MarioSabino

Luiz, a diversidade

19.08.22

Na semana que finda, morreu o maestro Diogo Pacheco, aos 96 anos. A morte dele me fez lembrar do seu enteado, o Luiz, que foi meu amigo de Colégio Equipe, no que hoje é o ensino médio, no final da década de 1970.

Da minha turma do Colégio Equipe, saíram os músicos do Titãs, os pintores da Casa 7, diretores de TV e cinema como Cao Hamburger e o escritor e jornalista Diogo Mainardi, entre outros. Goste-se ou não desse pessoal, a safra foi abundante no campo das artes e da cultura. Da minha turma, saiu também o Luiz. No Colégio Equipe, bastião da esquerda esclarecida (havia uma naquela época), ele era a diversidade. Filho de um grande fazendeiro, o Luiz aparecia na escola com chapelão, botas que de tão botas pareciam ter esporas, camisa de voile com o peito glabro à mostra, jeans com cinto, corrente de ouro (fina) no pescoço e sempre a bordo de um dos seus rabos de peixe — aqueles sedãs com vários metros de comprimento. Imagine um caubói em Woodstock e você terá presente o contraste que ele fazia no Colégio Equipe. Eu não lembro se o Luiz tinha carteira de habilitação, provavelmente não, mas isso estava a milhares de anos-luz de ser um problema para ele e para nós, que dávamos voltas nos seus carrões, ouvindo invariavelmente o programa policial do Gil Gomes, o locutor que descrevia casos de crimes escabrosos e achava que bandido bom era bandido morto, tudo bem ao gosto da esquerda com a qual o Luiz convivia.

Ele era um contador de causos, como são, em geral, os fazendeiros, muitos desses causos escabrosos, que não contarei aqui para não ferir suscetibilidades. Ele era apaixonado pela Mônica, bailarina de jazz, filha de um professor de arte. Mais precisamente, ele era apaixonado pelas pernas da Mônica e não escondia a sua preferência. Fazendeiro. O Luiz matava aulas para beber pinga, enquanto nós fazíamos o mesmo para, no máximo, comer um enroladinho de queijo na padaria.

Uma das situações mais divertidas pelas quais o Luiz passou foi quando, encostado no balcão da cantina da escola, enquanto tomava um café para curar uma ressaca, ele ficou sem ação diante do professor de biologia que era manco e todo mundo fazia de conta que ele não era. O professor, que estava ao seu lado, deixou cair algo no chão, não lembro mais o que era, e se inclinara para pegar a coisa, sem conseguir fazê-lo e quase caindo ele também. “Eu não sabia se ajudava ou não o cara. Se ajudasse, ele poderia se ofender, sei lá como funcionam essas coisas, sô”, explicou o Luiz, caprichando no erre caipira do “ofender“. Na dúvida, ele decidiu olhar fixamente para a frente, enquanto sorvia o café.

Outra situação engraçada foi quando um futuro músico dos Titãs resolveu pedir um cigarro a ele, na sala de aula: “Meu, dá um cigarro?” O Luiz respondeu gentilmente à formal solicitação, erguendo o sujeito pela gola da camiseta, espremendo-o na parede e dizendo: “Eu não sou seu! Nunca mais ouse falar assim comigo!“. Foi, digamos, a manifestação de um choque de civilizações.

Ninguém ia reclamar dele na direção ou fazer abaixo-assinado para expulsá-lo da escola. Inclusive porque, à exceção do futuro músico do Titãs, ele era simpaticão com todo mundo e todo mundo lhe lançava um gentil olhar antropológico (e antropológico era também, de certa maneira, o olhar do Luiz). As diferenças não prejudicavam a coexistência. Contava também em seu favor o fato de ele ser enteado do maestro Diogo Pacheco. Acho que o Luiz emulava o pai fazendeiro como um contraponto edípico ao padrasto. Ele amava a mãe, muito bonita e elegante, e odiava o Diogo Pacheco. Uma das diversões do Luiz era mudar a ordem dos coffee table books e objetos decorativos que ficavam na mesa de centro da sala de estar da sua casa. O padrasto sofria de um certo grau de TOC, aparentemente, e ficava nervoso quando encontrava tudo fora de posição.

Da última vez que ouvi falar do Luiz, já faz tempo, ele havia se mudado para o interior, provavelmente para a fazenda paterna, não sei dizer. Espero que esteja vivo e com o fígado inteiro. O Luiz era a diversidade no Colégio Equipe, bastião da esquerda esclarecida, quando havia uma. Saudades disso tudo.

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