Foto: Lorie Shaull/Wikimedia CommonsRas Baraka, o prefeito de Newark (EUA), que assinou um "acordo cultural" com Kailasa, país fictício criado por um guru

Malignos ou burros?

Os governos que vemos e que vimos no nosso período de vida — incluindo o quinto poder, a imprensa — são malévolos ou simplesmente estúpidos?
17.03.23

Depois de milênios de filósofos políticos discutindo a natureza do poder, um ponto que parece impossível de ser resolvido pela mente humana é decidir se os governos do mundo são malévolos ou simplesmente estúpidos.

Ia escrever “decidir se as elites são malévolas ou simplesmente estúpidas”, mas falar em “as elites” pressupõe que não faço parte delas, o que sempre me parece um pouco humilhante. Prefiro me considerar parte da elite, na minha cabeça. De algum tipo de elite, pelo menos. A elite dos que fariam parte da elite se acordassem antes do meio-dia de vez em quando.

Cada vez que alguém fala “as elites” em tom acusatório, essa pessoa fica um pouquinho mais pobre, mais careca, mais desdentada, o cheiro do seu suor fica um pouco mais azedo, e o seu carro é capaz de quebrar no mesmo dia. Evitemos a expressão. Falemos em governos do mundo, portanto: os governos que vemos e que vimos no nosso período de vida — incluindo aqui o quinto poder, a imprensa — são malévolos ou simplesmente estúpidos?

Obviamente nada impede que sejam ambos. Mas, se são ambos, o que são mais — malévolos ou estúpidos? É um assunto fascinante, inapreensível mesmo pelas melhores mentes humanas, incluindo Platão, Locke e Tocqueville.

O quê, mas nem mesmo Leo Strauss? Nem mesmo Heidegger? Não, temo que nem mesmo a Gabriela Prioli conseguiria entender isso.

A pergunta é se as coisas chegaram ao ponto que chegaram de acordo com um plano maligno de milionários, em alguma estação de esqui cem anos atrás, ou se tudo ficou desse jeito meio sozinho, como um desenvolvimento natural da burrice dos nossos intelectuais e governantes (e nossa própria, talvez, talvez).

Se eu editasse um jornal, eis como eu faria a seção de política: eu a dividiria em duas colunas. Uma das colunas viria com o título MALIGNIDADES, e a outra IMBECILIDADES. E assim distribuiria as notícias do dia.

Recentemente, por exemplo, colocaria na coluna IMBECILIDADES esta notícia:

IMBECILIDADES

O prefeito de Newark, Ras J. Baraka, assinou um acordo cultural com um país chamado Kailasa. Durante a cerimônia de assinatura do tratado, na presença das enviadas de Kailasa usando saris e bindis, o prefeito discursou dizendo que esperava “… que nosso relacionamento melhore as vidas de todos, nos dois lugares… que nos ajude a entender a conexão especial que temos um com o outro… ”. É possível ver as fotos oficiais da cerimônia na internet — por exemplo, no site oficial de Kailasa, onde aparecem com a legenda “Os Estados Unidos da América reconhecem os Estados Unidos de Kailasa e assinam acordo bilateral”.

Mas só uns dias atrás a prefeitura de Newark descobriu que Kailasa não existe. É um país fajuto, criado por um guru indiano picareta procurado pela polícia por estupro.

Podemos rir da prefeitura de Newark, mas os governos federais são muito diferentes? O nosso governo? Ou qualquer outro, na verdade? Quando políticos e militares russos, americanos ou europeus tomam decisões que podem vir a causar uma Terceira Guerra Mundial, quantos deles conhecem mais geografia que o prefeito de Newark?

Já na coluna de MALIGNIDADES colocaria esta, embora saiba que é mais polêmica (mas eu sou o editor imaginário desse jornal imaginário, me deixem):

MALIGNIDADES

Durante as eleições americanas de 2016, Doug Mackey, com o nome de “Ricky Vaughn”, tinha um dos perfis mais populares do Twitter e era um dos principais apoiadores de Donald Trump. Dias antes das eleições, Mackey postou uma piada dizendo que, se alguém quisesse votar na Hillary Clinton, não precisava nem sair de casa: bastava postar #hillaryclinton no Twitter e isso contaria como voto. Não se conseguiu provar que alguém tenha deixado de votar por causa da piada, mas quatro anos depois, poucos dias depois de Joe Biden assumir a Presidência, Mackey foi preso pelo FBI, acusado de interferência eleitoral. Se condenado, vão ser dez anos de cadeia.

É uma piada antiga no Twitter, que é feita por ambos os lados em todas as eleições, sem que ninguém além de Mackey vá preso por isso. A comediante Kristina Wong, por exemplo, pode ser vista num vídeo de 2016 do YouTube fazendo a piada em sentido contrário, contra os eleitores de Trump. Nada, obviamente, aconteceu com ela.

Quase no final das páginas do jornal eu colocaria uma caixa com o título “MALÉVOLO E IMBECIL”, registrando os casos, não exatamente raros, em que o governo é ambos em doses mais ou menos iguais; e bem no final da página uma caixa intitulada NEM MALÉVOLO NEM IMBECIL, para registrar os casos, bastante raros, talvez meramente mitos, em que o governo não é nenhum dos dois.

Não sei, a rigor, se haveria mais notícias na coluna de Malignidades ou na de Imbecilidades. O dia a dia do jornal serviria para resolver essa questão milenar: mais notícias vão para uma coluna ou para a outra?

Se eu tiver que chutar, a burrice me parece uma força mais ativa e mais titânica no mundo do que a maldade. Se houvesse uma figura espiritual que representasse a burrice, uma espécie de grande Felipe Neto espiritual atuando no mundo, ele seria muito mais poderoso do que Satanás.

 

Alexandre Soares Silva é escritor

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  1. Eu estenderia a constatação à própria sociedade, pois convivemos (ou ao menos tentamos) com pessoas ora imbecís, ora malévolas, ora ambos.

  2. Sua coluna é um primor! Tomara que seja lida nas salas de aula das faculdades de comunicação deste país! Faria um grande bem aos alunos!

  3. Estamos esperando seu jornal com essas colunas, ao menos uma vez por semana! Mas eu particularmente, na minha burrice, acho que para ser mau, precisa inteligência, então não seria possível uma coluna com "Malévolo e Imbecil". Pensando bem, acho que é possível sim: "não vou me vacinar e nem comprar vacina"!

  4. Lamentávelmente assertiva esta sua analise.... No nosso Brasil tenho certeza de que a imbecilidade não deixa muito espaço nem para a malignidade...

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