Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Os dois eixos de Brasília

Toda uma história da cultura pode ser escrita tendo em vista a continuidade e não a ruptura. Os eixos que cruzam a cidade não são só o eixo rodoviário e monumental, mas o eixo do passado com o presente do país
27.01.23

Seja na posse do novo presidente, nas invasões da Praça dos Três Poderes ou agora, na eleição para presidentes das duas câmaras do Congresso Nacional, Brasília está sempre no noticiário. A vemos tantas vezes que esquecemos que foi concebida a partir de certos pressupostos estéticos que dialogam com um passado antigo.

Não deixa de ser curioso que Brasília seja, ainda hoje, ao mesmo tempo, uma cidade pacata para se viver e o cenário dos embates da democracia brasileira – ou dos embates contra a democracia, diga-se. A grande chave do projeto de Brasília é a solução que Lúcio Costa deu a um antigo problema da arquitetura e do urbanismo. A monumentalidade da arquitetura leva a um desconforto do ser humano, ela não é acolhedora.

Na última cena do filme Cidadão Kane, o personagem principal, um homem rico porém infeliz, vive seus últimos momentos na grande mansão que construiu – ele parece estar perdido ali, a dimensão da edificação e a abundância de objetos parece oprimi-lo. A escala monumental oprime o ser humano. Só que a escala humana não serve para os monumentos que representam a coletividade, o estado. Lúcio Costa resolveu esse problema com os dois eixos de Brasília que se cruzam: o monumental, dos prédios públicos estatais, e o rodoviário, da habitação e comércio. 

Lúcio Costa, autor do projeto da cidade, dá um sentido elevado a esse cruzamento. Diz ele no projeto da cidade: “Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”. 

Ele diz também: “Trata-se de um gesto deliberado de posse, de um gesto no sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição”. 

No projeto da nova capital, Lúcio Costa recorre a elementos tradicionais brasileiros. Ele foi também um estudioso da arquitetura barroca brasileira, considerada por ele como a gênese da arquitetura nacional. O próprio discurso modernista teve vínculo indissociável com a arquitetura colonial. Para ele, Ouro Preto é a mais interessante das cidades brasileiras – chegou a visitar o sul da Alemanha para conhecer as igrejas barrocas entre o Danúbio e os Alpes, que, segundo ele, se assemelham esteticamente às de Aleijadinho.

Existem semelhanças entre Ouro Preto e Brasília, e muitas diferenças. Tanto Ouro Preto como Brasília foram, à sua maneira, lugares que atraíram rapidamente migração em massa que se instalou precariamente, tiveram seus mitos fundadores, foram marcadas pelo desenvolvimento tardio de um estilo originário da Europa e povoaram, em épocas distintas, o interior do Brasil. Por outro lado, se opõem diametralmente: uma cidade colonial feita pelo caminho das mulas (que carregavam o ouro), outra cidade moderna desbravada pelos trabalhadores e pelas máquinas, com um plano claro e objetivo, saído da cabeça de um só homem – Lúcio Costa. 

O arquiteto Francisco Lauande, no seu artigo sobre a Igrejinha de Oscar Niemeyer, demonstrou o parentesco estético entre a obra do arquiteto carioca e a arquitetura barroca brasileira, especialmente de Aleijadinho. Diz ele: “A Igrejinha é talvez a interpretação mais evidente do barroco brasileiro de Minas, em Brasília”. O próprio Oscar Niemeyer escreveu que os palácios de Brasília por ele projetados tinham uma “ligação com a velha arquitetura colonial”, na “intenção plástica”, no “amor pela curva” e “pelas formas ricas e apuradas”.

Existe um comentário bastante curioso feito pelo escritor Aldous Huxley (autor do livro Admirável Mundo Novo) na ocasião da construção de Brasília. Diz ele: “Vim de Ouro Preto para Brasília. Que jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada de ontem para o amanhã, do que terminou para o que vai começar, das velhas realizações para as novas promessas”. 

O comentário de Huxley foi feito num telegrama enviado a Juscelino Kubistchek, mineiro de Diamantina e responsável pela construção de Brasília. Foi o próprio Juscelino, aliás, que convidou Oscar Niemeyer, então um jovem arquiteto, para projetar as obras da Pampulha, em Belo Horizonte. Há um caminho de Minas a Brasília repleto de linhas de convergência.

Frederico Holanda, professor da UnB, ressalta no livro O Espaço de Exceção que Brasília tem “forte parentesco com lugares produzidos por outras culturas”, tais como “centros cerimoniais pré-colombianos – como Tikal – assentamentos africanos da cultura zulu e castelos feudais franceses”.

Toda uma história da cultura pode ser escrita tendo em vista a continuidade e não a ruptura. O ser humano, como ser cultural, está sempre envolto com o passado, queira ou não. Brasília, produto da cultura elaborada por um indivíduo, não é diferente. Os eixos que cruzam a cidade não são só o eixo rodoviário e monumental, mas o eixo do passado com o presente do país. 

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro

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  1. As colunas do Teófilo estão rapidamente se tornando das minhas preferidas, não só por despertar interesse na arquitetura, tema que nunca me agradou, como pelas teses abordadas que são completamente ignoradas por mim.

  2. Eu acho Brasília uma das piores cidades que já conheci. Pelo simples fato de que gosto de andar. E numa cidade feita para carros, isto é impossível.

  3. Achei BSB tremendamente desconfortável e feia, a exceção da sua catedral com seus anjos e a réplica da Pietá que, no entanto, se “enfia” para embaixo da terra... Deus sabe porquê. Penso que a única maneira de me sentir confortável ali seria sobrevoando, em algum tive de transporte futurista, mas ainda assim veria todos aqueles descampados, aquela vegetação pobre, aquelas terras que parecem de ninguém ao derredor!

  4. Morar em Brasília é fantastico. Parabéns Lucio Costa. Habitar os predios do Oscar Niemeyer é desconfortável.

  5. Muito legal esse texto. Gostaria de ver um próximo sobre as soluções que mostrem uma Brasília sustentável (ou não). Na época esse tema não era importante, mas gostaria que a Capital Federal desse exemplo para todo Brasil e Mundo.

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