É estúpido ser de esquerda e defender a China

27.08.21

Nenhum país tão influente no mundo rejeita com tamanha veemência os valores progressistas quanto a China. E é fácil provar essa frase.

Em primeiro lugar, nós estamos falando de uma ditadura. O Partido Comunista Chinês é o centro de um organismo que controla todos os departamentos governamentais, as forças militares, os tribunais de Justiça e as reuniões parlamentares. Os membros desse partido não se identificam como defensores de uma sociedade aberta, plural e tolerante. Na verdade, atuam explicitamente contra esses valores.

Dentro dessa organização, grupos sociais como mulheres e LGBTs não possuem oportunidade de ganhar representação política relevante. Sete em cada dez dos chineses aprovados para a entrada no partido são homens. Apenas uma mulher foi nomeada para o Politburo no último Congresso do Partido, em 2017 — contra 24 homens. Nenhuma mulher jamais se sentou no Comitê Permanente do Politburo, a posição mais alta da organização.

Fora do partido, feministas podem ser presas por organizar protestos e as discussões sobre gênero são frequentemente censuradas nas redes sociais. A grosseria contra as mulheres é política de estado.

Por mais de trinta anos, até 2015, a Política do Filho Único impediu que uma parte importante dos chineses planejasse livremente o tamanho de suas famílias. Pequim calcula que essa estratégia evitou 400 milhões de partos no país. Essa foi uma tragédia especial para as mulheres.

As consequências dessa tragédia assombram a sociedade chinesa até hoje. Num país conhecido por dar papel bem mais relevante aos homens, o nascimento de meninas passou a ser evitado pelas famílias, com abortos, abandono e infanticídio em série. Já são 30 milhões de homens a mais do que mulheres no país. A consequência é uma epidemia de mulheres adultas sequestradas no Leste asiático, para serem vendidas como noivas escravas no interior da China.

Com os LGBTs, a situação não é melhor. Em primeiro lugar, o casamento gay e a adoção de crianças por casais homossexuais não são permitidos no país. Imagens de homens usando brinco podem ser borradas na televisão pela censura oficial, como parte de uma agenda para reforçar as noções tradicionais de masculinidade. Mais do que isso: o governo proíbe todas as representações de homossexuais na tv, com a desculpa de evitar “conteúdo vulgar, imoral e prejudicial à saúde”.

Oito em cada 10 homens gays chineses são casados com mulheres. Há até uma expressão para essas esposas: Tongqi (同妻). Segundo uma pesquisa publicada pela ONU, apenas 5% das minorias sexuais chinesas optam por revelar publicamente suas orientações sexuais. Em 2021, a Shanghai Pride, uma das raras paradas gays na China, anunciou seu fechamento para proteger a segurança dos organizadores. E defender essa comunidade não é tarefa simples. Ativistas de direitos humanos e advogados estão sob crescente ameaça de detenção, assédio e, caso presos, de tortura. Não se engane: prisão na China está longe de ser um paraíso dos direitos humanos. A China já foi condenada internacionalmente por promover a extração à força de órgãos de presos — alguns ainda vivos –, para vender num mercado negro de transplantes que movimenta US$ 1 bilhão por ano no país.

Em matéria de pena de morte, aliás, as autoridades chinesas matam mais prisioneiros todos os anos do que o resto do mundo somado.Para não falar da violência contra grupos étnicos. Duas minorias estão na mira do partido: os uigures e os tibetanos – com direito a inúmeras denúncias de campos de concentração e trabalho forçado.

A internet certamente não é um bom local para protestar contra tudo isso. Há mais de 10 mil domínios bloqueados na China. Um cidadão comum chinês não possui acesso legal ao Google, ao WhatsApp, à Netflix ou ao Telegram. Páginas da Wikipédia em todas as línguas estão banidas. Facebook, Twitter, Instagram, Youtube, Snapchat, Tumblr, Pinterest e Reddit não são acessados sem recorrer a uma VPN – o que é proibido.

Além disso, neste exato momento, há dezenas de milhares de censores virtuais trabalhando para controlar o conteúdo publicado na internet. Também há milhões de comentaristas oficiais — os chamados wumao (五毛党) — pagos para defender o governo nas redes sociais.

A liberdade de expressão, artística ou de imprensa não existe.

Cantoras como Katy Perry, Beyoncé, Britney Spears e Lady Gaga já foram censuradas na China, com a desculpa de que são “vulgares”. O hip hop – outro instrumento importante de protesto de minorias na nossa sociedade – também sofre com a censura oficial chinesa, tratado frequentemente como “subcultura” e “imoral”.

Todas as mais de 2.600 estações de rádio chinesas são estatais. Todos os profissionais que trabalham nessas rádios – como em toda a imprensa chinesa – devem ser filiados ao Partido Comunista. Sites de veículos importantes como o New York Times, BBC, El País, The Guardian, Le Monde, The Economist e Washington Post também estão censurados.

Quanto aos direitos trabalhistas. A China é famosa por seu “sistema 996”, que prevê 12 horas de trabalho por dia, seis dias por semana.

É irônico que um governo que diz falar em nome dos proletários comande um país tão abertamente reconhecido no mundo pela exploração da mão de obra barata, com muitos trabalhadores em “fábricas de suor”, sem qualquer proteção trabalhista.

Também há fartos problemas ambientais na China – outra frequente preocupação no Ocidente. A rápida industrialização chinesa gerou níveis intensos de poluição do ar e da água. A estimativa é que até 70% dos rios e lagos do país estejam poluídos, o que ajuda a explicar por que mais de 1/4 das águas superficiais da China são impróprias para o consumo humano.

Por fim, ainda há uma imensa desigualdade social. Não se engane pelo nome do partido: a desigualdade social chinesa já é quase do tamanho da dos Estados Unidos.

Segundo o economista francês Thomas Piketty, figura de proa da esquerda francesa, a renda dos 10% mais ricos da população chinesa aumentou de 27% no final dos anos 1970 para 41% em 2015. Os 50% mais pobres na China hoje são responsáveis por apenas 14% da riqueza nacional. O último livro de Piketty, aliás – Capital e Ideologia – foi censurado no país.

Apesar de todos esses fatos fartamente documentados, noticiados e reconhecidos, sobram progressistas em nosso país dispostos a tomar as dores – e até abraçar como exemplo – uma ditadura que persegue os direitos de LGBTs, mulheres e minorias étnicas, impede protestos, explora presos e trabalhadores, censura a arte e ONGS de direitos humanos.

A razão para essa defesa? Comportamento de manada, ignorância crônica, um maior compromisso com grupos do que com ideias, dissonância cognitiva, falta de independência e nenhum comprometimento com a democracia e os direitos humanos.

No conceito, fingem abraçar o progresso. Ao fim, estão mesmo engajados em promover a barbárie.

Rodrigo da Silva é documentarista e fundador do canal Spotniks, no YouTube.

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  1. Além do que foi explanado acima, a China e a Rússia têm um imensa fome por novas terras e mares, querem aumentar seu já descomunal território mais ainda. Deixaram a China crescer muito, de olhos nos bilionários negócios, a ponto de ameaçar a estabilidade econômica e militar do planeta...

  2. Parabéns pela matéria e pela oportunidade de os leitores deixarem seus comentários. Muitos veículos não deixam mais.

  3. Pois é. Os "progressistas" daqui deveriam se mudar pra China. Celebridades, juristas, políticos, grande parte dos profissionais da imprensa, toda essa corja que esconde seus verdadeiros interesses atrás da farsa de defender as minorias deveria ir pra lá protestar contra "tudo isso aí". É só um sonho besta, né?

  4. Parabéns pelo ótimo artigo. No Brasil muitos artistas e jornalistas são admiradores do sistema de governo chinês, bem como do cubano. São hipócritas, pois eles sabem que serão os primeiros a serem calados caso esse tipo de regime chegue por aqui.

    1. Nada disso, esses apoiadores se sentirão no direito de usufruir das benesses dos dirigentes por terem sido seus apoiadores - ilusão...

  5. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼💯👌🏼 Não resta dúvida que estão no mundo para mentir, roubar, destruir e matar qualquer sociedade livre para o triunfo da ideologia.

  6. A China já está a ir à Lua e Marte, será que lá adotarão o sistema atual, num futuro distante incerto, ou manterão os comitês lunares e marcianos para decidir os destinos da população e as políticas intrasolares?

  7. Tais fatos devem ser mais divulgados. Infelizmente a população chinesa cresceu tanto que as ditaduras sabem que se o povo se fartar das ditaduras, ninguém segura essa massa de descontentes. Se isto ocorrer, e provavelmente ocorrerá pois ninguém consegue ocultar as mentiras e as verdades por tanto tempo. O povo chinês é trabalhador e inteligente porém , a maldade, a falta de ética e de caráter dos dirigentes aparece continuamente. Eu vi, em 2007, como os escravos chineses era tratados em Angola.

  8. Muito bom o artigo! Para mim, esquerdista só venera a China porque (1) Bolsonaro/Trump a criticam e/ou (2) o único partido tem 'comunista' no nome.

  9. As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico constrói símbolos, não mais para expressá-la, mas prá expressar sua alienação em relação a ela. Eric Voegelin Não gosto da direita porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque ela também é de direita. Millôr Fernandes

  10. Excelente artigo, parabéns. Tenho uma dissonância epistemológica com o autor: ele, ou eu, não entende o que é ser de esquerda. Para mim, a China representa o único projeto de esquerda que deu certo. Infelizmente, “certo” é este terror muito bem demonstrado no artigo.

  11. Deng Xiaoping, na história da humanidade, pode ser considerado o homem do milênio. Modernizou a China retirando 4 Brasis da mais absoluta pobreza. Substitui o maior genocida do mundo - Mao Tsé-Tung - matou mais chineses de fome que a segunda grande guerra. Esta reportagem peca por ser absoluta e não considera a relação com o passado.

  12. A verdade dói, os esquerdopatas não se rendem a verdade. Acorda brasileiro de bem, não durma em berço esplêndido, qual é o interesse desse regime nas terras tupiniquim é comprar a preço de banana a nossa produção de grãos, pois no futuro os chineses não terão alimentos para alimentar a maior população do mundo.

  13. Estúpido, é você, articulista! Sabes nada da China, ignorarante! a China sempre foi o que é hoje, vá buscar informação, não venha confundir os leitores desta revista! O que ocidente chama ditadura, não se aplica à China, 1.400.000.000 de pessoas! O ocidente não consegue administrar 200.000.000!!

    1. Tu tá igual o Bolsollini, né? Quando não tem argumento, parte pra violência. Vocês da extrema-? são mesmo iguais: não aceitam a liberdade dos outros, não se importam com os fatos, não tem nenhuma vergonha em serem hipócritas, só querem sentir que tem razão.

  14. Rodrigo, 85% das empresas chinesas são privadas, 3000 delas nos EUA, 2000 na Europa, 300 no Brasil. PIB de US$13 trilhões. Pergunta para qualquer chinês se eles desejam viver na democracia brasileira ou na ditadura chinesa.

    1. A resposta depende do tipo de chinês: se for dos 10% mais ricos, na ditadura chinesa; se for dos mais pobres, na "democracia" brasileira ou na de qualquer outro lugar do Ocidente. Dinheiro compra até liberdade, afinal.

  15. Muito bom. Quem quer pensar, pense. Valores são valores. O meu valor superior é a liberdade. Sem ela, qq construção é frágil.

  16. Direita, Centro ou Esquerda.... ter e manter-se no poder é a força motriz desde que o mundo é mundo. O ser humano é igual em qualquer parte do mundo, só muda nome e endereço. Já dizia um velho proverbo: quer conhecer uma pessoa, dê poder a ela, mas se, em si, quiser verdadeiramente conhecê-la, retire o poder dela....

  17. A China aproveita-se da condição econômica e tecnológica, mas infelizmente as oportunidades e desigualdades sociais são desastrosas principalmente para seus contrapriotas. A i dignida permeia a nação chinesa. Até onde a China de forma inescrupulosa vai atingir seus objetivos deixando a margem questões como acesso a informações, educação, formação e investimento na saúde, habitação, trabalhos dignos e principalmente atender a declaração dos Direitos Humanos.

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