Lucíola Correia/Flickr

Todo o poder e muita grana para a casta

Nomenklatura cabocla exerce poder totalitário sobre cidadania em relatorias e lideranças no Congresso
27.01.23

A nação respirou, aliviada, quando foi informada pelo Tribunal Superior Eleitoral que o período de desmanche da democracia, protagonizado de forma atabalhoada, mas pertinaz, pelo capitão Jair Messias Bolsonaro, se extinguiria no último dia do ano passado. Um enorme suspiro sacudiu o território continental desta Pátria de Tiradentes, Bonifácios, Pelés e Garrinchas ao se transferir a guarda da chave dos cofres da República democrática do cós de um assecla de Augusto Pinochet para a bata de um scholar do campus da USP, que se faz de ágora pagã da sabedoria e da temperança nacionais. Entre Guedes e Haddad a distância é quilométrica, mas só um otimista alucinado pode imaginar que a vitória do PT de Lula, Janja e Alckmin abolirá a tirania da burocracia estatal. E pacificará os ânimos destrambelhados da luta política dos pobres de espírito contra os traficantes do templo. Perdão, apaixonados por belas promessas e anúncios mirabolantes, mas ainda é profundo, largo e traiçoeiro o fosso que separa o homem comum sem mandato nem cargo público da aristocracia mendaz da arrogância e da indiferença.

Os instrumentos do poder real, acórdãos da cúpula do Judiciário, cofres partidários abarrotados de trilhões de moedas cintilantes, violência da autoridade, desigualdade social, sigilos centenários e, sobretudo, cadeados de cadeia mudam de bolsos, mas continuam feitos para isolar os quem tem DAS dos sem vintém. O desgovernante fugiu da polícia e foi se homiziar nas praias da Flórida, onde Al Capone passou seus últimos anos de rei do crime numa cela por culpa de delitos tributários. A dupla de barões que disputou o direito à faixa auriverde no peito chegou ao topo do Olimpo da republiqueta, um nas costas do outro, até que dois milhões de sufrágios decidissem quem assinaria os éditos reais. Entenda-se a última palavra como subordinada ao rei ou moeda sonante ausente do bolso de quem amassa o pão no suor de seu rosto. A tragédia do contribuinte esfolado sem piedade para gozo do baronato conhece o deus ex machina do antigo teatro grego na semana em que esta revista realista circula. Jair Messias Bolsonaro escapuliu para o exílio dourado, mas Arthur Lira ficou para garantir o selo da imunidade dos desiguais nas emendas do relator nas sessões noturnas em que os sonhos da punição dos malvados se esvazia em conceitos tatibitates e cinismo sem limite. Abre-te, Sésamo.

A comédia das três marionetes, relatada nas decisões monocráticas da injustiça instruída e instituída, em gastos abusivos dos cartões corporativos e em remunerações abusivas da nobreza que nega o velho léxico desautorizado, não tem a menor graça para a patuléia desvalida. Mas, ainda assim, os desvairados riem da própria desgraça. Como as tribos de desordeiros destroçadas pelos impérios do passado carregavam as pedras para as pirâmides, os caraminguás arrancados pelo Fisco voraz garantem fundos de partidos e para eleições. O bolsonarismo derrotado nas urnas ganha a chance áurea de eleger Rogério Marinho contra Rodrigo Pacheco, que ousou rasgar o véu inconsútil do verdadeiro vencedor de todas as eleições, inclusive as duas últimas, o bolsolulismo. Os plenários do Poder Legislativo confirmam esse mando fingindo que representam o populacho, enquanto os líderes das bancadas que sairão dos conluios e conchavos de sempre gastam o absurdo gramatical de orçamentos secretos. Pouco importa quem vai mandar quanto para quem. Importante é saber que, sejam quais forem os tudo menos nobres parlamentares que ficaram ou assomam a um lugar à beira da roleta abocanhando a parte do leão, domesticado e escondido numa gruta qualquer em território ignoto.

A tragédia humanitária do genocídio dos povos originários, iniciada pelos heróis dos compêndios de histórias da carochona, continuará reproduzindo as balas perdidas que só se alojam nos crânios dos humildes. As esteiras dos tratoraços esmagam as mãos dos que esmolam e os dentes de quem protesta. É inútil resistir. O placar do jogo está definido numa paródia da frase atribuída ao mineiro Artur Bernardes ainda na Primeira República, e sempre repetida: “aos convivas de banquetes palacianos, tudo; para a miséria generalizada as migalhas que nem a porcos são jogadas“. A democracia à brasileira é uma ditadura dos chefões das organizações partidárias.

Em vez de livros a mancheias do poema libertário de Castro Alves, nossa republiqueta feroz distribui mamatas para as casas grandes e dejetos para alimentar os ocupantes das senzalas. A pantomima reveste-se de sórdida solenidade. Numa postura que faria o mulato Machado de Assis corar, os piores se gabam de atender ao chamado de “excelências”, ou, em casos de extrema desfaçatez, de “excelentíssimos”. No Novo Testamento da teologia política dos servos de Satã, Jesus Cristo convida os mercadores da calçada do templo de Jerusalém para a dança macabra dos privilégios econômicos e políticos. Em vez de lhes ministrar certeiras chibatadas, como descreveu o evangelista em seu testemunho profético.

Os Jeremias contemporâneos pregam no deserto imprecações tornadas inúteis por seu duro realismo e pelo acerto milimétrico de suas profecias. Essas são inócuas em Pindorama, pois nos acertos dos quais emergem os líderes de bancadas só é possível encontrar a repetição ensurdecedora dos enganos. Sabe-se que dos 37 gabinetes ministeriais não sairão uma educação pública digna desses nomes nem uma saúde estatal capaz de curar mazelas contra as quais a grande maioria desprezada não tem nem terá a mínima atenção curativa. Perderam, manes, diria o ministro Barroso. As organizações partidárias impiedosas repartirão as arrecadações recitando outra paródia cínica do mesmo evangelho aqui citado: venha tudo a nós e ao vosso reino, nada. Os maganões sairão da convocação da seleção dos mais próximos ao usufruto dos bens negados aos mais longínquos. Neste ano da desgraça de 2023 como, de sobejo, nos que virão.

 

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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  1. Seja bem-vindo, Neumanne! Seu talento, coragem e perfeita articulação estão finalmente chegando, junto com os novos jornalistas, para alegria dos assinantes e reconstrução da nossa CRUSOÉ

  2. Lamentável ter um editorial deste nível, falando que o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, era uma pessoa que não respeitou a Democracia. É vergonhoso um jornal se propor a falar tal mentira, o cache esta alto.

  3. É sempre assim, os privilégios se perpetuam, são os caciques que escolhem seus apaniguados, de modo geral: filhos, genros, noras, em fim, familiares e as mamatas ficam vitalícias.

  4. Se os leitores desse artigo conseguiram compreendê-lo , já significa que ainda temos uma parcela da população que salva esse Brasil envolto em trevas. Parabéns !

  5. Parabéns pelo artigo. Isto aqui não é democracia, sem candidaturas independentes de partidos (o Moro teria sido o terceiro colocado com o dobro dos votos da “traira”), com voto obrigatório, isto aqui não é democracia. As verdadeiras e prósperas democracias são parlamentaristas, com arcabouços institucionais completamente diferentes da nossa tragedia tupiniquim. Abaixo o bolso lulismo!

    1. A citação ao Moro não ficou clara: se o Moro não fosse boicotado por TODOS os partidos seria no mínimo o terceiro colocado na corrida presidencial. Já tinha 8% sem ao menos ser candidato…

  6. Escritura de estilo rico e elaborado para compensar a miséria constrangedora que estamos vivendo: Grito de um poeta inconformado com o desmancho e desmoralização que prevalece no país.

    1. Infelizmente, as trevas são muito densas pois representam a mediocridade de nosso virtual ensino básico, da hipocrisia e avidez dos manda chuvas da política, da insanidade dos negacionistas e dos inimigos da cultura e das ciências. Enfim, depois de ler o excelente artigo do inigualável José Nêumanne Pinto, verifiquei que o caminho da redençao brasileira, está longe de ser trilhado. Nele, as pedras que o povoam são tão grandes ou tão pequenas, como as roubadas dos garimpos e da riqueza nacional,

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