OrlandoTosetto

O retrato do velho outra vez

04.11.22

Quando voltou ao poder, em 1950, reconduzido pelo voto popular, Getúlio Vargas tinha sessenta e oito anos. Governara o Brasil de 1930 a 1945, quinze anos e pouco portanto, e venceu de permeio uma guerra civil; somados os três anos e meio que se aguentou no poder entre 1951 e 1954, deu mais de dezoito, quase dezenove anos diretamente na cadeira. A marchinha que comemorou sua vitória, composta por Haroldo Lobo e cantada por Francisco Alves, o Chico Viola, rezava assim: “Bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar: o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar, o sorriso do velhinho faz a gente se animar”.

Perdão, Haroldo e Chico, mas essa é uma letra muito errada: eu lá deveria me animar a trabalhar só porque alguém pendurou sei lá onde uma foto de um velho dando risada? Minha preguiça é muito mais cínica e muito menos sentimental. Mas isto vem da minha vagabundagem, que, como as pernas tortas de nascença, é difícil de corrigir. Mais interessante do que os meus defeitos, no entanto, é perceber que a letra chama de “velhinho” um camarada nove anos mais moço do que o cidadão que venceu o pleito de domingo. Ora, direis, velhice é experiência, velhice é sabedoria; e eu, que envelheço a dores vistas, me apressarei, de modo talvez até indecente, em concordar. Mas concordarei em causa própria, que é sempre a pior das causas. Pois velhice também é aposentadoria, é pijaminha e chinelo felpudo, é falar com saudades do tempo imaginário em que tudo era mais simples, mais bonito e mais fácil. Velhice também é saber a hora de parar.

Também interessa perceber que o recém-eleito, cujo retrato vai ser posto outra vez no mesmo lugar e cujo grande ídolo político é justamente Getúlio Vargas, esteve diretamente no poder de 2003 a 2010 – oito anos –, e indiretamente de 2011 ao meado de 2016 – mais cinco anos e meio, o que dá quase quatorze. Com mais quatro do novo mandato, caso o complete, serão quase dezoito anos de poder, somando cadeira e cordões. Terá, nesse quesito ao menos, se aproximado muito do seu ídolo.

E mais uma coisa que percebi, desta vez em consulta democrática às minhas dores de juntas e à minha pilha de pílulas, é que o primeiro pleito vencido pelo futuro mandatário foi há vinte anos. Repito: vinte anos. Bem, há vinte anos eu era outro: mais moço, mais bem-disposto, menos cheio de remédios e de achaques, com mais futuro do que passado por diante, e portanto bem mais esperançoso. Ou talvez, ou decerto, mais bobo.

Fiquei tentado a dizer que há vinte anos o Brasil também era outro, mas não consegui: o Brasil, como Minas Gerais, está onde sempre esteve e é o que sempre foi. No máximo, posso dizer que o Brasil gosta muito de viajar no tempo; pena que viaja sempre para trás. Afinal, o retrato e o sorriso do velhinho vão voltar pro mesmo lugar.

* * *

Domingo se encerrou o mais longo processo eleitoral da história do país, iniciado no dia primeiro de janeiro de 2019. Acontece que começou em seguida outro processo, que se desenha ainda mais longo: de 30 de outubro de 2022 até 25 de outubro de 2026.

Ou assim parece às 14:00 do dia 2 de novembro, que é quando estou pondo o ponto final nesta coluna. Entre o meu ponto final e os olhos do leitor, porém, um mundo de coisas poderá ter acontecido. Não arrisco vaticinar nenhuma. Estando nós, entretanto, no Brasil, arrisco apenas dizer que vai parecer que aconteceu um mundo de coisas, mas, na verdade, continuou tudo na mesma.

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  1. "Velhice também é saber a hora de parar". Perfeito, mas e como satisfazer esse desígnio antes a perspectiva de poder e a cativação da bajulação estatutária da presidência da república?

  2. O passado nunca mais, dizia o MDB (tremenda oposição consentida pelos generais da ditadura) saudando a nova república de democracia à brasileira e constituição cidadã- tão esparadrapada de remendos e- colorida de "vermelho-constrangimento"-de mercúrio cromo. Para coroar, um péssimo reviver horroroso (passado bemalpassado) da história deste país-republiqueta do ditador Getúlio. O povo brasileiro gosta da malvadeza e do que não presta, se midiatizado à Goebbels (fakes repetitivos ao cansaço viram

    1. contos-de-fada). O luloptismo flex, em maldades, serve para isto (até a candidatar-se a uma ditadurazinha "democrática" à nicarágua). Graças à Bolsonaro (que iria "nos fazer esquecer" o atual velhinho) engolimos essa roubada, né? O masoquismo atávico do brasileiro talvez seja culpado por essa "doce amargura". Lembrar dos anos dourados de JK prá que? (e olha que sou de família terrivelmente udenista!).

  3. Meu mais veemente PROTESTO por tanto cinismo e canalhice claro crime contra Getúlio que foi ditador sim e cometeu erros MAS LADRÃO NÃO ERA e se fosse descendente do grande pequeno homem processaria este sujeito de maus bofes maniqueísta a óbvio serviço da quadrilha que vai mais uma vez infelicitar o país ... a escória ladravaz é assim acusa outros de seus crimes e quem tem o mínimo de dignidade sabe disto.

  4. Brasil país do futuro... só se for do pretérito. Da graça Judicial. Da corrupção institucional. Da ideologia sem ideais. Do culto à personalidades sem valores... O "brasileiro, profissão esperança" foi demitido. Salve-se quem puder.

  5. É descabida a comparação. Lula é um descondenado por uma manobra jurídica, com a batuta do STF. Getúlio nunca foi julgado ou condenado por corrupção. Quando se sentiu culpado, teve o gesto de tirar sua vida. Era um nacionalista e fez a Petrobras, Eletrobrás e foi um negociador em plena II Guerra. Já Lula é o que é mas mudará, para pior.

  6. Perfeito!! Nunca o Brasil foi tão velho!! Vai botar o retrato do velhinho de ideias antiquíssimas e uma turma que tá pra lá de Marrakesh!! (pra usar uma expressão de acordo com o retrato do ministério da futura posse…)

  7. Entra ano e sai ano e a discussão do que fazer com nossa DESeducação não anda. Só sairemos dessa situação (não ter alternativa decente de governantes) por meio da educação. Quem sabe com Simone no ministério da Educação alguma coisa mude. Sempre assim, quem sabe, talvez ,se Deus quiser e por aí vai. Acho que não verei este dia.

  8. Coluna muito bem desenvolvida, cheia de verdades. De fato, com centrão, e orçamento secreto, nosso País continuará dando dois passos para trás; um para frente. Tínhamos Ciro Gomes, e Simone Tebet, mas foram "violentamente" (pelo voto) excluídos do processo. Ficaram dois piores. Venceu menos ruim. Não por ele, mas por tudo que o rodeia. Avisos, insinuações já começaram tão logo saiu resultado. E assim será!

  9. O Brasil parece que foi feito pelo roteirista de Breaking Bad, ou o inspirou MUITO. Vamos de uma quadrilha para outra em uma espiral descendente. Nesse momento todos aplaudem "Gus Fringe" (o velhinho do retrato) e o sucesso da volta da franquia Los Polos Hermanos ao poder. Que "tistreza" .

  10. Qualquer idade pode ser banhada por experiência. Mas, mais do que nunca, agora, tem a obrigatoriedade de constante atualização.

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