes nas direções mais inusitadas. Se Gallagher houvesse sobrevivido à guerra na Síria, a desilusão talvez pesasse sobre ele. O Estado Islâmico, é verdade, perdeu os territórios da Síria e do Iraque que ocupava e tiranizava. Mas seus terroristas ainda mantêm células ativas na África (em janeiro, um líder do grupo chamado Bilal al-Sudani foi morto por um comando americano no norte da Somália). A Síria segue sob a ditadura de Bashar al-Assad (com apoio de Putin, aliás). O Talibã voltou ao poder no Afeganistão (o projeto neocon de “construir democracias” no mundo islâmico encerrou-se com o espetáculo deprimente dos afegãos aterrorizados cercando aviões americanos no aeroporto de Cabul). E os curdos ainda não ganharam seu país.

No post do Facebook que acabou se tornando seu testamento, Gallagher transmite um fervor arrebatado, quase religioso — resquício, talvez, do ambiente fundamentalista (cristão, supõe-se) em que ele foi criado, segundo diz no texto. Parecia acreditar que a teocracia islâmica era o último dragão que a democracia precisaria enfrentar. Conseguiria ele manter esse fervor hoje? O liberalismo que ele defendia — liberalismo em sentido amplo e pleno, que não se deve confundir com o economicismo mesquinho de Paulo Guedes ou com o empreendedorismo rastaquera do Partido Novo —, esse liberalismo está se esboroando mundo afora, e por conta própria, sem que seus inimigos teocráticos precisem dar um só tiro.

John Gallagher talvez tenha caído por uma causa perdida. Brindemos a sua memória. Só as causas perdidas valem a pena.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. bom artigo, destacando difíceis desafios a frente. aí no final o jornalista resolve dar sua opinião pessoal em tom d deboche sobre talvez o unico ministro e c certeza o unico partido liberais q o pais ja teve… q mania chata essa dos jornalistas quererem mostrar sua posição política mesmo quando ela não é requerida…

  2. Pois é, parece que o negócio mesmo é sentar à mesa beber umas cervejinhas, com uma cachacinha antes para limpar a serpentina, saborear picanha e comemorar a paz. Cazzo!

  3. Os Estados Unidos são a nação mais fantástica que a civilização humana produziu na Terra. Têm vários lados negativos, porém são incomparáveis em democracia, ciências, tecnologia e cultura. Os esquerdistas não se entendem e invariavelmente acabam em autocracias como Cuba, China, Venezuela e Rússia...Se eles optarem por isolacionismo, fatalmente serão devorados pelos esquerdistas. Os pais do império americano foram Theodore Roosevelt, Alfred Thayer Mahan, Henry Cabot Lodge, John Hay e Elihu Root.

  4. Sim, a próxima guerra do liberalismo será contra a dupla teocracia/autocracia do oriente (médio e distante), mas antes convém vencer a luta que se dá no seu seio, contra ignorantes e protótipos de ditadores nacionais. O imperialismo americano é nocivo, mas o isolacionismo deixará um vazio que não gerará nada melhor, vide as saídas tresloucadas de Iraque e Afeganistão.

  5. Só faltou vc dizer, que o governo “democraticamente eleito” da Ucrânia, veio após um golpe de estado incentivado e apoiado pelos Estados Unidos e que o governo atual não cumpriu os acordos de Minsk. O que faria o governo americano, se a Russia armasse e treinasse o exército mexicano, em suas fronteiras? E bombardeasse cidadãos americanos em seu próprio território por anos a fio? Há sempre dois lados da história. Putin passou ANOS avisando que não aceitaria a inclusão da Ucrânia na OTAN.

    1. Isso aí, deixem que Putin tome o resto da Ucrânia como já tomou a Crimeia, com suas desculpas esfarrapadas de se defender da Otan e combater nazistas. Isto é só o começo. Hitler também fez assim, foi comendo pelas bordas, Anschluss, Sudetos, tudo com a conivência dos vizinhos europeus que achavam que não tinham que se meter, afinal ele supostamente iria combater o comunismo. Todos sabemos no que deu.

    2. Não entendi. Zelenski, um comediante, deu um golpe e obrigou a votarem nele? Não sabia. E a Ucrânia tinha que pedir a Putin que a deixasse entrar na OTAN? Por que? E foi a Ucrânia que invadiu a Rússia? Quando? E os estadunidenses bombardearam cidadãos russos na Rússia por anos a fio? Não vi isso no noticiário. Por favor, alguém explique, não entendo mais nada.

Mais notícias
Assine agora
TOPO