O Centrão e o sexo dos anjos
Desde o momento em que levou o escândalo das vacinas para dentro do Palácio do Planalto, ao revelar que alertou pessoalmente o presidente Jair Bolsonaro sobre as suspeitas de corrupção envolvendo a compra da Covaxin e ele nada fez, o deputado Luis Miranda virou um “para-raios” – para usar uma expressão dele próprio – de denúncias relacionadas ao Ministério da Saúde. Para além do explosivo caso que enreda o presidente da República, uma das mais graves acusações recebidas pelo deputado ateia ainda mais combustível à crise política, por incluir na trama outros dois expoentes do Centrão, hoje pilares de sustentação do governo Bolsonaro no Congresso: o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o senador Ciro Nogueira, além de um empresário próximo ao senador Flávio Bolsonaro, filho 01 do presidente cujas digitais estão cada vez mais presentes no escândalo das vacinas.
A denúncia tem como pano de fundo um contrato milionário do Ministério da Saúde com a VTCLog, responsável por armazenar e distribuir os medicamentos comprados pelo governo, incluindo, mais recentemente, as vacinas contra o coronavírus. A empresa é uma antiga fornecedora da pasta, mas ampliou significativamente seus negócios a partir de 2016, na gestão do ex-ministro Ricardo Barros, atual líder do governo na Câmara e citado por Bolsonaro no “rolo” da Covaxin, segundo Miranda – informação até hoje não desmentida pelo presidente. Sob a gestão de Barros, a VTCLog assinou seis contratos diretos com a pasta, no valor total de 253 milhões de reais. Todos sem licitação. À época, o então ministro extinguiu o departamento do ministério que executava esse serviço e o terceirizou para a empresa, sob a alegação de economia de recursos. Logo após a saída dele, em 2018, a VTCLog assinou o maior de seus negócios com a pasta, por meio de pregão, no valor de 485 milhões de reais e prazo de cinco anos. Este é o objeto da trama que está sendo investigada pela CPI, após um aditivo de 88,7 milhões assinado em fevereiro.
Crusoé teve acesso com exclusividade a detalhes das acusações que chegaram até Miranda por meio de um informante. Esse lobista e ex-policial é daqueles personagens típicos de Brasília acostumados a transitar no submundo da capital federal. Por ser ligado a um dos operadores do esquema, seu nome já está em poder da CPI. A denúncia foi feita a Luis Miranda no dia 29 de junho, em sua casa no Lago Sul, área nobre de Brasília. De acordo com o que o deputado disse a interlocutores, é “uma bomba” relacionada à corrupção dentro do Departamento de Logística do ministério – naquele mesmo dia, Roberto Dias, que chefiava o setor, havia sido exonerado do cargo após ser acusado pelo policial militar Luiz Paulo Dominguetti de cobrar propina de 1 dólar por cada dose da vacina AstraZeneca que ele dizia revender.
Lira, um dos supostos beneficiários do esquema, foi o responsável pela indicação do então coordenador-geral de material e patrimônio do Ministério da Saúde Alexandre Lages Cavalcante. Foi Cavalcante quem assinou o contrato hoje recheado de indícios de irregularidades entre a pasta e a VTCLog em julho de 2018. Cavalcante já foi secretário de Gestão em Alagoas, apadrinhado pelo atual presidente da Câmara e por seu pai, o ex-senador Benedito de Lira. Ele deixou o ministério no início de 2019, após ser nomeado subsecretário de Saúde no governo do Distrito Federal. Foi exonerado cinco meses depois, com a repercussão negativa em torno da ação movida contra ele pelo Ministério Público Federal no mesmo caso em que Barros e a empresa Global Gestão em Saúde também são réus: o pagamento de 19,9 milhões de reais por remédios para tratar doenças raras que nunca foram entregues. A Global é a sócia da Precisa Medicamentos, a empresa intermediária que assinou o contrato de 1,6 bilhão de reais da vacina indiana Covaxin.
Segundo o MPF, foi Alexandre Cavalcante quem também assinou, em 2017, a ordem de pagamento antecipado para a Global, após um servidor da pasta, depois de pressionado, ter se recusado a fazê-lo por suspeitar de irregularidades no procedimento. O relato se assemelha ao depoimento prestado por Luis Ricardo, irmão do deputado Luis Miranda, sobre uma pressão interna para permitir o pagamento antecipado de 45 milhões de dólares em uma conta em Singapura aberta por uma filial do laboratório indiano Bharat Biotech, que não constava do contrato intermediado pela Precisa com o Ministério da Saúde. A nova denúncia envolvendo o negócio com a VTCLog aponta para uma pressão política para turbinar o contrato de transporte de vacinas.
Segundo a nova denúncia, a pressão política envolvendo o contrato da VTCLog começou justamente porque a gestão Pazuello, que assumiu o ministério no meio da pandemia, não queria atender aos pedidos de reajuste contratual feitos pela empresa e ameaçava rescindir o contrato. A partir deste momento, outros dois personagens graúdos aparecem na trama: os senadores Ciro Nogueira e Flávio Bolsonaro. De acordo com as informações encaminhadas à CPI, o dono da VTCLog, Carlos Alberto de Sá, conhecido como Carlinhos, pediu a ajuda de um amigo chamado Flávio Loureiro de Souza, que é próximo de Ciro, do filho 01 do presidente, Flávio Bolsonaro, e do próprio Arthur Lira, para solucionar o impasse dentro do ministério. A VTCLog chegou a ter os repasses feitos pelo ministério suspensos por discordâncias sobre o cálculo da remuneração dos serviços. Ao fim, Roberto Dias contrariou um parecer jurídico do ministério e aprovou uma proposta da VTCLog que era 18 vezes mais cara que o valor recomendado por técnicos da pasta.
O empresário Flávio de Souza, que teria ajudado a destravar o negócio, é dono de uma franquia de depilação e sócio do filho do dono da VTCLog em um hangar em Brasília. Quando solicitado, ele empresta para os políticos o jatinho registrado em nome de outro sócio na empresa de depilação. Foi nessa aeronave, por exemplo, que Flávio Bolsonaro e o ex-ministro Ricardo Salles voltaram de uma viagem à Fernando de Noronha, em novembro do ano passado, depois que veio à tona a informação de que o senador usou dinheiro da cota parlamentar para ir com a mulher ao arquipélago em Pernambuco. A menção pelo denunciante do nome do empresário, conhecido como Flavinho, fez com que a CPI solicitasse à Polícia Federal um levantamento sobre suas empresas, diante da suspeita de que elas possam ter sido usadas para lavar dinheiro desviado do suposto esquema da Saúde, para favorecer a VTCLog e políticos do Centrão.
A Crusoé, Flavinho admitiu não apenas cultivar relação com os políticos citados, incluindo Flávio Bolsonaro, que jogaria “futebol em sua casa”, como afirmou, em nome da manutenção da “amizade com Ciro Nogueira”, ter perdoado um caso extraconjugal de sua própria mulher com o senador que hoje integra a tropa de choque do governo na CPI. Segundo a denúncia que chegou aos ouvidos de Luis Miranda e da própria CPI, o suposto escândalo envolvendo a traição só não foi detonado porque Ciro, colocado contra a parede por Flavinho, pressionou Roberto Dias a assinar o aditivo com a VTCLog no momento em que o contrato estava sob risco. No fim, com o contrato renovado, como numa ação entre amigos, todos se deram bem: Flavinho, o dono da VTCLog e os expoentes do Centrão, que mantiveram, segundo a denúncia, seus esquemas na Saúde.
Num primeiro momento, Flavinho negou ter usado a história envolvendo sua mulher para favorecer a VTCLog. Também rechaçou conhecer qualquer tipo de falcatrua na Saúde. “Jamais pedi ao Ciro (ajuda nos negócios do Carlinhos, dono da VTCLog). O Ciro nunca me deu abertura para isso. Eu nem sabia que o Carlinhos precisava dessa ajuda”, afirmou. Informado na quinta-feira, 15, que seu nome seria incluído na reportagem, o empresário mudou o tom. Disse que, se Crusoé topasse retirar seu nome da matéria, “ele poderia ajudar com informações”.
Organograma feito pela Polícia Federal a pedido da CPI sobre as empresas ligadas a Flavio Loureiro de Souza
Esse, na verdade, é um papel que caberá agora à CPI. É fundamental que se saiba quais informações o empresário dono de uma empresa de depilação supostamente usada para esquentar parte do dinheiro desviado da Saúde e que, além de ser ligado a toda essa turma da pesada do Centrão, chegou a emprestar um jatinho ao filho do presidente de República, tem a fornecer sobre o assunto.
Esclarecer esse caso também é de extrema importância porque, o surgimento do nome de Ciro Nogueira e de Arthur Lira, sobretudo deste último, pode ajudar a explicar por que o presidente da Câmara ainda resiste a tocar adiante os pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro na Câmara. Também pode contribuir para circunstanciar os termos da já famosa conversa de Luis Miranda com Bolsonaro, até hoje não desmentida pelo presidente.
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