RuyGoiaba

Um velório muito louco

16.09.22

Então a rainha morreu (rest in peace). No momento em que escrevo este texto, na quinta-feira (15), o Reino Unido já ultrapassou o meio do caminho de uma cerimônia fúnebre que dura dez dias e vai culminar, na próxima segunda-feira (19), no funeral de Estado para Elizabeth II na Abadia de Westminster, seguido do sepultamento no Castelo de Windsor. Tudo muito monárquico e muito britânico, cheio de pompa e circunstância e planejado até os mínimos detalhes: um evento tão de outra época que as redes sociais preferem se deter nos dedos de salsicha do novo rei, Charles III (obviamente, não consigo escrever “rei Charles” sem pensar no piano elétrico do começo de “What’d I Say”).

E no Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro e desse coqueiro que dá coco? Aqui não temos monarca desde 1889, mas temos uma tradição certamente inscrita no DNA do país e seguida à risca per omnia saecula saeculorum: a esculhambação. Exemplifico não com funerais que causaram comoção nacional — Getúlio Vargas e Carmen Miranda, por exemplo —, mas com um enterro que aconteceu há 127 anos: o de Floriano Peixoto. Segundo presidente da República brasileira, o marechal deu seu nome a Florianópolis graças a um ato de puxa-saquismo do então governador de Santa Catarina, Hercílio Luz, aquele mesmo que virou ponte depois (aliás, se existe outra tradição brasileira tão tradicional quanto a esculhambação, é puxar o saco de gente poderosa. Fecha parêntese).

Quem conta como foi o funeral de Floriano, em 1895, é o professor e historiador Luiz Antonio Simas, que escreveu sua dissertação de mestrado sobre o assunto. “Teve gente que se jogou no caixão, gente que morreu de infarto, gente que viu o espírito de Floriano ser levado por Jesus Cristo”, escreveu Simas no Twitter. Ele se lembrou também de um soneto que dizia o seguinte: “O grande Deus do Orbe Soberano/ Ao mundo não tem mais o que dar/ Depois que deu Jesus e Floriano” (vocês veem que isso de tratar político como Deus TAMBÉM é tradicionalíssimo no nosso Bananão). Houve mais: Raul Pompeia, autor de O Ateneu e florianista apaixonado, fez um discurso no cemitério atacando o sucessor do marechal na Presidência, Prudente de Moraes. Luiz Murat, outro escritor que depois viraria nome de rua, retrucou com um artigo em que acusava Pompeia de loucura “gerada por excesso de masturbação” — e assinou o texto como Olavo Bilac.

(Simas nos conta que Pompeia, indignadíssimo com o artigo, desafiou Bilac para um duelo com revólveres ou espadas no Alto da Tijuca; o sonetista de “Ora (direis), ouvir estrelas!”, que não estava sabendo de nada, declinou do convite.)

Sempre segundo o historiador, Floriano, que governou como um ditador militar, está enterrado no São João Batista perto da pirâmide funerária do Barão de Paquetá, que acreditava ter sido o faraó Ramsés II em outra encarnação. O túmulo do marechal tem a inscrição “ao salvador da República: à bala!”, que foi como o presidente ameaçou receber os cônsules inglês e alemão por críticas à repressão contra a Revolta da Armada, em 1893. Notem que pelo menos a nossa diplomacia mudou: hoje ela se limita a bajular Vladimir Putin e outros líderes “não globalistas” e fazer postzinho nas redes contra a China, que responde xingando muito no Twitter. O Barão do Rio Branco foi um acidente de percurso.

Quem se importa com Floriano Peixoto hoje? Ele é uma espécie de Ozymandias do poema de Shelley: a estátua de alguém que foi muito poderoso e hoje jaz em ruínas no deserto (a propósito, “Ozymandias” era o nome que os gregos davam ao supracitado Ramsés II). O resumo da ópera é que tudo por aqui vira Carnaval, no melhor ou no pior sentido — mais frequentemente, no segundo. Continuo achando que nada resume tão bem o que é ser brasileiro quanto aquela fala de O Bandido da Luz Vermelha, o filme de Rogério Sganzerla: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba”. E, considerando que Luiz Murat e Olavo Bilac foram sócios-fundadores da Academia Brasileira de Letras, com Raul Pompeia como um dos patronos, acredito que passou da hora de rebatizarmos essa venerável entidade como Loucademia de Letras.

***

GRANDES MOMENTOS DO ESPORTE

Hoje, excepcionalmente, não teremos a “goiabice da semana”: o destaque vai para Leão Serva, diretor de jornalismo da TV Cultura e mediador do debate entre candidatos ao governo de São Paulo no último dia 13, por ter arrancado das mãos do deputado estadual bolsonarista Douglas Garcia — e jogado longe — o celular que ele usava para assediar a jornalista Vera Magalhães, apresentadora do Roda Viva. Se arremesso de celular de babaca fosse esporte olímpico, e talvez devesse ser, Leão seria medalha de ouro e Brasil no topo do pódio.

Confira comigo no replay o arremesso campeão de Leão Serva após o debate

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  1. Ruy, agora imagine aquela cerimônia cheia de protocolos, pompa e circunstância, sendo visitada pelo nosso presidente - esse primor de educação, inteligência, cultura e sensibilidade... 🤦🏻😞 Ninguém merece passar tanta vergonha, e há tantos anos, mudando apenas de espécie em espécie (Sapo barbudo, Anta estocadora de vento e elefante gripado numa loja de cristais)...

  2. Bem que o excelente (como sempre) texto poderia chamar-se "Idiossincrasias de um povo que não deu certo". ...houve um tempo em que insinuar que alguém estaria louco por excesso de masturbação era uma ofensa...

  3. O surreal e o bizarro pautando nossa historia. Tanto estamos habituados a eles, que incorporamos como cultura nacional. E rimos.....Como somos inúteis, só nos resta rirmos de nós mesmos.

  4. Ocultos às personalidades sábios saprófitas aguardam o momento solene e convicto de chafurdar na imensa miséria humana, chorando, gemendo, tossindo (e outras coisas piores que se praticam em funerais de gente famosa...), principalmente por gente que supõem não ser como agente (ops! aqui lembrei da propaganda do bengala murcha). E não vai demorar a ter campeonato de arremesso de celuba, primeiro como variante do arremesso de meleca e depois, com o crescimento exponencial do ex-porte, ao Olimpo!

  5. Muito bom, Ruy. Realmente, nosso país carece de uma dose maciça de seriedade. A cidade do Rio - onde moro atualmente - é um exemplo tácito de tudo isso. Carnaval! Tudo se resume em fazer dos fatos um "carnaval". Eu não faço a menor ideia de como isso irá mudar um dia. Mas acredito num fenômeno surrealista em que cada indivíduo desse país irá parar por alguns instantes e fazer sua autorreflexão sobre a vida que constrói. Esse pensamento até me inspira uma série distópica para a Net.

  6. Muito bom! Quase chorei de rir com o desfecho da loucademia! Hahahahah! Realmente, como citaram, o velório dos nossos líderes de voto, quando chegar, vai ser algo beirando a comédia!

    1. Pois é, Renato, se Deus tiver misericórdia de nós, ele - que tem o poder sobre a vida e a morte de todos, vai fazer a caridade de levar aqueles dois o quanto antes, pois o Brasil precisa muito de paz e harmonia pra se reconstruir! Que seja a vossa vontade, amém!

  7. É de chorar. Na Inglaterra fazem fila de trocentas mil pessoas e não se vê uma única confusão, galera tudo de mãozinha pra trás, de pé 12 horas numa fila e controladíssimas. Aqui na pré-eleição uma selvageria de arremesso de celular.

  8. Foi a avacalhação mais criativa já escrita em pequenas narrativas. Coisa rara em nossa imprensa. A coisa está tão sem graça, Ruy, tão imbecilizada que a tal rede social, talvez de pura inveja, está avacalhando o rei Charles e a rainha consorte (e bota sorte nisto) sobretudo para cima dessa cuja. Todos, sentindo-se Laide Day vingativa. Como se esta quisesse vinganca pela sorte de ser trocada pela dita consorte.

  9. Este Leozinho Servo queria seu momento de glória. Foi mais agressivo que o deputado paspalhão que, afinal, só tinha feito uma pergunta à intocável jornalista.

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