Wilson Oliveira NetoPágina da seleção brasileira no álbum da Panini: figurinhas incentivaram conversas com desconhecidos

A intrincada história das figurinhas

Indústria do tabaco disseminou os primeiros álbuns sobre conhecimentos gerais e celebridades. Mais tarde, nazistas os usaram como recurso pedagógico
04.11.22

No próximo dia 21, uma boa parte do mundo dará um tempo em seus afazeres para acompanhar a partida de abertura da Copa do Catar, o 22º campeonato mundial de futebol. Nós, brasileiros, prenderemos nossa respiração no dia 24, quando a seleção brasileira fará sua estreia contra a Sérvia. Por mais realista que o torcedor seja, rola sempre aquela esperança de que, agora, conquistaremos o hexa.

Há uma dimensão de fé, emoção e memória afetiva na relação que as pessoas estabelecem com o futebol. Especialmente, quando se tratam de mundiais, que são amplamente explorados por um mercado de lembranças, do qual as figurinhas fazem parte. A cada quatro anos, adultos e crianças desprendem tempo e, principalmente, dinheiro para completarem os álbuns de figurinhas dos mundiais de futebol editados pela Panini, cujo grupo é, atualmente, o maior editor de figurinhas do mundo. Fundada na cidade italiana de Modena, em 1961, pelos irmãos Giuseppe e Bruno, a Panini revolucionou o mercado e a cultura do colecionismo de figurinhas, cujas origens estão situadas na virada do século 19 para o 20.

Diversão para uns, negócios para outros, as figurinhas não são meras imagens coloridas e autoadesivas para fixação em álbuns. Há muita história em torno delas que ajuda a entender o surgimento da sociedade de massa e a importância das imagens visuais entre nós.

As imagens pertencem ao universo dos vestígios mais antigos da vida humana que chegaram até nós”, afirma o historiador Paulo Knauss. De fato, um tipo específico de produção pictórica conhecida como arte rupestre fornece aos estudiosos os indícios mais remotos de arte, religião e simbolismo, atributos exclusivos da nossa espécie.

Sobre essas primeiras imagens produzidas, a história da arte sugere uma forte conexão entre representação pictórica e magia. Afinal, o sobrenatural foi o primeiro meio através do qual nossos ancestrais atribuíram sentido e significado ao mundo, aprendendo a olhar para além do visível das coisas.

Séculos e milênios mais tarde, a modernidade promoveu o “desencantamento do mundo”, que teve na palavra escrita seu esteio. A invenção da imprensa barateou e tornou os livros e demais impressos produtos acessíveis. Porém, ela não substituiu as imagens. Na medida que as artes gráficas se desenvolveram ao longo do tempo, escrito e visual misturaram-se ao ponto de se tornarem uma das mais potentes janelas para o mundo, cujo componente pedagógico ajudou na disseminação de costumes, hábitos e ideias, pois, como disse o filósofo da comunicação Vilém Flusser, uma imagem é, entre outras coisas, “uma mensagem”. Sua produção e circulação têm conteúdo e intencionalidade.

Cartões postais, estampas, fotografias e figurinhas são parte dessa história. Surgiram durante a segunda metade do século 19, no hemisfério norte, em um contexto marcado pelo desenvolvimento de uma tecnologia que permitiu a produção de imagens visuais em escala industrial e de movimentos políticos nacionalistas, cujas tradições inventadas tiveram na iconografia um dos seus suportes, a exemplo dos selos postais, lançados inicialmente na Inglaterra, em 1840. Até hoje, emissões comemorativas e regulares são expressões públicas de identidades, memórias e tradições dos países emissores.

As primeiras séries de figurinhas não tinham nada a ver com o futebol. Muito menos com os seus mundiais, sendo o primeiro disputado no Uruguai, em 1930. O hábito de colecionar imagens, do qual as figurinhas fazem parte, surgiu na virada para o século 20, na Europa e nos Estados Unidos. No caso específico das figurinhas, foi a indústria do tabaco a responsável pela sua difusão, através dos cigarrete cards ou Zigarretenbild. Os temas abordados pelas coleções eram variados e giravam em torno de conhecimentos gerais e celebridades da nascente cultura de massa. Em uma época em que ainda não existia o Google para encontrar qualquer imagem, reunir e organizar estampas ou estampilhas em álbuns eram formas de sociabilidade e de acesso a um saber geral sobre cultura e ciências. Neste sentido, vale citar os primeiros álbuns de selos postais editados na Europa. Além dos espaços específicos para a fixação em ordem cronológica das emissões, cada país era acompanhado por mapas e litogravuras das suas armas e dos seus líderes. Os álbuns foram produzidos em grande variedade, desde os “populares” até as “edições de luxo”, para todos os gostos e bolsos, indicando a preocupação dos seus editores em alcançar o máximo possível de pessoas.

No contexto de expansão dos nacionalismos e do fascismo histórico durante as décadas de 1920, 30 e 40, em especial, na Europa, as figurinhas se tornaram um dos suportes de uma pedagogia política direcionada às massas, sendo o regime nacional-socialista na Alemanha (1933 – 1945) um exemplo emblemático.

Em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler (1889 – 1945) foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg (1847 – 1934). Foi o início de um regime político conhecido historicamente como “Terceiro Reich”. Embora Hitler tenha se tornado autocrata somente após a morte de Hindenburg, sua posse como chanceler desencadeou uma produção em larga escala de imagens visuais sobre os mais variados suportes, como a figura a seguir, cromo número 9 de uma coleção denominada “Adolf Hitler”, que deveria ser fixada em um livro ilustrado. Até o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o nazismo usou as figurinhas como um meio de propagação das suas ideias.

Wilson Oliveira NetoWilson Oliveira NetoCromo 9 do álbum Adolf Hitler. Coleção do autor
As figurinhas da Copa obviamente nada têm de nazistas. Aliás, bem poderiam ser consideradas o seu oposto. Se Hitler pregava a divisão da sociedade e a exclusão daquele que era diferente, as figurinhas são inclusivas. Por causa delas, crianças, jovens e adultos iniciaram conversas amigáveis com completos desconhecidos e, na maioria das vezes, chegaram a um acordo com eles. As diferenças desapareceram para que se busque algo em comum. Todo mundo que montou o seu álbum conhece esse efeito social. Além disso, ao trazer bandeiras e imagens de pessoas de outros países, as figurinhas despertam o interesse pelo outro e pelos lugares em que vivem. Para muitos, gerou até uma vontade de viajar.  

Passatempo, sociabilidade, fonte de conhecimentos gerais, meio de doutrinação política ou oportunidade de negócios no mercado dos itens colecionáveis. Eis as figurinhas, que para os profissionais da História, como o autor deste texto, são ricas fontes sobre o passado. Em tempo de Copa do Mundo, um meio de diversão envolve a paixão nacional dos brasileiros.

 

Wilson de Oliveira Neto é historiador e professor da Universidade da Região de Joinvile

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  1. Ótima reportagem, tbem colecionei vários álbuns de figurinhas, alguém lembra de um álbum de figurinhas que eram de lata,mais se não estou enganado acho que a abertura da Copa do Mundo de Futebol foi antecipada para o dia 20 de novembro, a cerimônia de abertura às 12 hs (de Brasília) e a partida inaugural às 13 hs (de Brasília).

  2. Interessantíssimo. O primeiro álbum que colecionei (e completei) ainda criança foi o da copa de 94. Ainda me lembro de álbuns do Brasileirão de algum ano da mesma época e de um dos Mamonas Assassinas. Folheá-los com amigos, trocar figurinhas, disputá-las no bafo e ver, orgulhoso, o álbum completo era um deleite. Bons tempos!

  3. Interessante. Aguardemos o álbum Grandes Figuras da República Moderna, onde 80% do seu conteúdo será dedicado ao herói do povo, o arauto do amor, o cuidador dos pobres deste país: LULA. Esta será a propaganda que capturará as mentes fracas, criando o “gado da esquerda” que de bom grado se submeterá ao seu comando, pois vira da mão que os alimenta, lhes da sustento e uma vida cômoda. A contrapartida? A usurpação da LIBERDADE, da PROPRIEDADE e até da VIDA.O gado vai ao matadouro pelo seu dono.

  4. Seu texto me fez recordar dos álbuns de figurinhas que completei. Agora, meu neto joinvilense e o outro argentino conversam sobre os álbuns que estão preenchendo. Vou usar seu texto para ensinar mais a eles.

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